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Disputa entre cidadãos e prefeitura pela Marina da Glória revela como agem os órgãos em defesa do patrimônio quando estão em jogo os projetos “olímpicos”

Reportagem
15 de outubro de 2015
08:50
Este artigo tem mais de 8 ano

Por trás da polêmica “revitalização” da Marina da Glória, localizada no “filet-mignon do Rio”, como Lotta Macedo Soares se referia à sua criação, o Parque do Flamengo, trava-se uma batalha. De um lado, cidadãos que defendem o caráter público da marina e a integridade do parque tombado pelo Iphan (e de sua espetacular paisagem, tombada pela Unesco como Patrimônio da Humanidade) e, do outro, os apoiadores do projeto dos concessionários da marina – e do modelo de obras olímpicas “sem dinheiro público”, defendido pela prefeitura.

A BR Marinas – que adquiriu os direitos de concessão da Marina da Glória do falido Eike Batista (em uma transação questionada na Justiça por ferir as regras do edital da prefeitura) – obteve também o seu apoio “popular”. As associações de moradores dos valorizados bairros vizinhos, a Glória e o Flamengo, defendem o projeto, articuladas pela vereadora Leila do Flamengo, do PMDB, partido do prefeito Eduardo Paes. Nascida no Rio Grande do Norte, Leila Maria Maywald construiu sua carreira política no Rio ao se tornar presidente da Flama – Associação dos Moradores e Amigos do Flamengo. Mudou o nome em homenagem “a sua trajetória de defesa do parque do Flamengo” e se tornou notícia por declarações controvertidas, como a que fez, em 2013, na Câmara Municipal, afirmando ser “hipocrisia” dizer “que mendigo tem o mesmo direito que os cidadãos”. E angariou apoio de outras associações de bairros no entorno da baía reforçando a segurança “comunitária” com apoio dos comerciantes locais e de seu filho, Marcelo Maywald, que é subsecretário de Ordem Pública.

Do outro lado da disputa, com o apoio do deputado Marcelo Freixo (PSOL), estão a Federação das Associações de Moradores do Município do Rio de Janeiro (FAM Rio), o SOS Parque Flamengo, a Associação de Usuários da Marina da Glória (Assuma) e o movimento Ocupa Marina. Nesse front, a figura que se destaca é a presidente da FAM, Sonia Rabello, professora de direito administrativo e Urbanístico da Uerj há 32 anos, ex-vereadora do Partido Verde e ex-procuradora e diretora de fiscalização do Iphan.

Leila e Sonia têm visões opostas da situação: enquanto a primeira defende que a iniciativa privada é necessária para “valorizar o espaço”, a segunda diz que a reforma é “uma privatização do espaço público, uma ilegalidade jurídica e um dano enorme ao conceito de tombamento”. Foi Sonia quem escreveu o capítulo sobre “tombamento” nos regulamentos do Iphan.

E foi o Iphan, um órgão federal, que fez a balança pender para o lado do projeto empresarial apoiado pela prefeitura ao autorizar as obras de “revitalização”, infringindo as próprias normas. Prova disso é que, em 2007, o mesmo órgão se opôs à construção de uma garagem de barcos pela então concessionária EBTE para os Jogos Panamericanos, afirmando que a obra estaria em área “non aedificandi” (que não permite construções). Agora, em um piscar de olhos, a mesma área passou a ser considerada “edificável”, acusa Sonia.

Essa não foi a única regra quebrada pelo Iphan. Durante os debates na comissão instituída pela prefeitura em 2013 para formular diretrizes para a obra, o Iphan (e o IRPH, Instituto Rio Patrimônio, ligado à prefeitura e responsável pela preservação da paisagem tombada pela Unesco) se posicionou contra a recomendação do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) de que fosse feito um “concurso nacional ou internacional de arquitetura” para o projeto do parque. Chama atenção, no relatório final da comissão, a recomendação dos órgãos de preservação do patrimônio para rechaçar a sugestão do IAB: que houvesse “prudência com a realização do concursos por entender que os projetos a serem desenvolvidos podem impactar de forma negativa a paisagem da Marina da Glória e do Parque do Flamengo”. Afinal, foi exatamente o que aconteceu em consequência da obra realizada sem licitação e autorizada pelo Iphan. A altura máxima, que deveria ser de 12 metros acima do nível do mar, segundo a recomendação da comissão, foi ultrapassada pelas obras, que atingiram 14,7 metros. Mais grave: a diferença significa a perda de parte da reverenciada vista do Pão de Açúcar, em flagrante desrespeito à paisagem tombada pela Unesco.

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A altura do novo prédio vai ser o dobro do atual prédio. Foto: Anne Vigna

A toque de caixa

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O prazo até os Jogos Olímpicos foi desculpa para quase tudo nesse processo atabalhoado de aprovação da “revitalização”, termo que esconde o verdadeiro significado da obra – muito mais construção do que reforma. As vagas molhadas triplicaram, passando de 167 a 450, e as 73 vagas secas viraram 240, acomodadas em um estacionamento “seco” de três andares. Isso sem falar nos quatro restaurantes, um estacionamento de carros de 470 vagas em dois níveis e um espaço para eventos – tudo novo. Mais grave: fora dos parâmetros autorizados pelo Iphan. Em vez dos permitidos 10.000 m2 de edificação, a obra ocupa 14.790 m2  (que se tornarão 24.781 m2, contando os dois níveis).

A pressa para aprovar o projeto começou dentro da comissão que deveria zelar por sua preservação, composta também por membros da BR Marinas. Como conta o presidente do IAB-RJ, Pedro da Luz Moreira, ao explicar por que os arquitetos defendiam o concurso, “a prefeitura tinha uma urgência de tempo por causa dos Jogos [Olímpicos]”. No entanto, ele destaca: “Um concurso, em geral, faz ganhar tempo, porque você analisa bem melhor um projeto durante a fase do concurso, o que faz ganhar tempo depois. Com as audiências públicas, todo mundo analisa o projeto, e as pessoas opinam, fazem reclamações, negociam, o que permite melhorar sempre o projeto”.

No entanto, as pessoas não tiveram a chance de opinar. As organizações da sociedade civil não puderam nem analisar o projeto. O pedido da FAM foi negado pela Superintendência do Iphan, que disse não ser “seu papel convocar audiências públicas”, contrariando o Decreto 8.243, de maio de 2014, da presidente da República sobre consulta popular, principalmente por se tratar de um parque público. Detalhe: quando o pedido foi respondido, o projeto já tinha sido aprovado – em tempo recorde. Entre os dias 3 e 5 de novembro, foram feitos os pareceres de um técnico e do superintendente do Rio, então enviados para Brasília, e imediatamente aprovados pelo diretor de patrimônio e fiscalização do Iphan e, em seguida, pela presidente do órgão. Na pressa, a presidente deu a autorização “de punho próprio, em um ofício sem carimbo” e “sem passar pelo Conselho Consultivo, contrariando a Portaria 420 do Iphan, que diz que o projeto tem de ser aprovado pelo Conselho Consultivo e que a presidente é competente só em grau de recurso”, detalha Sonia Rabello.

Por que o Iphan aprovou tão rapidamente um projeto tão polêmico? Por que não houve concurso nem audiências públicas?

Cenas de pressão explícita

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O estacionamento seco de barcas já esta terminado e funciona. Foto: Anne Vigna

Para Leila do Flamengo, “o projeto foi aprovado porque é um projeto excelente que não vai custar nada para a prefeitura”. Para Sonia Rabello, a história é outra: “Eu não tenho dúvida da pressão que foi feita sobre o Iphan por causa dos Jogos [Olímpicos]. O nível da pressão foi aumentado com o tempo. O Iphan é um órgão pequeno com funcionários mal pagos, não é o Banco do Brasil. Então, com essa pressão dos Jogos, tinha que encontrar um jeito de aprovar o projeto”.

A Pública obteve o inquérito civil aberto pelo Ministério Público Federal (MPF) depois de uma audiência pública convocada pelo órgão no dia 17 de abril deste ano com o objetivo de obter subsídios para fundamentar a investigação. Entre os documentos, constam denúncias de “pressão política” e de “interesses econômicos fortes” feitas pela assistente técnica Cláudia Girão, que era chefe da divisão de Estudos de Acautelamento e Registro do IPHAN, e que sofreu diversas tentativas de afastamento por ter agido contra as reformas propostas em 2007, para os Jogos Panamericanos. Em três e-mails enviados por Cláudia ao Ministério Público, ela relata ter sofrido represálias por ter mantido suas convicções: “Tive que me aposentar do Iphan, pois as ‘perseguições’ que vinham me fazendo por causa da Marina da Glória, do Maracanã e do Parque Nacional da Tijuca, pioraram bastante desde a segunda metade do semestre do 2013 […]. A pressão piorou em 2014, pois prepararam um outro projeto para a Marina da Glória, que também não me mostraram, e sabiam que eu ia me posicionar. […] Chegaram a me cortar três meses do salário sem sequer abrir um processo administrativo. Para eles, foi uma espécie de punição para colocar medo nos outros funcionários”.

A Pública tentou, sem sucesso, entrar em contato com Cláudia Girão e teve seus pedidos de entrevista recusados pelo Iphan. O procurador Leonardo Cardoso de Freitas, que conduz a investigação pelo MPF, ainda não se pronunciou. Há mais quatro ações judiciais em curso contra as obras na marina, todas movidas pela sociedade civil, mas é difícil reverter a obra a esta altura do campeonato. “Na melhor das hipóteses, virá um TAC [Termo de Ajustamento de Conduta], mas não acredito que a obra vai parar nem que venha uma ordem para destruí-la”, diz a advogada do Ocupa Marina, Natasha Zadorosny.

O procurador do MPF recebeu cartas, depois da audiência pública, que constam do inquérito. Nelas também se sente uma discreta pressão sobre o MPF. Exemplo: em junho deste ano, a Autoridade Pública Olímpica (APO) escreveu: “É competência do consórcio interfederativo o acompanhamento de qualquer situação que pode comprometer a continuidade da execução do cronograma de obras em curso na Marina da Glória, gerando riscos à preparação e realização dos Jogos Rio 2016”.

Os empresários do turismo levaram sua opinião ao conhecimento do procurador: “O Rio Convention & Visitors Bureau é plenamente favorável ao projeto de Revitalização da Marina, entendendo que esta iniciativa é de vital importância para suprir a necessidade de espaços e instalações na zona sul”.

“Vital”, “riscos”, palavras fortes nas cartas, para dizer como o assunto é sério. A verdade, porém, é que a Marina nem sequer necessitava de reforma para ser a sede de competições de vela, como reconheceu o próprio Comitê Olímpico e foi comprovado nos eventos-teste. A única carência constatada é a de saneamento, uma obra da Cedae que nada tem a ver com a tal “revitalização”, que, ao que tudo indica, está mais voltada para a comercialização dos espaços no Parque do Flamengo depois da Olimpíada.

“Um bom negócio para todo mundo”

Segundo Pedro Guimarães, diretor da BR Marinas para a Marina da Glória, estão previstos vários eventos para o novo espaço, entre outros o Cirque du Soleil e o Rio Boat Show. Na edição de 2015, na Barra da Tijuca, o Rio Boat Show recebeu 30 mil visitantes, o que preocupa os que se opõem ao projeto: “O Parque do Flamengo nunca teve como vocação sediar os eventos. Imagina o número de carros, caminhões de lixo, de fornecedores que vão ter que passar para assegurar a realização de eventos”, afirma Antonio Carlos Cardoso, membro da Assuma, que congrega os usuários da marina. Para eles, a marina ideal seria voltada para os esportes de vela, com um lugar para reparar os barcos, enfim, um espaço público voltado para a prática esportiva da população, sem fins lucrativos – da maneira como foi concebida quando o Rio ainda não era a Cidade Olímpica e a terra das parcerias público-privadas.

O certo é que a Marina da Glória que se desenha agora não será nada transparente, já que, apesar de o projeto dos novos equipamentos ser ricamente detalhado – e o preço para os barcos ter quase triplicado –, a BR Marinas não revela quanto pretende lucrar com o negócio. Quando indagada diretamente sobre isso pela Pública, a resposta foi: “No momento é impossível prever”. O que é no mínimo estranho para uma empresa grande e experiente, com três marinas em Angra dos Reis e participação em marinas americanas.

Não há dúvida que o negócio será compensador, já que faltam vagas para barcos na cidade e espaço para eventos na zona sul. Pelo contrato de concessão, que consta da representação ao MPF, a empresa BR Marinas tem de pagar apenas R$ 7.160 mensais, além de 2% de sua receita líquida, à prefeitura. O que Leila do Flamengo chama de “um bom negócio para todo mundo”.

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“See you em 2016”. A propaganda da BR Marina na parede da obra. Foto: Anne Vigna

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