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Checagem

Decisão de juiz sobre acusado de ejacular em jovem no ônibus é discutível

Lacunas na legislação sobre crimes de violência sexual permitem diferentes interpretações; não há consenso entre especialistas

Checagem
1 de setembro de 2017
17:26
Este artigo tem mais de 6 ano
Vítima de violência sexual dentro de ônibus na av. Paulista é amparada por mulheres ao descer do coletivo
Vítima de violência sexual dentro de ônibus na av. Paulista é amparada por mulheres ao descer do coletivo (Foto: Reprodução/Facebook)

“Entendo que a conduta pela qual o indiciado foi preso melhor se amolda à contravenção penal do artigo 61, Lei das Contravenções Penais [importunação ofensiva ao pudor], do que ao crime de estupro (artigo 213, Código Penal).” – Termo de audiência de custódia de Diego Ferreira de Novais, preso em flagrante sob acusação de estupro, elaborado pelo juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto

Discutível

No dia 29 de agosto, Diego Ferreira de Novais foi detido pela Polícia Militar na Avenida Paulista, acusado de ter se masturbado e ejaculado sobre uma jovem dentro do ônibus. Preso em flagrante, ele ficou detido no 78º DP até ter sua soltura determinada pelo juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto, do Tribunal de Justiça de São Paulo, após audiência de custódia na manhã seguinte. No termo da audiência, o magistrado justifica sua decisão alegando que o caso se encaixa melhor em uma contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor do que em um crime de estupro.

Souza Neto usou o artigo 61 da Lei de Contravenções Penais, de 1941, que dispõe sobre a ação de “importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor”. A pena para essa contravenção é uma multa. Já o crime de estupro prevê reclusão de no mínimo seis anos. A contravenção penal não tem status de crime, segundo a Constituição. A decisão do juiz de não pedir a prisão preventiva do suspeito, assim como sua justificativa, causaram revolta nas redes sociais. O acusado tem no seu histórico pelo menos outras 15 passagens pela polícia com acusações similares.

O Truco – projeto de checagem de fatos da Agência Pública – analisou o trecho da decisão em que o juiz classifica a conduta do acusado. A reportagem conversou com cinco especialistas: três professores de direito, uma advogada especializada em crimes contra a mulher e uma promotora de Justiça. Não há consenso sobre a interpretação do caso. Três dos entrevistados, contudo, afirmam que seria possível enquadrar a conduta de outra maneira. Segundo eles, a legislação abre espaço para interpretações como a que foi feita pelo juiz. Além disso, quatro dos especialistas concordam que faltam na legislação definições intermediárias entre o crime de estupro e a importunação ofensiva ao pudor. A frase foi classificada pelo Truco como discutível, já que a conclusão sobre o seu teor varia de acordo com a interpretação adotada.

O estupro é definido pelo artigo 213 do Código Penal, que faz parte do título VI, o dos crimes contra a dignidade sexual. Essa categoria foi alterada em 2009, por conta da Lei nº 12.015. O Código Penal passou a qualificar como estupro o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A definição do crime ficou mais abrangente, pois passou a considerar como estupro qualquer tipo de ato libidinoso praticado sem consentimento e mediante ameaça ou violência. Não é mais necessário que a violência praticada inclua penetração. Ainda há termos do artigo, no entanto, que causam confusão para quem não é da área jurídica e dão margem a interpretações diversas, segundo os especialistas procurados pelo Truco.

Um dos pontos mais polêmicos é o que usa a palavra “constranger”. Em sua decisão, o juiz Souza Neto diz entender que “não houve constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco de ônibus quando foi surpreendida pela ejaculação do indiciado”. Alamiro Velludo Salvador Netto, professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), explica que, juridicamente, constranger significa forçar alguém a fazer algo contra a sua vontade. “Não se trata de constrangimento no sentido de incomodar, de causar vergonha, mas no sentido de subjugar a pessoa, de incliná-la aos seus desejos”, afirma. Apesar disso, o juiz também destaca na decisão que o ato é “bastante grave” e que a passageira “logicamente ficou bastante nervosa e traumatizada”. Monica de Melo, defensora pública e professora de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), diz que é importante frisar a existência de “um enorme constrangimento à mulher e à sua liberdade”, mas concorda que isso não se encaixa na definição de constrangimento utilizada no meio jurídico.

Outro ponto importante no conceito legal de estupro é o condicionamento do crime à existência de “violência ou grave ameaça”. Humberto Fabretti, professor de Direito Penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie, avalia que os termos usados no artigo 213 são técnicos e pressupõem o uso de força física e ameaças verbais, respectivamente. “Do ponto de vista jurídico, [a conduta em questão] não caracteriza estupro pois esse crime exige que haja submissão da vítima, mediante violência ou grave ameaça, a participar do ato sexual”, avalia.

Além do crime de estupro, a categoria do Código Penal dedicada aos crimes contra a dignidade sexual delimita ainda os crimes de violência sexual mediante fraude e assédio sexual. O primeiro é o ato de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. Trata-se, por exemplo, do caso de uma mulher que foi intencionalmente alcoolizada ou drogada pelo abusador antes da violência sexual, segundo a advogada Ana Lúcia Keunecke, pós-graduada em Direito Processual Civil pelo Mackenzie.

Já o crime de assédio sexual está condicionado a uma relação hierárquica entre a vítima e o acusado. A lei o define como “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. Dentre os juristas entrevistados para esta reportagem, nenhum avaliou que os crimes de assédio sexual ou violência sexual mediante fraude poderiam se aplicar ao caso da Avenida Paulista.

Junto com o estupro, esses são os únicos três crimes listados no capítulo de crimes contra a liberdade sexual do Código Penal. Para muitos especialistas, essas definições não são suficientes para abarcar todos as acusações possíveis. Silvia Chakian, promotora de Justiça do estado de São Paulo, avalia que problemas na legislação dificultam o trabalho de juízes e defensores. “Essa decisão demonstra uma dificuldade que nós temos, justamente porque não há uma graduação entre um crime muito grave, o de estupro, e outro que tem uma pena ínfima, que é a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor”, diz.

Dos cinco entrevistados pelo Truco, quatro afirmaram que a legislação é incompleta por essa mesma razão. Alamiro Velludo, da USP, diz que “faltam penas proporcionais a cada tipo de agressão” e que isso é “uma lacuna na legislação”. Monica de Mello, da PUC-SP, concorda. “O direito penal não está resolvendo essas questões de forma satisfatória”, afirma. “Deveríamos ter crimes intermediários entre o estupro, cuja pena mínima é seis anos de prisão, e uma mera contravenção penal.”

Não há consenso no meio jurídico a respeito da interpretação do juiz. A advogada Ana Lúcia Keunecke acredita que o enquadramento mais correto seria no crime de estupro de vulnerável. Tal crime está listado em outro capítulo do Código Penal, o que dispõe sobre formas de exploração sexual. “Me parece, pelas notícias, que a vítima estava no mínimo distraída. Não tinha como ela, naquele momento, oferecer resistência ao ato libidinoso do acusado”, afirma Keunecke. O crime de estupro de vulnerável é definido como o ato de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos” ou com alguém que, “por enfermidade ou deficiência mental […] ou por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. A pena é reclusão de oito a quinze anos.

Monica de Melo, da PUC-SP, alega que seria possível enquadrar o caso no crime de estupro comum, mas destaca a dificuldade que a legislação impõe a essa avaliação. “Possível seria, mas não é uma interpretação evidente. Talvez para isso coubesse ao juiz problematizar a gravidade do caso na sua decisão”, afirma. “Diante de toda a legislação de defesa da mulher que temos hoje, dizer que isso foi uma mera contravenção penal agride a ideia de prevenir e punir a violência contra a mulher.”

Para a promotora Silvia Chakian, a importunação ofensiva ao pudor não é a classificação mais adequada para esse tipo de comportamento. “No entanto, eu reconheço a dificuldade que os juízes têm de enquadrar essa conduta”, diz. “Por mais revoltante que seja essa situação, a gente precisa entender que é necessário um aprimoramento legislativo.”

Não é a mesma avaliação dos professores Humberto Fabretti e Alamiro Velludo. Para eles, a única interpretação possível seria a escolhida pelo juiz do caso. Para Fabretti, as passagens anteriores por acusações similares também não dão ensejo a um enquadramento diferente. “O fato de ele ter antecedentes por estupro é indiferente, pois analisa-se, neste momento, a natureza do fato e a necessidade de manter uma prisão cautelar. Por mais ignóbil que seja a conduta, juridicamente é isso que a lei prevê.”

A audiência de custódia é um instrumento processual no qual o juiz avalia a legalidade e a necessidade de manutenção da prisão do acusado. Segundo os entrevistados pela reportagem, as acusações anteriores não são necessariamente analisadas durante esta audiência preliminar. Por isso, ainda que o juiz destaque o histórico do acusado em sua decisão, seu resultado não reflete este aspecto.

É importante frisar que a decisão do juiz, documentada no termo de audiência de custódia, não é definitiva. Chakian explica que a tipificação final será dada pelo promotor que assumir o caso no Ministério Público. “Na hora de oferecer a denúncia, é possível que a promotoria analise de forma diferente”, diz a promotora. A avaliação do juiz é relativa apenas à necessidade de solicitar prisão preventiva do suspeito. “Não é esse juiz quem vai determinar se o caso é um estupro ou uma importunação ofensiva ao pudor. O MP ainda não ofereceu denúncia, o caso não está decidido”, ressalta Monica de Melo, da PUC-SP.

Procurado pela reportagem, o Ministério Público informou que o caso corre sob sigilo, mas confirmou que, durante a audiência de custódia, o MP se manifestou favoravelmente à liberação do acusado. O órgão alega também que, até o momento, o caso não foi atribuído a nenhum promotor de Justiça e que a definição do investigador responsável deve ocorrer no início de setembro.

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Truco

Este texto foi produzido pelo Truco, o projeto de fact-checking da Agência Pública. Entenda a nossa metodologia de checagem e conheça os selos de classificação adotados em https://apublica.org/truco. Sugestões, críticas e observações sobre esta checagem podem ser enviadas para o e-mail truco@apublica.org e por WhatsApp ou Telegram: (11) 99816-3949. Acompanhe também no Twitter e no Facebook. Desde o dia 30 de julho de 2018, os selos “Distorcido” e “Contraditório” deixaram de ser usados no Truco. Além disso, adotamos um novo selo, “Subestimado”. Saiba mais sobre a mudança.

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