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Entrevista

A Aldeia Maracanã é dos índios, diz antropólogo

A ocupação do ex-museu do índio dá visibilidade à luta por políticas públicas indígenas em áreas urbanas e permite a governo do Rio dialogar, afirma Marcos Albuquerque, da UERJ

Entrevista
18 de janeiro de 2013
09:25
Este artigo tem mais de 11 ano

“Quanto à origem deste prédio, há poucas informações disponíveis e muitas delas se contradizem”, diz o relatório feito em 1997 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, o INEPAC, órgão vinculado à Secretaria de Cultura do estado do Rio de Janeiro, sobre o prédio conhecido como “antigo Museu do Índio”, que o governo do Rio quer demolir para facilitar o trânsito no entorno do estádio Maracanã, em reforma para a Copa 2014.

O que se sabe é que, no início do século XIX, a região era de engenhos de açúcar e, provavelmente, ainda repleta de aves chamadas maracanãs. Em 1889, com a chegada da República, aquelas terras adquiridas pelo Duque de Saxe, genro de D. Pedro II, deixariam de pertencer ao Império do Brasil e passariam a ser propriedade do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio.

O casarão imperial se tornaria conhecido a partir de 1953, como sede do Museu do Índio, chefiado por Darcy Ribeiro. O museu se tornaria referência internacional, servindo de “modelo a diversas instituições, orientando-a quanto à catalogação e classificação de material etnográfico e quanto aos melhores métodos de exposição museográficas”, como aponta o relatório do INEPAC.

Em 1978, o Museu do Índio mudou de endereço e o prédio caiu no abandono. Deteriorado, acabou não merecendo tombamento do Iphan que o avaliou como de baixa relevância nacional do ponto de vista histórico e arquitetônico.

Para o antropólogo Marcos Albuquerque, professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador da presença da população indígena nas grandes cidades, não há dúvida que o prédio tem valor histórico pelo que representa para o indigenismo nacional e sua ocupação legitima a construção de “referenciais” indígenas na cidade do Rio de Janeiro, onde a luta por políticas públicas tem maior visibilidade.

Leia a entrevista.

OCUPAÇÃO É LEGÍTIMA E PODE ABRIR DIÁLOGO

O governador Sérgio Cabral, em uma fala veiculada na televisão, deu a entender que a Aldeia Maracanã não teria legitimidade por não estar ali desde o descobrimento, nem no período colonial. Qual a sua visão sobre isso?

O que o governador falou é algo que vai contra preceitos constitucionais e regras jurídicas que determinam o tipo de atenção ao caso. A ocupação dos indígenas naquele espaço é legítima independentemente do ano em que foi feita. Do ponto de vista da política indigenista, o que está em jogo ali é o fato de ser uma comunidade indígena reivindicando um direito constitucional. No mínimo, os indígenas teriam o direito de usucapião, que é um direito coletivo. Além disso, é um espaço que tem valor histórico e que deve ser mantido. A intercessão entre esse valor histórico e a presença da população indígena ali, em um espaço da memória do movimento indigenista, já daria toda a legitimidade ao que eles estão reivindicando, que não é de direito individual. É uma reivindicação de um direito coletivo, claramente legítima do ponto de vista de preceitos constitucionais. Esse tipo de fala que o governador ou o prefeito tem feito às pressas não tem nenhum valor oficial e o que o governo do estado irá fazer com relação a essa questão não pode estar baseado em uma afirmação como essa, feita às pressas.

O tombamento do prédio do antigo Museu do Índio foi recusado na avaliação do Iphan. Mas a questão se resume ao caráter histórico do lugar ou vai além disso?

Pelo que a gente está acompanhando da mobilização em torno do antigo museu por conta da ocupação indígena, a questão é mais complexa, envolve a presença de uma população indígena que já está há pelo menos seis anos ali. É um tipo de ocupação que não está apenas pela preservação da memória do imóvel, que tem a ver com a história do indigenismo nacional, mas também com o projeto de construção de referenciais na cidade do Rio de Janeiro para a cultura indígena e – por que não? – de projetos de implementação de políticas públicas a partir desse epicentro.

Quem são os índios que estão ali, de onde vêm, o que fazem?

A ocupação do local foi uma forma de – na medida do possível, sem recursos – implementar uma política cultural que funcionasse como pólo de visibilidade da questão indígena local e nacional, até porque existem indígenas do país todo lá. O núcleo principal era formado por cerca de seis indígenas, principalmente homens adultos e solteiros, mas há alguns deles que estão há mais de 20 anos morando aqui no Rio de Janeiro. A maior parte vem do norte do país, principalmente do estado do Amazonas, e alguns já tinham uma trajetória de mobilização política pró-indígena em Brasília e em outras capitais. Outros, como os Guajajara, vieram ao Rio de Janeiro com família, estavam morando em residências sem condições de saúde e segurança, mesmo que tivessem formação acadêmica, como é o caso do Arão [da Providência], que é advogado e atua junto à OAB e ao Ministério Público, e o irmão dele, o Zé, que é doutorando em linguística no Museu Nacional, mais as famílias, todas em situação econômica bastante precária. São situações bastante diversas.

Qual é a situação hoje dos índios que vivem em cidades, como o Rio de Janeiro?

Cerca de 40% da população indígena original hoje está dispersa nos grandes centros urbanos do país: Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Brasília, Salvador e Manaus, principalmente. E todas as grandes cidades têm políticas de atenção à população indígena, mas que são muito diferentes porque não há uma regulamentação federal de como deve ser feito o atendimento a essa população. E a implementação dessas políticas públicas, em quase 100% dos casos, vêm por conta da mobilização dos próprios indígenas. Principalmente com relação ao atendimento à saúde, educação e moradia. São Paulo e Manaus são centros de referência para esse tipo de política pública.

Rapaz presente no ato em defesa dos índios guarani-kaiowá na Aldeia Maracanã em 9 de novembro de 2012 (Foto: André Mantelli)

Por que a população indígena migra para as cidades?

Essa migração tem mais de 50 anos, no mínimo. Os indígenas migram, principalmente os do nordeste brasileiro e, mais recentemente, da região norte, por conta de conflitos fundiários, por conta de violência pela posse da terra, por conta de muitas populações indígenas, principalmente do nordeste, estarem hoje ocupando territórios que não tem viabilidade econômica. Então os migrantes indígenas são migrantes tal como os migrantes do nordeste brasileiro. Mas a Constituição de 1988 regulamenta uma certa autonomia de representação dos povos indígenas através de suas associações, que passam a não depender apenas da Funai e do Ministério Público e aí começam a ter visibilidade. E eles também migram em busca de melhoria na educação, formação na educação básica e universitária e, em menor parte, em busca de atendimento à saúde. O Estado brasileiro tem o papel constitucional de criar políticas públicas para amenizar o impacto da violência imposta aos indígenas durante a construção do país. É uma espécie de compensação histórica feita aos povos indígenas. Mas o que o Estado vem fazendo ao longo do tempo é um tipo de atendimento, feito pela Funai, dentro das aldeias, e não nas cidades. Embora a redação do texto constitucional não faça distinção entre comunidades em aldeias ou centros urbanos. É por conta disso que os povos indígenas estão exigindo que os órgãos públicos implementem, ou regulamentem, o preceito constitucional. Essa é a luta deles.

Como o governo do Rio tem tratado a questão indígena?

Pelo que consegui sondar até o momento, e pelo que informam os próprios indígenas, o estado do Rio de Janeiro não tem nenhuma política pública para os povos indígenas, o que é um fosso bastante significativo no cenário nacional. Até porque a cidade do Rio de Janeiro, oficialmente, pelo Censo, tem mais de 6 mil indígenas. Mas pelas contas dos próprios indígenas e de pessoas envolvidas, esse número é, no mínimo, três vezes maior. Em São Paulo, os indígenas, ao constituírem associações, passaram a ter uma melhor organização e conseguiram montar autonomamente o seu próprio censo. Mas no Rio de Janeiro não tem nenhuma associação institucionalizada ou indígena que já tenha condições de fazer esse tipo de mapeamento. O governo do estado do Rio e a prefeitura do Rio não cedem nenhum funcionário ou espaço institucional para o fortalecimento das associações indígenas. Não promovem nenhum tipo de atendimento diferenciado na saúde ou na educação, nenhum tipo de política pública para os povos indígenas, e não há nem um conselho estadual de povos indígenas, como ocorre em outros estados.

O que significaria, então, o reconhecimento de que é legítima a reivindicação dos índios a um espaço, um centro cultural, que preserve a memória e a história deles, no Rio de Janeiro?

A Aldeia, tal como ela existe, já se configura como espaço de pressão para que o governo do Rio de Janeiro implemente políticas públicas para essa população. Minimamente já se consegue promover algo muito importante que é um impacto de articulação, de encontro – festivo, mas também político. E ao se tornarem visíveis, como é o caso da Aldeia Maracanã, o governo passa a chamá-los para dialogar. E é possível que esse diálogo, nascido da Aldeia Maracanã, possa se desdobrar efetivamente na construção de políticas públicas. E não só para esses que estão na Aldeia, mas para todos que estão no estado do Rio de Janeiro, que são muitos mais. Esse movimento é muito maior do que o número específico de índios que estão na Aldeia.

Como você acha que um evento como a Copa pode definir essa representação que os índios estão tentando conseguir frente ao governo?

A Copa levou a uma grande visibilidade internacional principalmente nesse último ano, em 2012 e agora no começo de 2013, por conta do incremento das reformas no Maracanã e do impacto sobre a Aldeia Maracanã. Isso vem levando os indígenas a ter uma visibilidade internacional muito grande. É evidente o desnível entre o interesse da mídia internacional e o da mídia nacional, que passou a olhar para essa questão muito recentemente e com muito mais reticências do que a mídia internacional. É um pouco ilógica a política do governo do estado de não tornar a ocupação dos índios algo positivo. É um paradoxo no que se refere a um elemento de grande significação internacional, que é a manutenção, o registro, a atualização de um patrimônio em pleno coração da cidade para onde os olhos do mundo estarão voltados.

 

As fotos desta matéria foram gentilmente cedidas por André Mantelli.

 

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