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Fundador do partido, sociólogo diz que PT “não tem que ir a público fazer autocrítica” e que nossos ricos, ao contrário do 1% americano, “não têm legitimidade para governar” porque foram incapazes “de construir um Estado nacional”

Entrevista
19 de junho de 2017
11:59
Este artigo tem mais de 6 ano

“Vou te pedir para não usar o termo ‘autocrítica’, porque é um termo stalinista.” A frase vai de encontro ao intuito da reportagem. Em quase duas horas de entrevista, Ricardo Musse, doutor em Filosofia e coordenador do Laboratório de Estudos Marxistas (LEMarx) da Universidade de São Paulo, foi instigado pela reportagem da Pública a fazer um balanço dos últimos movimentos do Partido dos Trabalhadores – do qual não é filiado, mas fundador e entusiasta.

Em pauta, temas controversos, como a recente eleição de Gleisi Hoffmann à presidência do partido. Ré na Lava Jato, a senadora paranaense é citada nas delações premiadas do ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa e do doleiro Alberto Yousseff, que a acusam de ter recebido R$ 1 milhão em propinas durante sua campanha ao Senado, em 2010. Ao ser eleita, Gleisi afirmou que não faria uma autocrítica em nome do PT porque “não ficaria enumerando erros para a burguesia”. Ricardo Musse concorda. “Roupa suja se lava em casa. A crítica ao PT já foi feita”, afirmou.

Musse tratou como “uma invenção da mídia” o possível acordo entre os três maiores partidos do Congresso – PT, PMDB e PSDB – em nome das eleições indiretas e vê a eleição de Gleisi como um indicativo de um enfrentamento mais franco com o PMDB. De autocrítica mesmo – ou autorreflexão, como prefere Musse – só ao governo Dilma e à política de campeões nacionais. “Foi um equívoco do pessoal da escola econômica da Unicamp, da qual a presidenta Dilma foi aluna”, avalia.

“Os erros [de política econômica] começaram em 2011. Têm a ver com a reorientação que houve na transição do governo Lula para o governo Dilma”, aponta Musse (Foto: Flickr/Carlos Neder)
Após ser eleita para a presidência do partido, a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) disse que não faria nenhuma autocrítica porque “não ficaria enumerando erros para a burguesia”. Como o senhor vê essa postura nesse momento? Essa autocrítica por parte do PT não é um anseio da sociedade e da própria esquerda?

Eu concordo com a senadora. Eu acho que a crítica ao PT já foi feita. E foi feita pelas diversas posições. Tem a crítica moralista/pequeno-burguesa da mídia. Tem a crítica moralista/pequeno-burguesa das corporações, e não é à toa que nós temos hoje uma aliança entre a classe média tradicional – aquelas corporações de médicos, juízes, advogados –, e jornalistas que fizeram a crítica moralista, como foi historicamente a posição da classe média no Brasil desde o tenentismo, em relação a governos de teor trabalhista ou de governos que utilizassem o aparelho de Estado para promover o mínimo de justiça social e de desenvolvimento, que fossem minimamente nacionalistas… Essa é uma contraposição que nós tivemos no interior da sociedade brasileira desde a década de 1920 para não remontar a mais tempo. A crítica à esquerda já foi feita pelos partidos situados num espectro ideológico mais à esquerda que o PT e, inclusive, por setores da militância e da base social do PT. A própria candidatura opositora à da senadora, a candidatura do senador Lindbergh [Farias, do PT do Rio de Janeiro], levantou temas dessa crítica que são os temas que ecoam na militância e em setores da esquerda. Em um seminário a que eu assisti, o senador Lindbergh fez um discurso que eu diria que estava mais à esquerda do que muitos setores do Partido Socialismo e Liberdade [Psol].

Que temas foram esses?

Ele disse, por exemplo, que o PT havia deixado de fazer a reforma do sistema financeiro, a reforma do sistema tributário, a reforma dos meios de comunicação e, em termos políticos, havia ignorado o papel de classe do Estado e que, portanto, havia imaginado que o Estado fosse um instrumento neutro que pudesse servir aos interesses do partido que estivesse no governo. Como se não se tivesse levado em conta essa distinção entre governo e poder e que não havia, então, se considerado o caráter de classe do Estado e que numa sociedade capitalista o Estado é sempre uma expressão ideológica da classe dominante. [O senador] Recorreu aí aos textos clássicos. Ele terminou falando que o PT havia conciliado [com esses interesses]. Então, o candidato que teve 40% dos votos na eleição interna do PT tinha um discurso de crítica e de autocrítica mais bem fundamentado do que amplos setores que se dizem e que se situam à esquerda do PT.

Mas isso não ficou muito restrito aos debates internos?

Mas é nisso que eu concordo com a senadora. A roupa suja se lava em casa. O PT não tem que ir a público fazer uma autocrítica. Isso seria entrar na agenda dessa direita pequeno-burguesa e moralista.

No entanto, a pauta de combate à corrupção cresceu muito nas últimas duas décadas, em parte como um ataque ao PT, mas também arregimentou eleitores do partido…

Mas claro. Quem reintroduziu a pauta da corrupção no Brasil foi o PT. A pauta de combate à corrupção foi introduzida no Brasil pela UDN [União Democrática Nacional]. Era a pauta do brigadeiro Eduardo Gomes [patrono e ex-ministro da Aeronáutica], do Carlos Lacerda. Foi a pauta que levou a oposição a contestar tão fortemente o segundo governo Vargas até este ser forçado ao suicídio. Foi a pauta da oposição que enfraqueceu os governos Juscelino e João Goulart de tal forma que possibilitou que os militares dessem um golpe com algum respaldo popular. O golpe, ao menos no início, tinha respaldo popular e no braço político dessa classe média tradicional que era a UDN. Quem reintroduziu isso nos anos 1980 foi o PT, por outras fontes. As fontes do PT eram outras, sobretudo religiosas, mas o PT também tinha uma certa base nesses setores [da classe média]. Tanto que a eleição de 1989 ficou polarizada entre o Collor e o Lula. A classe média toda votou no Lula e os pobres, os “descamisados”, como se dizia à época, votaram no Collor. Eu não conhecia nenhum eleitor do Collor. O PT reintroduziu essa pauta. Há muitos que dizem que o partido está sendo vítima do veneno que ele próprio inoculou no debate político brasileiro.

Mas, depois que os movimentos de direita – como o MBL, o Vem Pra Rua – surgiram, eles arregimentaram também pessoas que foram eleitores dos governos petistas.

Esses movimentos não surgiram, eles foram introduzidos no Brasil por agências e think-tanks norte-americanos, como os irmãos Koch e outros, que foram os financiadores de todos esses movimentos. Esses rapazes aí foram formados em cursos nos Estados Unidos, em universidades americanas. Esses movimentos têm a sua legitimidade ao ter uma pauta dessa prática política anticorrupção moralista pequeno-burguesa. Eles se tornaram a expressão de amplos setores da classe média tradicional. O combate à corrupção do PT ecoou na classe média, mas as fontes do partido eram outras. A base social principal do PT sempre foi a classe trabalhadora. Então, por mais que o PT tenha tido o apoio [da classe média], como teve em 1989, ele sempre foi um partido de comunidades eclesiais de base, de sindicalistas, de intelectuais etc. Tem um estudo famoso do professor Leôncio Martins Rodrigues, que não por acaso é um dos melhores amigos do professor Fernando Henrique Cardoso, companheiro de pôquer, que dizia que no primeiro Congresso do PT a maioria dos militantes era oriunda do sindicalismo e do funcionalismo público. Esse outro setor importante da classe média tradicional – o funcionalismo público – estava junto com o PT. Inclusive a pauta anticorrupção colocada pelo PT era outra: dizia respeito às corrupções praticadas pelo regime militar, à corrupção da burguesia, em suma, à corrupção inerente ao sistema capitalista. Havia movimento anticorrupção no PT que tinha essa dimensão de ser um movimento anticapitalista.

Para Musse, Gleisi Hoffmann “tem a legitimidade necessária para ser presidenta do PT” (Foto: Lula Marques/Agência PT)

Mas como fica o eleitor petista que vai às ruas protestar contra a corrupção dos governos petistas?

Eu diria que a parcela desse eleitorado é muito pequena. Se nós concordarmos que a classe média tradicional é a base social desses movimentos – e as pesquisas empíricas feitas pelos professores da Unifesp, sobretudo pela professora Esther Solano, mostram que esses movimentos eram compostos majoritariamente por setores da classe média tradicional –, esses setores não votavam no PT. O PT não ganhou nunca nenhuma eleição no primeiro turno. Diferentemente do PSDB: Fernando Henrique foi eleito e reeleito no primeiro turno. A divisão da sociedade brasileira ultrapassa essas questões de conjuntura política, de combate à corrupção. Essas questões têm uma dimensão social forte, elas expressam essa divisão da sociedade: setores que são hegemonizados pela classe média tradicional e outros setores que são hegemonizados pela liderança dos movimentos sindicais e setores da classe trabalhadora. Essa é a grande divisão que nós temos no Brasil desde a década de 1920. Veja, em 1922, surgiram dois movimentos muito importantes na sociedade brasileira: o Partido Comunista e o tenentismo. Um é uma expressão da classe média e outro é a dos movimentos sociais e dos trabalhadores. Nós ainda estamos vivendo essa divisão hoje. Hoje se fala até que o Judiciário é o novo tenentismo. Essa expressão é verdadeira e equivocada: verdadeira porque o Judiciário vem sendo a expressão desse mesmo sentimento [da classe média] e equivocada porque não há um novo tenentismo. É um movimento que sempre existiu na sociedade brasileira e não foi nunca suplantado. Essa é uma tensão muito importante na sociedade. No Brasil, nós não temos uma burguesia que seja capaz de se legitimar como tal. Você pode discordar ou não da burguesia norte-americana – ou, no termo usado por Marx, da classe dos capitalistas –, que nós podemos resumir didaticamente como esse 1% que não se confunde com a classe média tradicional, mas esse 1% no Brasil não tem legitimidade para governar diretamente. Diferentemente do 1% norte-americano. O Trump foi eleito e todo mundo sabe que ele faz parte desse 1%. Mas a classe dominante nos Estados Unidos tem legitimidade porque eles transformaram os Estados Unidos na maior potência econômica, militar e cultural do planeta. A nossa classe dominante não foi capaz de construir um Estado nacional devido aos seus vínculos históricos, desde a forma como o Brasil foi colonizado, a inserção do Brasil no sistema capitalista de uma forma muito precoce. Essa classe nunca se viu e nunca se colocou como uma classe organizadora da nação. A organização da nação, a construção do Estado nacional, que aqui começa em 1930, a construção de um Estado nacional com essa consciência de que era necessário construir uma nação aqui, algo que já havia começado com José Bonifácio, com os inconfidentes, que já estava nos intelectuais brasileiros; mas, para ficarmos no século XX, essa construção do Estado, diferentemente da República Velha, começa nos anos 1920, e nos anos 1930 começa essa construção do Estado. E a partir daí o Brasil sempre oscilou entre momentos em que o Estado foi comandado pela classe média tradicional e os momentos em que o Estado foi comandado por um representante, seja lá qual for sua origem social, que mobiliza e apela à classe trabalhadora. Nós temos essa dualidade histórica no Brasil. O que nós vivemos hoje não é nada de novo. Basta olhar com uma certa atenção para a história brasileira.

O senhor diz que a classe trabalhadora não esteve nas manifestações anticorrupção…

Nem a classe trabalhadora nem o que meu colega André Singer chama de subproletariado.

Mas a classe média também teve um papel na eleição dos governos petistas.

Não.

Não houve um momento de coalizão, por exemplo, em 2002?

Em 2002 talvez a classe média tenha tido algum papel. Essa é a tese que o André Singer defende. Mas eu discordo. Eu acompanhei direta e indiretamente esse influxo do PT. Depois de 1989, todo mundo estava certo de que o Lula seria eleito em 1994, que a sociedade só estava esperando o momento. Mas, devido a uma série de conjunturas do momento e, sobretudo, às manobras políticas do então presidente Itamar Franco, que conseguiu fazer seu sucessor com muita competência, o PT se viu alijado do poder que estava à sua mão durante todos os anos 1990, e, depois, quando veio a globalização, se criou uma ideia de que o PT tinha deixado passar o seu momento. Aí se fez uma inflexão no PT que mudou sua base social: o PT deixou de ser comandado ideológica e politicamente por setores dessa classe média tradicional e quem assumiu o comando do partido foram os setores mais vinculados à classe trabalhadora, que percebeu que para ser eleito no Brasil – e isso é uma conjuntura que nasceu com as eleições no Brasil depois de 1989 – eram necessários dois elementos: o apoio do subproletariado, para o qual era preciso acenar com alguma coisa, e ter o dinheiro de financiamento que vinha do 1%. Então esse foi o giro. O PT deixou de ser um partido de expressão da classe média tradicional e passou a ser um partido dos polos. Ninguém no Brasil foi eleito até hoje sem essa aliança, o que deixa em segundo plano a classe média tradicional. Essa classe que hoje esperneia e chegou ao ponto de deslegitimar uma eleição nacional porque ela nunca conseguiu ter maioria para eleger um presidente. Todos os presidentes foram eleitos com os votos do subproletariado e com o dinheiro do 1%.

Mas a eleição da Gleisi, ré na Lava Jato, não vai contra um anseio da sociedade de se tornar menos tolerante à prática da corrupção e ao que se poderia se esperar do PT após todos os escândalos?

Eu discordo porque isso seria seguir a pauta moralista da direita. A senadora Gleisi demonstrou nos cargos que ela exerceu que, além de ser uma militante aguerrida contra o impeachment da presidente Dilma e contra esse estado de exceção explícito, tem a legitimidade necessária para ser presidenta do PT, além de ser mulher, de ser intelectual com a capacidade de reflexão necessária para o exercício do cargo. O PT não pode, e isso parece estar implícito nessa escolha, deixar que a direita escolha quem deva ser seus dirigentes. Foi o erro que o PT cometeu em 2005, quando abdicou de quadros importantes da direção partidária como o Luiz Gushiken, o Antonio Palocci, José Dirceu e José Genoino. O PT os colocou em sacrifício para aplacar a cólera da classe média tradicional. Mas o resultado disso é que essa cólera não se aplacou e o PT perdeu muito em capacidade de organização, reflexão e inserção na sociedade brasileira ao abrir mãos desses quadros importantes. Tudo bem que o PT é um partido grande, o Brasil é um país enorme e o partido tem como renovar seus quadros, mas o PT não pode ficar o tempo todo fazendo isso porque eles vão atacar um por um. Nesse momento, como a senadora Gleisi se destacou nessas lutas, a direita e a Lava Jato vem acusando-a de corrupção, fato que nós não sabemos ainda se tem bases mesmo para que se abra um processo. O PT não pode se pautar por boatos da direita. Se ele for fazer isso, é melhor fechar a porta e jogar a chave fora.

O senhor vê nesta mesma chave de interpretação os desagravos feitos no Congresso do PT a José Dirceu e João Vaccari Neto?

Sim. Aí sim uma autocrítica válida [risos].

Após o escândalo da JBS, surgiu um movimento nacional que reivindica eleições diretas em caso de afastamento do presidente Temer. Mas isso tem aparecido de maneira ambígua nos discursos das lideranças petistas. O ex-presidente Lula, por exemplo, no discurso da posse do diretório municipal do PT em São Bernardo do Campo, chegou a falar textualmente em “diretas já” e pedir a saída do Temer. Dias depois, no 6º Congresso do PT, ele se referiu muito mais às eleições de 2018. Como explicar essa mudança de discurso em um espaço de poucos dias?

Não há mudança nenhuma. Uma das funções do Lula – e por isso ele faz tantos discursos – é motivar e orientar a militância. Não só a militância direta, mas a militância que está na sociedade brasileira como um todo. A luta pelas diretas é uma bandeira aprovada no Congresso do PT. Mas o que o Lula quis de certa forma antecipar, na minha interpretação, é o seguinte: “Olha, gente, nós vamos entrar numa luta difícil de ser ganha, que é a luta pelas diretas, que vai depender de dois terços do Congresso. É importante para marcar oposição a este governo. Mas, se por acaso não conseguirmos isso – e a chance de conseguirmos é maior do que a de não conseguirmos –, temos 2018”.

Mesmo com toda a narrativa do golpe, a direção nacional anterior do PT defendeu o apoio aos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Eunício Oliveira…

Quanto ao Eunício não havia outra alternativa. Mas eu acho um equívoco muito grande terem apoiado o Rodrigo Maia. Um equívoco maior ainda foi do PCdoB, que o apoiou explicitamente com uma contrapartida ridícula: o Rodrigo Maia deixou de nomear os membros de uma comissão já aprovada para uma CPI da UNE. O Rodrigo Maia já havia demonstrado isso e mostra cada vez mais: ele tem um vínculo intestino com o governo Temer, um vínculo familiar. Ele é genro do Moreira Franco!

Os dois candidatos do Congresso do PT criticaram muito essa postura da antiga direção. A eleição de Gleisi indica um enfrentamento mais franco com relação ao PMDB?

Basta ver o histórico da senadora. Em termos de trajetória, a senadora Gleisi e o senador Lindbergh se diferenciam em função de grupos sociais e correntes que os apoiaram na eleição. Mas em termos de enfrentamento político eles são aliados. Essa era a disputa dos sonhos da militância. Não havia um terceiro nome. É uma expressão da militância, diferentemente do Rui Falcão, que, apesar de ser muito preparado e não ter nenhuma acusação de corrupção, não era querido da militância.

Algumas semanas atrás se falou num “acordão” entre os três maiores partidos do Congresso – PT, PMDB e PSDB – por eleições indiretas. Alguns nomes, como o do ex-ministro Nelson Jobim, chegaram a ser mencionados…

Isso é invenção da mídia. Isso não existe. As pessoas conversam entre si, faz parte da vida política. Para dar um exemplo, o Fernando Haddad e o Doria conversam. Os militantes deles não conversam, mas eles conversam. Essa informação parece mais um balão de ensaio. A própria senadora Gleisi foi muito enfática no seu discurso. Ela disse que o PT não votou em eleição indireta nem para sair de ditadura. Ele iria votar agora nessa conjuntura? Num estado de exceção escancarado? Esse é o tipo de coisa de que a esquerda e as redes sociais se alimentam, e não pararam para pensar que isso não faz o menor sentido. Ah, mas deu na imprensa. Se deu na imprensa, é verdade?

Passando à economia. Em abril, o PT lançou um pacote intitulado “Seis medidas emergenciais para recuperação da economia, do emprego e da renda”. Os críticos do partido disseram que as medidas apresentadas foram justamente as mesmas adotadas nos governos anteriores e que geraram a atual crise econômica. Como o senhor responderia a essa crítica?

Nós temos que começar dizendo que o pressuposto da crítica à política econômica do PT é equivocado. Disseminou-se muito – e até setores da esquerda compraram essa tese – que o PT surfou no boom das commodities. Isso é uma balela. O primeiro governo Lula soube se inserir, e isso não era natural, numa conjuntura em que o setor dinâmico do capitalismo mundial eram os países da semiperiferia – os famosos Brics [sigla em inglês para Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul]. O Brasil soube se inserir politicamente em termos de relações internacionais e articular para que aquela conjuntura se tornasse favorável para nós, coisa que nem sempre foi feita. Grande parte da sabedoria do Getúlio advém daí também. Todo mundo fala que Getúlio se aliou à classe trabalhadora, mas ele também fez acordo com os Estados Unidos. Ele sabia que a sociedade brasileira toda, por formação, ia ficar ao lado dos Aliados contra o Eixo, que o Eixo não tinha base nenhuma no Brasil. Ele soube ficar em cima do muro até negociar os melhores termos possíveis com o Roosevelt. Esse boom de commodities foi só uma expressão mínima do fato de que o capitalismo crescia em termos razoáveis no mundo e a ritmo acelerado nos Brics. Depois da crise gestada nos Estados Unidos, que começa em 2007, o Brasil soube tocar a coisa. Até 2010, enquanto o mundo estava em crise, o Brasil estava crescendo. Isso vai ficar na história brasileira como um período áureo, vai estar nos livros de história. Só se falava em Brasil no exterior. Tudo bem que a China já cresce independente do mundo – isso devido a fatores endógenos –, mas o Brasil estava crescendo em plena crise. Tinha matéria sobre o Brasil todo dia nos jornais estrangeiros. Os erros começaram em 2011. Tem a ver com a reorientação que houve na transição do governo Lula para o governo Dilma, que é uma coisa ainda a ser estudada, e eu ainda não me sinto à vontade para falar muito a respeito. Mas houve uma reorientação de base social, de política. Acho expressivo que o Celso Amorim, que fez todo esse movimento no governo Lula, não tenha sido mantido na gestão Dilma. Essa reorientação não foi só na política econômica. O ministro da Fazenda foi o mesmo [Guido Mantega], mas ele estava lá para cumprir ordens. Eu diria que houve uma reorientação equivocada. Foram feitas análises equivocadas da conjuntura econômica mundial e local que levaram à adoção de políticas que fizeram o país deixar aquele movimento de ir na contramão da crise. Quando o Lula disse que a crise era uma “marolinha”, era uma avaliação correta. Depois virou um tsunami, mas foi porque aconteceram coisas. Não é porque era inevitável.

A condução da política econômica nos governos petistas foi baseada no Estado (BNDESPar, créditos subsidiados, desonerações, protagonismo dos bancos públicos etc.). No entanto, muitos dos beneficiados por essas políticas foram implicados na Lava Jato….

Esquece a Lava Jato… A tradição intelectual marxista diz que há duas formas de o capitalismo se preservar: ou como liberalismo ou como capitalismo de Estado. Na história do Brasil, nós tivemos sempre essa dicotomia entre os governos mais alinhados ao liberalismo, cuja base social é a classe média tradicional, e os governos mais alinhados à tradição do capitalismo de Estado. A construção da nação no Brasil, para usar um termo que Celso Furtado popularizou, tinha que se dar entre esses dois polos, e a esquerda no Brasil sempre apostou que a construção da nação tinha que se dar via Estado porque a burguesia brasileira, por ser ligada à importação e exportação, não está firmada em território nacional. A burguesia brasileira não mora no Brasil. O Silvio Santos mora em Miami. O dono da Ambev mora na Suíça. A classe capitalista brasileira não reside territorialmente no Brasil, não conhece o povo brasileiro, não sabe das riquezas e potencialidades do povo brasileiro. A esquerda defende que a construção da nação tem que ser feita via Estado. No mundo até hoje, nós só temos essas duas polaridades – capitalismo de Estado e liberalismo. A terceira via seria o socialismo, que infelizmente não aconteceu nem mesmo nos países em que se fez a revolução.

Segundo o sociólogo, Lula passa um recado à militância falando publicamente em “Diretas Já”: “É importante para marcar oposição a este governo. Mas se por acaso não conseguirmos isso (…) temos 2018” (Foto: Paulo Pinto/Agência PT)

Mas e a política de campeões nacionais, cujos grandes beneficiados (Odebrecht, JBS, Eike Batista) foram empresários que posteriormente seriam pegos na Lava Jato?

Aí eu vou nomear. Isso foi um equívoco do pessoal da escola econômica da Unicamp, da qual a presidenta Dilma foi aluna. Eu discordo totalmente disso. Um dos primeiros a criticar isso no Brasil foi o Vladimir Safatle, cujo pai foi muito próximo do Celso Furtado. Ele já combatia desde o primeiro momento essa tendência à oligarquização, que já estava presente no governo Lula, mas que só se firmou mesmo nos mandatos da presidenta Dilma. Esse foi o equívoco de tentar se implantar aqui o modelo do leste asiático, o modelo da Coreia do Sul. Lá o Estado injetou o dinheiro nos grandes capitalistas via todos esses mecanismos e transformou as empresas nacionais em gigantes mundiais: a Samsung, a LG, a Hyundai etc. Essa escola defendia que isso tinha que ser replicado no Brasil. E, na Coreia, eles privilegiaram quem já era grande. Em quais setores que o Brasil já era competitivo mundialmente? Bebidas, frigoríficos, construção civil. Injetaram esse dinheiro onde o Brasil já tinha potencial. Tudo bem que isso passa por relações políticas. O cara sabe que vai ser beneficiado e vai dando o troco. Ele olha e fala: “Ah, essa política do PT vai me beneficiar, eu vou financiar o partido”. Só que esse modelo foi aplicado na Coreia do Sul, que é uma ditadura. O pessoal fala: “Ah, mas a Coreia do Sul…”. É uma ditadura. Isso não daria certo num país democrático, ainda mais num país grande e complexo como o Brasil e não em um país pequeno como a Coreia. Num país grande e complexo como o nosso, o que acontece? Você coloca contra si todos os outros concorrentes. Todos os outros donos de frigoríficos que não são da JBS ficaram contra o governo. E a própria JBS mesmo nem fechou com o PT.

Não seria o momento de o PT fazer alguma ponderação pública sobre o que ocorreu com essa política de campeões nacionais?

Mas o partido comprou isso? Tem algum documento do partido em que se referendou isso?

Mas eu me refiro ao lançamento dessas seis medidas em abril…

Pois é, mas eu estou falando o seguinte: essa política de campeões nacionais não foi referendada pelo partido. Não há nenhum documento do partido referendando isso. Isso foi política do governo, sobretudo do governo Dilma.

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