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Sábado na Copa Popular Contra as Remoções, protestos no domingo no entorno do Maracanã: assim foi a chegada da Copa das Confederações no Rio de Janeiro

Reportagem
18 de junho de 2013
09:00
Este artigo tem mais de 10 ano

Na chegada ao Rio de Janeiro, era impossível falar de outro assunto com o taxista. Em cada canto, esquina e ponto da cidade, a publicidade oficial estampava o logo da Copa das Confederações e dava boas-vindas aos turistas. No dia seguinte, domingo, era dia de México e Itália e o motorista falava sobre a Seleção Brasileira, criticando o atacante Hulk – que “o Felipão insiste em botar em campo”-, enquanto eu me preparava para cobrir outro tipo de evento: a “Copa Popular Contra as Remoções”, campeonato de futebol entre moradores de comunidades atingidas pelas obras da Copa, organizado pelo Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro.

Todos com quem eu conversei – dos turistas gringos aos brasileiros – queriam saber dos jogos, dos craques, dos gringos, das baladas do Rio. Falar sobre remoções parecia destoar da festa, mas era pra isso que eu estava ali.

A Copa Popular

Alguns minutos depois das nove horas da manhã do sábado, dia 15 de junho, eu já estava no Quilombo da Gamboa, espaço de atividades culturais no bairro da Gamboa, na zona portuária do Rio. Choveu muito durante todo o dia, entre pancadas, garoas e agora um cinza nublado, mas mesmo o público – entre 100 e 200 pessoas – compareceu na quadra surrada de futebol society, os tapetes de grama sintética em desnível.

Nas paredes, muitas faixas. “Porto Maravilha para quem?”, questionava uma delas em alusão ao projeto Porto Maravilha, de “revitalização da região portuária”, como define o poder público. “Estradinha: área de risco ou de rico?”, “SMH: Secretaria de Habitação ou Remoção?”, “Não às remoções”, “Brasil: economia verde, Copa vermelha de sangue”, protestavam outras.

Além de meios de comunicação nacionais, como a TV Record e o Portal Terra, havia repórteres estrangeiros, como do jornal britânico “The Guardian”. Os rapazes estavam conseguindo o que queriam: atenção para os problemas das comunidades afetadas.

Os jogos começaram com a partida do campeonato feminino entre Indiana-Nova Geração e Criciúma Providência.  Além dos atletas, representantes das comunidades davamentrevistas aos jornalistas, como Maria do Socorro, da Indiana, que mostrava um álbum de fotografias para denunciar a situação de sua comunidade.

“O que está nos segurando naquele lugar é uma liminar que ainda impede a remoção, e a minha divulgação”, acredita ela, que faz uma peregrinação entre encontros populares e atos públicos pela comunidade. “Temos o futebol aqui, temos lazer, mas podemos divulgar a nossa tristeza. As comunidades que estão aqui, umas estão vendo a luta das outras”, disse, Socorro, enquanto um repórter canadense pedia uma entrevista.

A Indiana está “em área de risco”, segundo a prefeitura, sem apresentar nenhum laudo técnico. Após muita luta e uma ação junto à Defensoria Pública, os moradores conseguiram uma liminar que impede a remoção das famílias até que a Prefeitura apresente esse laudo. Na semana passada, em decorrência de outra ação, essa do Ministério Público, foi apresentado um laudo de “baixo risco”, realizado entre 1996 e 2010, e obviamente conhecido pela Prefeitura do Rio.

Em quadra, era possível admirar o desempenho dos jovens moradores do Indiana. Os domínios de bola, numa quadra dura em que a bola quicava muito, eram quase sempre muito bem executados. Os toques de bola pelo alto lembravam as “petecadas” das praias cariocas mas o jogo era levado a sério, com torcida, reclamações com o juiz, cobranças entre companheiros de equipe, empenhados em vencer a partida.

Entre as mulheres, o destaque foram as finalistas: os times das comunidades Salgueiro e da Providência. As garotas dos dois times jogam juntas no Criciúma, time que disputa torneios de futebol de salão na Associação de Futebol Feminino, e para o jogo das comunidades formaram as equipes Criciúma-Salgueiro e Criciúma- Providência. Com apenas seis meses, o time já foi campeão municipal – e invicto. O técnico do Criciúma, Eduardo Tacto, de 29 anos, era só alegria.

“Ao fazer um campeonato entre comunidades, também lutamos contra o preconceito, então seria um absurdo não ter times femininos. Tenho muito orgulho das meninas. Elas estão levando a sério e o resultado está aí: fizemos a final entre o nosso time”, disse.

Capitã do Criciúma-Salgueiro, equipe campeã, a estudante de massoterapia Aline França, de 24 anos, comemorou mais do que o título. “O campeonato serviu para mostrar que a gente tem que estar sempre unido. Tem que se ajudar bastante, eu soube de muita gente aqui que estava perdendo as suas casas. Se a gente não juntar, não vai para frente”, disse Aline, ressaltando que a partir daquele dia iria “se mexer mais e lutar pela comunidade”.

No masculino, só deu Morro da Providência. A comunidade, ameaçada pelas supostas obras de melhoria do projeto “Morar Carioca” da Prefeitura do Rio, emplacou seus dois times na final: o Verdão-Providência e o Criciúma-Providência. Em uma partida disputada a sério – os dois goleiros fizeram defesas milagrosas – o Verdão levou a melhor, ao vencer por 2 a 0 (gols de Matheus e João Marcos).

“Ser campeão é bom, mas jogar contra os amigos é melhor ainda. A Providência foi campeã aqui hoje!”, comemorou Matheus, autor do primeiro gol. “É muito gratificante representar a comunidade”, disse o também campeão João Marcos, artilheiro da Copa Popular com cinco gols marcados.

Entrevistados apaixonados

“Cada favelado é um universo em crise”, diz uma letra dos Racionais MC’s, que voltava à minha cabeça a ouvir cada entrevistado, ansioso por falar. Vitor Lira, de 31 anos, morador do Morro Santa Marta, na zona sul carioca, mostra as marcas na sobrancelha esquerda, fruto de agressão da polícia, segundo o rapaz negro e magro que diz ter ido à Copa Popular “só para prestigiar”. Ele é guia de turismo do “Tour Santa Marta”, uma cooperativa de turismo criada pelos moradores do morro que busca “mostrar um pouco da realidade da favela, o ponto de vista de quem vive o dia a dia ali, e não só a vista”, explica, o também estudante de curso técnico na área de turismo.

“Sou morador do pico do Santa Marta e desde janeiro de 2011 convivemos com a ameaça de remoção porque a Prefeitura alega que estamos em área de risco. Já fizemos um contra-laudo com engenheiros que comprova que ali não é área de risco e que só precisa de algumas obras de contenção”, conta. “Mas por que eles querem essa área? Essa área dá vista para Lagoa Rodrigo de Freitas, Ipanema-Leblon, Arpoador, Copacabana, Urca, Ponte Rio-Niterói, então tirando essas pessoas de lá é possível fazer qualquer tipo de empreendimento privado para se fazer o que eles chamam de embelezamento da cidade”, acredita ele.

Ele se orgulha da família há cinco gerações no Santa Marta na mesma medida em que se indigna com a situação de ameaça. “Acho muito estranho que esse processo de remoção todo venha a acontecer depois da chegada da UPP. Agora que eu não convivo mais diariamente com balas cruzando a minha casa, eu tenho que ir pra Triagem, um lugar bem afastado, para os brancos chegarem?”, revolta-se.

“É muito difícil morar em comunidade no Rio de Janeiro”, concorda Luan Santos, de 21 anos, desempregado e atleta do Cruzeiro-Providência. “E agora tem essas obras de melhoria que são melhoria só pra quem é de fora, pra quem tá lá eu não vejo nada, só vejo ameaça dos meus amigos e da minha família de perder a sua casa”, diz.

A zona portuária, onde se realiza o Copa Popular, também abriga diversas comunidades ameaçadas de remoção pelas obras do Porto Maravilha, como lembrou o mestre de cerimônias, Marcelo Edmundo, da CMP (Central de Movimentos Populares) que disse ter “imitado o Marin” ao colocar uma medalha no bolso durante a premiação. “É um exemplo de luta, um contraponto à Copa das Confederações e do Mundo, que estão trazendo tanto sofrimento a todos aqui”, afirmou.

Uma grande roda de funk promovida pela APAFUNK (Associação de Profissionais e Amigos do Funk) fez a confraternização final com três MC’s cantando funks carregados de críticas sociais. “Quem é você para falar dos meus erros, tu não me conhece não sabe quem sou/A luta que tive, a fome que minha família passou/Aonde tava você na hora do perrengue, porque você não tava lá seu doutor? A sociedade hoje fala de mim mais ninguém me ajudou”, dizia uma das letras.

Domingo no Maracanã

No dia do jogo Itália e México, o protesto começou lá pelas duas da tarde na Estação São Cristóvão de metrô e trem, que fica à beira das rampas de acesso ao Maracanã, tomada por faixas com dizeres como “Da Copa eu abro mão, quero dinheiro para saúde e educação”, “Basta” e o já célebre “Copa pra quem?”. Embaixo da passarela da estação, que fica sobre as avenidas Maracanã e Castelo Branco, os manifestantes entoavam cantos e palavras de ordem trazidas também dos recentes protestos contra o modelo de transporte público que se espalharam pelo Brasil. Saúde e educação também apareciam nas reivindicações.

A  massa, a essa altura com cerca de mil manifestantes segundo a imprensa, tentou fazer dois movimentos para alcançar o Maraca, onde os torcedores chegavam para ver o jogo entre Itália e México, pela segunda rodada da Copa das Confederações, mediante o pagamento de ingressos que variam entre R$ 57 e R$ 228.

Primeiramente, o grupo tentou avançar pelo viaduto Oduvaldo Cozzi, que dá acesso à entrada do estádio mas foi barrado pelos policiais. Tentou o acesso pela rua General Canabarro, mas recuou novamente diante da presença da polícia. Por volta das 15h, apareceu um aparato de segurança impressionante: Polícia Civil, Militar, Tropa de Choque, Guarda Municipal, Força Nacional.

O tumulto começou depois de um policial lançar um spray (que mais parecia um extintor) em direção aos manifestantes. A partir daí começou uma verdadeira chuva de bombas, tanto as de gás lacrimogêneo quanto as de efeito moral. Era difícil respirar, a reação de fuga foi instantânea e o corre-corre em direção à passarela quase causou um desastre.

Após esse primeiro embate, uma manifestante passou por mim e disse que estava havendo outra aglomeração, desta vez, na Quinta da Boa Vista, do outro lado dos trilhos. Quando cheguei, vi os manifestantes, já em número bem reduzido, gritando, levantando cartazes e às vezes sentando-se no chão. Pou depois dos manifestantes cantarem o hino nacional diante do Choque, houve o primeiro estouro. Em um movimento espontâneo, todos viraram-se para correr em direção da Quinta, um parque onde as famílias curtiam o domingo de clima ameno que logo se tornou caótico. Havia muitos homens, bombas, helicópteros. Os policiais vestiam roupas que nunca tinha visto, pareciam ninjas, super-heróis ou qualquer coisa assim.

Corri para o parque na esperança que ali dentro, por estar misturado aos “cidadãos de bem”, como se diz por aí, não correria risco. Ledo engano. Em poucos instantes, vi três cápsulas de gás caírem a menos de um metro das minhas costas. A correria foi ainda maior.  Já havia policiais dentro do parque e ouvi até mesmo de um deles que uma bomba quase o atingiu.

Alguns manifestantes tentaram se juntar a uma festinha de criança que acontecia ali  para se proteger, mas os pais ensandecidos gritavam “Rala daqui! Sai fora!”. Encontrei uma família meio perdida por ali, e fiquei junto deles. João Vicente, o pai da família que me abrigou, estava revoltado. “Isso é um absurdo! Pra que isso! Por que a minha enteada é obrigada a ver isso? Isso é um excesso”, dizia, apontando para os fuzis dos policiais. Relativamente protegido, vi as bombas caírem no parque até que poucos manifestantes foram negociar a saída da Quinta da Boa Vista.

O jogo já acabara, não fazia nem ideia de quem tinha ganhado. A estudante Cecília Souza, de 23 anos, me mostrou o braço completamente inchado, e com uma marca nítida da bala de borracha. Disse que estava de costas quando levou o tiro. Passei por alguns policiais que ironizavam os manifestantes que iam embora. “Ué, já correram? Vão embora de metrô, não era por isso que vocês tavam reclamando”, disse um deles.

Segundo a PM, seis manifestantes foram detidos. A corporação também afirmou que encontrou seis artefatos explosivos pelos policiais sendo um deles um coquetel molotov e que um soldado do 4º Batalhão da PM ficou ferido.

As fotos dessa reportagem foram feitas por André Mantelli

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