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No dia do julgamento da extradição do fundador do WikiLeaks para os EUA, conversamos com o diretor do documentário “Guerra ao Jornalismo”

Entrevista
7 de setembro de 2020
08:18
Este artigo tem mais de 3 ano

Começa hoje (7/9) no Reino Unido o julgamento do processo de extradição contra Julian Assange, fundador do WikiLeaks. Preso desde abril de 2019 e perseguido há dez anos, o jornalista e publisher é acusado pelo governo norte-americano de espionagem por ter vazado informações confidenciais. Dentre os documentos publicados por Assange estão provas de tortura e maus tratos na prisão de Guantánamo, vídeos de execuções durante a Guerra do Iraque, conhecidos como “Collateral Murder Vídeos”, entre outras documentações de abuso de direitos humanos e crimes de guerra cometidos pelos EUA. 

Assange teve prisão decretada na Suécia por acusações de assédio sexual,já deixadas de lado pela Justiça. Recebeu asilo político do Equador e passou 7 anos na embaixada em Londres, de onde não podia sair sob o risco de ser preso e extraditado para os EUA. Teve seu asilo retirado no ano passado, em um processo polêmico envolvendo negociações do governo equatoriano com o governo norte-americano, e então foi posto em uma penitenciária de segurança máxima pela polícia britânica, onde aguarda o julgamento do pedido de extradição.

Dentre 18 acusações do governo dos EUA contra o australiano, 17 se referem à publicação de documentos secretos pelo Wikileaks; uma se refere a uma tentativa de ajudar Chelsea Manning a obter uma senha – ação que não foi completada segundo a própria acusação. Os advogados de Assange dizem que se trata de perseguição política. 

Jornalistas, organizações de direitos humanos e o próprio Relator Especial sobre tortura da ONU apontam que durante esses anos, Assange foi vítima de tortura psicológica. A organização Repórteres Sem Fronteiras chama Assange de “herói da informação”.

O diretor Juan Passarelli com Julian Assange e o vocalista da banda Calle 13, Residente

Para Juan Passarelli, amigo de Assange e autor de documentário “Guerra ao Jornalismo: o caso Julian Assange“, que estreou no último dia 28 no Youtube, o fundador do WikiLeaks “é um preso político” e sua condenação pode significar “o fim da democracia como a conhecemos.” 

Em entrevista à Pública ele compartilhou suas expectativas sobre o julgamento que começa hoje. “Esse é um caso que não será vencido na corte. Ele precisa vencer na esfera política”. Leia a entrevista na íntegra:

O que dizem as acusações contra Julian Assange?

É a primeira vez na história dos Estados Unidos que um jornalista está sendo processado por espionagem, por receber, trabalhar e publicar o que os EUA consideram informações confidenciais. Eles usaram a lei de espionagem no passado para casos relacionados a delatores, mas não para jornalistas. 

Julian enfrenta 17 acusações de espionagem e uma menor de fraude de computador devido às publicações de 2010: os vídeos de assassinato durante a guerra do Iraque, os documentos de crimes de guerra durante a guerra do Afeganistão, as denúncias de prisioneiros em Guantánamo, e o vazamento de telegramas diplomáticos entre os EUA e outras embaixadas. 

Então, o que os Estados Unidos estão dizendo basicamente que um jornalista que recebeu informações confidenciais – que é o termo que eles usam – sobre crimes de guerra, ele é um espião. É simples assim. 

Há alguma relação entre essas acusações e a acusação de estupro na Suécia, que foi o que levou à prisão de Assange em primeiro lugar? 

As instituições de justiça estão contra Julian Assange há mais de 10 anos. As publicações sobre as quais ele está sendo processado não têm nenhuma relação com qualquer outro processo judicial na vida dele. 

É apenas sobre 5 publicações que expõem crimes de guerra, tortura. Coisas tão grotescas quanto uma garota de 6 anos sendo torturada com uma furadeira. Ou forças armadas entrando na casa de um fazendeiro, com toda a sua família incluindo seis ou sete crianças e matando todos. Os soldados os mataram como nazistas e ainda chamaram um avião militar para bombardear a casa e destruir as provas. 

Nesse contexto, como você vê o processo de extradição contra Assange? 

A primeira coisa que temos que entender é que Julian Assange não cometeu nenhum crime no Reino Unido. Os Estado Unidos estão ultrapassando e impondo suas leis em outros países. Isso quer dizer que a democracia de outro país está sendo invadida pelos Estados Unidos. Isso deveria ser muito preocupante para os ingleses.

Ele não é acusado no Reino Unido e ainda assim está preso em um regime de segurança máxima, onde prendem assassinos e pedófilos, enquanto ele é um intelectual. Ele não deveria estar preso. Deveria poder responder ao processo de extradição em liberdade.

O tratado entre os EUA e o Reino Unido não permite a extradição de acusados políticos. Dez anos atrás ninguém imaginaria que haveria um preso político no Reino Unido por revelar crimes de guerra. Não há precedentes para isso. 

E como você vê a decisão do Equador de retirar o asilo político? 

Nós sabemos que assim que o Trump assumiu o cargo de presidente, o Wikileaks revelou o Vault 7, que era um programa da CIA para espiar as pessoas. As ferramentas usadas poderiam hackear televisões e até carros modernos, e isso é extremamente preocupante porque quer dizer que eles poderiam controlar um carro e causar uma execução que nunca saberíamos. 

Nesse contexto, o vice presidente Mike Pence foi ao Equador renegociar o pagamento de empréstimos de cerca de 4 bilhões de dólares. Também o Secretário do Departamento de Estado norte americano, Mike Pompeo, fez seu primeiro pronunciamento contra o WikiLeaks e Edward Snowden, em que os chamou de uma “agência não estatal de inteligência” hostil. 

Mike Pompeo também voou ao Equador para terminar um acordo entre as nações. 

Então, isso prova que houve uma estratégia orquestrada com o governo Trump para fazer o Equador negociar a expulsão de Assange da embaixada. 

É importante mencionar que durante a administração de Obama, um júri foi criado em Virginia e decidiu que não poderiam avançar com as acusações contra Assange porque eles não conseguiam diferenciar o que o WikiLeaks fez com o que The New York Times, o The Guardian e outros jornais, incluindo a Agência Pública no Brasil, fizeram. 

O que essas ações dos EUA sobre outros países podem significar para o jornalismo?

É extremamente preocupante, porque se os EUA acabam com o direito de jornalistas de investigar o que o governo está fazendo em nome do povo, com seus impostos e com seu voto, eles estão acabando com o direito do povo saber. 

É o fim da democracia como a conhecemos. 

Temos visto nos últimos anos uma onda crescente de autoritarismo no ocidente. Isso é extremamente preocupante, por isso qualquer um que se importa com a democracia deveria estar se reunindo para apoiar Julian Assange. 

Algumas pessoas dizem que vão se abrir precedentes caso Julian Assange seja extraditado. O que acontecerá se jornais como The Guardian, New York Times, receberem informações de Edward Snowden, ou Chelsea Manning, eles vão publicá-las? No melhor dos cenários, eles vão publicar e vão para a prisão. No pior, eles nem publicam. Ou eles publicam partes, porque estarão com medo. E isso já está acontecendo. 

Gostaria que você comentasse sobre as denúncias de que Julian Assange está sendo torturado. Quando foi a última vez que você o viu?

Eu não vejo Julian desde que ele foi preso, exceto no dia 14 de agosto, quando eu vi ele através da televisão durante uma audição judicial. Ele parecia fraco e estava definitivamente sofrendo mentalmente, porque ele estava até tendo problemas para lembrar da data de seu aniversário. 

Eu acompanhei as últimas sessões e o jeito que Julian tem se apresentado. Aquele não é Julian. Eu conheço ele há dez anos. Aquela não é a maneira que ele fala. Ele está sofrendo mentalmente e fisicamente. 

Stella Moris, sua parceira, foi visitá-lo cerca de duas semanas atrás e disse que ele estava sofrendo muito e com dores. Ele tem um ombro machucado que foi causado durante uma prática de boxe na embaixada e isso causa muitas dores físicas. Ele também torceu o tornozelo, que é outro problema físico que ele enfrenta. Mas ele sofre ainda mais, perdeu muito peso e está proibido de ver seus filhos sob a ameaça de ser colocado em completo isolamento por 14 dias. 

Eles tiveram que se ver à distância e essa foi a primeira vez que a prisão deu a ele uma máscara de proteção. Todas as outras vezes que ele foi à corte [durante a pandemia] ele não recebeu nenhuma forma de proteção, sendo que esses ambientes estão sendo usados por múltiplos presos e sabemos que há casos de coronavírus dentro da prisão. Julian tem uma condição crônica no pulmão o que o torna muito vulnerável para o covid-19. 

Ainda sobre tortura, o Relator Especial de Tortura da ONU, Nils Melzer, visitou Julian com médicos especialistas e concluiu que ele estava sofrendo de sintomas de alguém que sofreu tortura psicológica. E o Reino Unido, que é obrigado a pelo menos começar uma investigação, negou as acusações e se recusou a fazer alguma coisa sobre isso.

A defesa [de Assange] recentemente deu aos promotores a avaliação psiquiátrica de Assange e eles vão apresentá-la durante o julgamento amanhã. 

Algumas pessoas demonstraram preocupações inclusive sobre se Julian Assange sobreviveria até o final do julgamento. O que você espera?

Médicos especialistas se reuniram para formar uma aliança junto com advogados chamada “Lawyers for Assange”, justamente porque eles temem que a vida dele está em risco. Eles acreditam que Julian Assange pode morrer na prisão se as condições não melhorarem. 

Eles pedem que Julian seja levado a um hospital universitário. Mas eles recusaram esse direito a Julian Assange. 

Recentemente no Brasil, o Partido dos Trabalhadores e o ex-presidente Lula, anunciaram apoio a Assange. Quão importante é isso? 

Eu acredito que o Lula tomar uma posição pública sobre o caso Assange foi um ato de muita coragem e deve ser seguido por muitos outros políticos. Temos visto muitos políticos australianos mostrando solidariedade, incluindo um ex-primeiro ministro e um ex-ministro de relacões exteriores, assim como vários membros do parlamento aqui no Reino Unido, que se pronunciaram a favor de Assange. 

Também há um número crescente de organizações internacionais de jornalismo e direitos humanos acompanhando o caso, como a Anistia Internacional, Human Rights Watch, Repórteres Sem Fronteiras. E elas estão pedindo para que os Estado Unidos larguem o caso e que o Reino Unido liberte Assange imediatamente.

Então, politicamente esse caso está se tornando cada vez maior e eu acredito que nós podemos vencê-lo. 

Não acho que será agora, e as coisas podem ficar muito piores antes de melhorarem, mas estamos vendo uma mudança na cobertura do caso Julian Assange. 

Vimos o New York Times fazer um editorial forte dizendo que as acusações contra Assange são uma ameaça à primeira emenda e vimos também o The Guardian publicar um posicionamento parecido. O ex-editor do jornal, Alan Rusbridger, escreveu três artigos sobre a importância desse caso. 

E a realidade é que esse caso vai determinar não apenas o direito à liberdade de expressão e o direito à informação, mas a própria democracia ocidental. Vamos nos tornar uma nova China? Ou vamos continuar a valorizar a liberdade de expressão e de informação sobre o que nossos representantes estão fazendo em nosso nome?

Você pode comentar a cobertura da imprensa sobre o caso?

A mídia tradicional é uma mídia empresarial. Eles respondem a interesses de instituições. Cada vez há menos jornalismo e mais mídias tradicionais se tornando megafones de informações oficiais de governo. 

Estamos falando de um aparato de propaganda contra Julian Assange que foi orquestrado por cinco diferentes países: Estado Unidos, Reino Unido, Suécia, Austrália e Equador. Esses governos tem métodos muito sofisticados de guerra psicológica e cumpriram um papel muito importante na imagem que foi passada de Julian Assange. E ele está sendo perseguido há dez anos. 

E foi por isso que eu fiz o documentário. Eu tentei remover todas essas camadas de desinformação e simplificar o caso o máximo possível: Trata-se de um jornalista que publicou crimes de guerra e se tornou um preso político e que pode enfrentar 175 anos na prisão por acusações de espionagem. 

Como um documentarista, qual você acha que é o papel da opinião pública no caso Julian Assange? Ela é poderosa o suficiente para virar o jogo?

Esse é um caso que não será vencido na corte. Ele precisa vencer na esfera política. Então, cada ação que um indivíduo toma para defender Assange é o que cria a pressão para o Reino Unido parar com o processo de extradição. 

Aliás, o governo britânico tem o poder de acabar com esse caso imediatamente. A qualquer momento eles podem libertar Assange. Então, está nas mãos dos representantes do país.

Liguem para as embaixadas, liguem para os parlamentares, demonstrem suas opiniões durante esse julgamento. Há protestos sendo organizados em diversos lugares do mundo. Encontrem suas manifestações locais e participem. Ergam suas vozes para pressionar o governo britânico e americano a largarem o caso. 

No Brasil, tivemos o caso do jornalista Glenn Greenwald que foi processado por publicar diálogos privados de juízes. Isso aconteceu no contexto de uma série de perseguições a jornalistas promovidas pelo governo de Jair Bolsonaro. Você vê relações entre esse caso e o caso de Assange? 

O caso de Glenn Greenwald é uma cópia do caso de Julian Assange. O próprio Glenn disse isso. E o motivo dele não estar na prisão é somente devido a uma decisão da Suprema corte brasileira. 

Mas isso é uma guerra ao jornalismo no ocidente de maneira geral. Glenn Greenwald é um exemplo. Julian Assange é outro grande exemplo. 

Essa é uma guerra ao jornalismo e um passo para o autoritarismo, onde os governantes não querem que o povo saiba o que eles estão fazendo.

E o que jornalistas podem fazer para se prevenir dessa perseguições?

Investigar e publicar a grande quantidade de irregularidades que ocorreram durante os últimos dez anos. Estamos falando sobre denúncias de conflitos de interesses da juíza que está cuidando do caso. Seu marido  é acusado de ter trabalhado para o serviço secreto e para empresas que foram expostas pelo Wikileaks. Estamos falando de um caso em que a CIA, através de uma empresa espanhola chamada UC Global, espiou as conversas de Assange com seus advogados desde 2016 dentro da embaixada. 

Estamos falando de alguém que está sendo torturado psicologicamente, que não vê seus advogados há 6 meses e que não pode nem ler as novas acusações contra ele. 

Não há direito para a julgamento justo. 

O que quer que aconteça, se Julian perder ou se a acusação ganhar, haverá recurso e qualquer que seja o resultado Julian não vai sair da prisão. Ele continuará preso até que um juiz lhe conceda a liberdade provisória.

Caso Assange seja deportado, o que você acha que pode acontecer com ele?

Nesse cenário ele será julgado por uma corte na Virgínia onde 80% da população trabalha para a CIA, Pentágono, Departamento de Segurança Nacional, FBI ou afiliadas do governo. Então o júri já será tendencioso.

Além disso, ele será colocado em um sob um regime chamado SAMs – Medidas Administrativas Especiais. Será colocado em completo isolamento e seus advogados não poderão falar durante o julgamento do caso, que será ouvido em segredo. Não poderá haver cobertura da imprensa. 

Então é uma completa desvirtuação da justiça.

Essa corte é chamada de Corte da Espionagem e nenhum acusado pela segurança nacional jamais foi absolvido. É uma corte onde as pessoas são processadas e sentenciadas. Ele vai ser forçado a aceitar um acordo ou a passar 175 anos na prisão. 

E como podemos acompanhar o caso?

Eu vou cobrir o caso no dontextraditeassange.com e também no meu Twitter.  Lembrando que, devido à pandemia, apenas 10 jornalistas foram autorizados a entrar no tribunal. E o resto da imprensa mundial recebeu um link para acompanhar os procedimentos online. O problema é que vimos durante as audições anteriores que a tecnologia de transmissão usada é muito ruim. Praticamente inaudível. O que quer dizer que repórteres ao redor do mundo não poderão cobrir o caso propriamente. Assim, não é uma justiça aberta. 

Colaborou Laura Scofield.

*Correção: O texto afirmava que o juiz do caso é suspeito de conflito de interesses. Na verdade, é a juíza – seu esposo trabalhou para o Ministério de Defesa britânico.

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