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Apesar de ineficientes contra a Covid-19, ivermectina distribuída com mensagem religiosa e hidroxicloroquina para tratamento precoce foram algumas das principais medidas da prefeitura

Reportagem
13 de outubro de 2020
12:04
Este artigo tem mais de 3 ano

Dois fatos alarmaram a população de Cáceres, no Mato Grosso, pipocando no Whatsapp de seus habitantes na primeira semana de outubro. O primeiro, publicado em um veículo de notícias local, foi o centésimo óbito por Covid-19 no município, quando a morte do cabeleireiro Francisco Anísio Torres, 74 anos, foi somada às outras 99 divulgadas em boletim da prefeitura no dia anterior. Já o segundo, foi provado por fotografias tiradas pelos próprios moradores, que mostravam a densa fumaça amarelada dos incêndios no Pantanal invadindo as ruas e casas da cidade. 

A associação entre os dois é a “tempestade perfeita” para o avanço da pandemia de Covid-19, como definiu o médico sanitarista e deputado estadual mato grossense Lúdio Cabral (PT): incêndios tomando o estado e prejudicando as vias aéreas da população, baixíssima umidade do ar, além dos 1.050 novos casos diários – estagnados em um platô elevado há duas semanas – e a alta taxa de mortalidade no Mato Grosso, 50% superior à do restante do país.

Já são 3105 casos confirmados e 106 mortes em Cáceres, que fica a 214 km da capital Cuiabá. Isso torna a mortalidade por Covid no município, de 94.376 habitantes, 60,45% maior do que no resto do país. Enquanto a taxa de mortalidade brasileira é, atualmente, de 70 por 100 mil de habitantes (a terceira maior do mundo), a de Cáceres é cerca de 112,31 por 100 mil habitantes, de acordo com dados do Ministério da Saúde do dia 8 de outubro.

Usuário de rede social fotografa avanço da fumaça das queimadas no Pantanal na cidade de Cáceres (MT).

Mas a resposta do prefeito Francis Maris (PSDB) patinou durante os primeiros meses da pandemia. No final de seu segundo mandato, o prefeito tem se concentrado em lançar a campanha de seu sucessor tucano Paulo Donizete — também infectado pelo SARS-CoV-2  durante sua pré-campanha, em agosto.

Em meados de junho, quando Cáceres estava entre as 12 cidades com maior risco de contaminação no Mato Grosso, houve decreto de toque de recolher e de dois lockdowns no município, após insistência do Governo Estadual. Mas a cidade pantaneira sofreu forte pressão de empresários locais para manter as atividades em funcionamento e o comércio aberto, colocando Maris em uma situação difícil. Empresário milionário dono do Grupo Cometa de viação e pecuária, o prefeito é dono de pelo menos 24 imóveis rurais no estado. 

Diante do impasse, a prefeitura apostou em outra estratégia contra a Covid-19: a distribuição de ivermectina, um medicamento contra vermes e parasitas cuja eficiência para prevenir a Covid-19 nunca foi provada por pesquisas científicas. A Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde jamais recomendaram o medicamento para impedir a infecção pelo novo coronavírus.

Prefeito Francis Maris (PSDB), em pé à esquerda, participando de entrega de “kit Covid” para prevenção em Cáceres (MT).

As 100 mil caixas de ivermectina adquiridas pela prefeitura de Cáceres começaram a ser distribuídas para a população em julho, em um centro de convenções da cidade. Em agosto, a prefeitura chegou a distribuir o medicamento nas comunidades rurais do município, por meio de uma Equipe de Atendimento Móvel. Em entrevista, Maris contou estar tomando a ivermectina a cada 15 dias para se proteger. 

A ação se tornou uma das principais iniciativas da cidade para combater o avanço da pandemia e foi amplamente divulgada em posts nas páginas oficiais da prefeitura em redes sociais. 

No dia 21 de julho, Maris publicou um vídeo no Facebook da prefeitura convidando quem ainda não havia tomado ivermectina a comparecer aos locais de distribuição.“Você que ainda não vem fazendo uso regular de ivermectina, pegue o seu Cartão SUS e vá até a Sicmatur (Secretaria de Indústria e Comércio, Meio Ambiente e Turismo). Mais adiante no vídeo, o prefeito lembra que o medicamento não “blinda você de pegar o coronavírus”, e que essa prevenção deve ser feita com isolamento e uso de máscaras. Em seguida, o psdbista afirma que o “kit com a cloroquina” também está disponível para quem está contaminado com o coronavírus e apresentando sintomas. O vídeo termina com o prefeito desejando que “Deus nos proteja”. 

Mensagem postada no Facebook da prefeitura de Cáceres (MT) anuncia o “kit Covid” para tratamento precoce da doença.

Os comentários do vídeo no Facebook se dividem entre palmas, elogios, pessoas pedindo o kit e algumas questionando a funcionalidade de um medicamento preventivo que não previne. A essas últimas, a resposta da prefeitura foi uma comparação: “é prevenção você toma remedio para gripe a anos, e mesmo assim contrai gripe… Mas para nao pegar gripe existe cuidados,,, ,.” (SIC). 

O biólogo Vitor* conta que sua cunhada foi uma das pessoas que pegou as cápsulas de ivermectina no mês de julho, não somente para ela, mas também para a sogra idosa. “Ficou confuso porque primeiro as pessoas tinham que ir lá pegar com o cartão SUS e depois qualquer um podia pegar para você, levando sua identidade”, explicou. Apesar de tomar o remédio com o intuito de prevenir a doença, a cunhada e toda a família do irmão do biólogo testaram positivo para Covid-19 no mês seguinte. “Todo mundo teve febre, desgaste físico e outros sintomas”, disse Vitor. 

Médicos, pesquisadores e especialistas em infectologia e pneumologia ouvidos pela Agência Pública apontam a ineficiência da ivermectina para a prevenção da Covid-19. Nem a Organização Mundial da Saúde (OMS) nem o Ministério da Saúde recomendam a utilização do vermífugo. Popularmente usado contra piolhos no Brasil, uma das próprias fabricantes do medicamento se pronunciou, durante a pandemia, contraindicado seu uso para o novo coronavírus. 

Além do vídeo no Facebook da prefeitura, o apelo religioso de Maris também esteve presente nos próprios kits de ivermectina. Apesar de serem chamados informalmente de “kits” pela população da cidade, o pacote consistia em um saquinho com duas cápsulas de ivermectina e uma mensagem cristã, como contou à reportagem o cacerense Edson Penha Mendes, 54 anos, que trabalha no Centro de Direitos Humanos Dom Máximo Biennes. Cético quanto à eficácia, mas curioso em relação ao kit, Edson pediu o remédio à sua irmã, que atua como agente de combate às endemias. Ela lhe entregou três cápsulas de ivermectina junto à mensagem religiosa “está (sic) luta é do Senhor Jesus. Juntos venceremos Covid-19 – SMS-Cáceres”. 

“É uma coisa terrível porque eles vinculam à fé das pessoas. É uma estratégia, sabem que não tem efeito, mas essa mensagem religiosa faz com que as pessoas acreditem mais que vai curar, então tem efeito político”, opina Mendes. Nas últimas semanas, pela primeira vez ele desenvolveu sintomas respiratórios, que atribui ao calor e à fumaça das queimadas, que “chega a arder os olhos”. “Moro aqui há 38 anos e nunca tinha visto uma fumaça tão forte. Está horrível para dormir, minha respiração piorou muito”, conta. Mesmo constantemente sentindo moleza, mal estar e sintomas de gripe, Edson não tomou o vermífugo. “Pra quê? Não tem efeito, melhor tomar o remédio certo e vacinar contra a gripe”. 

Não é o comportamento mais comum da população da cidade, como explica o enfermeiro Rafael Toshima de Alencar, que trabalha há quatro meses no Centro Referencial de Saúde de Cáceres, porta de entrada de pessoas com qualquer sintoma suspeito de Covid-19. É para o CRS que as unidades de saúde do município encaminham pacientes não testados. Por recomendação da prefeitura, todas as pessoas devem sair de lá necessariamente com uma receita padrão já impressa e com um “kit Covid” para tratamento precoce já montado, contendo dosagens de ivermectina, do antibiótico azitromicina, de quelato de zinco, do antiinflamatório Meloxican e do corticóide Prednisona. A hidroxicloroquina também é administrada quando o paciente pede para tomá-la. Mas até as orientações do Ministério da Saúde que autorizam o uso da hidroxicloroquina para casos leves – amplamente questionadas pela comunidade científica devido à ineficácia do medicamento – explicitam que a decisão de prescrevê-la é prerrogativa do médico. 

“Não se prescreve outra medicação, então o profissional perde um pouco a autonomia. Às vezes estamos com um ou dois médicos e temos que atender dezenas de pacientes sem agendamento e prescrever necessariamente o kit [de tratamento precoce] para todos esses pacientes, não importa se ele está com outro sintoma, se está com outra coisa. Às vezes o paciente chega com febre e é uma inflamação na garganta, mas independentemente disso já sai com a prescrição do “kit Covid””, explica o enfermeiro. 

Receitas prontas de “kit Covid” para tratamento precoce no Centro Referencial de Saúde de Cáceres.

A prefeitura municipal de Cáceres gastou, em junho, mais de R$ 217 mil na compra de medicamentos que compõem o “kit Covid” para tratamento precoce da doença, com remédios como o antibiótico azitromicina. No mesmo mês, foi homologada a compra de R$ 511 mil em hidroxicloroquina e quelato de zinco. Em julho, a prefeitura comprou outros R$ 140 mil em ivermectina. 

Coordenadora dos Centros de Especialidades da Secretaria de Saúde de Cáceres, incluindo o centro referencial que hoje atende a Covid-19, Vanderly Muniz explicou, em entrevista à Pública, que a hidroxicloroquina é distribuída mesmo sem testagem de Covid-19 quando o paciente pede para tomar, e após ele assinar um termo de responsabilidade: “é um direito que a pessoa tem”. No entanto, ela explica que o remédio tem saído cada vez menos da farmácia do CRS.

“Muita gente da população não quer, muitas pessoas têm medo da contraindicação que ela tem. Eu até falei para a secretária de saúde Silvana Maria de Souza, que eu tava assistindo TV e vi um médico dizer que de fato não tem nada que comprova que a hidroxicloroquina é a medicação que tá curando. Como vamos obrigar a pessoa a pegar hidroxicloroquina? Não podemos fazer isso”. Em isolamento após apresentar sintomas da Covid-19, Muniz contou, com a respiração cansada, que aguarda o resultado de seu teste para “provavelmente entrar com a hidroxicloroquina”. 

Segundo dados do CRS, na semana do dia 8 a 15 de setembro, foram distribuídas 2012 unidades de ivermectina e entregues 305 de hidroxicloroquina. Após três semanas, entre 27 de setembro e 4 de outubro, foram 1.088 unidades de ivermectina e 154 de hidroxicloroquina. Nesse período de 27 dias, foram entregues 7.266 unidades de ivermectina e 983 de hidroxicloroquina.

Sobre o kit para tratamento precoce, que inclui a hidroxicloroquina quando é solicitada pelo paciente, o prefeito Francis Maris garantiu, em entrevista, que o medicamento salva vidas. “Temos vários exemplos, como em uma casa onde seis pessoas tomaram o kit e uma recusou. Essa ficou mal, foi transferida para Campo Grande, pelo plano de saúde, e morreu. Os outros seis não foram nem para o hospital. Então está provado que salva as pessoas”. Na mesma entrevista, o prefeito revela que enviou uma notificação para os médicos que não queriam utilizar a hidroxicloroquina, “dizendo que não importa [que não existe estudo científico que comprova a eficácia da droga], temos testemunhos toda hora que está salvando”. 

Nas primeiras semanas do enfermeiro Rafael Toshima de Alencar no Centro Referencial de Saúde de Cáceres, os kits de tratamento precoce contra a Covid-19 vinham fechados e a recomendação era que os medicamentos fossem dados nas quantidades padronizadas para todos, independentemente do peso ou demais características do paciente. “[O kit] tinha um antiinflamatório esteroidal, a Prednisona, e não é assim que se dá, ela tem efeitos rebotes, pode dar problemas cardíacos, e queriam que a gente desse sem atendimento clínico do paciente”, afirmou. Contratado, o enfermeiro diz que se sentiu pressionado a seguir a orientação para não ser demitido, mas mesmo assim não entregou o antiinflamatório.  

“É frustrante, a gente estuda e passa tempo na faculdade para no final ter que fazer algo que não tem comprovação científica. Você não consegue dialogar sobre o protocolo ser viável, se vai ter efeito colateral na população ou não”, desabafa. O enfermeiro conta também que nunca teve acesso ao protocolo municipal para o tratamento da Covid-19 e que apenas ouve ordens dos médicos e da coordenação da unidade. 

Quem também não teve acesso ao documento foi o Conselho Municipal de Saúde, segundo o presidente do órgão, Josué Valdemir de Alcântara. “Eu também queria entender o protocolo. O Conselho de Saúde não participou de nenhuma discussão relacionada a isso”, afirma. Alcântara diz não ter elementos técnicos para concordar ou discordar das estratégias da prefeitura, mas sabe que o prefeito Francis Maris “acredita na eficácia e eficiência da Cloroquina e dos demais medicamentos”

O médico sanitarista e deputado estadual Lúdio Cabral (PT) explica que, em junho, com o colapso do sistema de saúde mato grossense, teve início uma pressão “de natureza política e sincronizada com o Governo Federal”, para adotar esses medicamentos aos primeiros sintomas da doença. “Essas saídas fáceis da pílula milagrosa, do “kit Covid”, foram a forma como os governos responderam à pressão da pandemia e mascararam sua incompetência em planejar de forma adequada o enfrentamento”. Assim, explica Cabral, a eficácia da “pílula milagrosa” ajudou a salvar a própria reputação dos governos municipais e estaduais. “Com esse discurso construíram o argumento de que estavam enfrentando a pandemia, quando não estavam”. 

Para Lúdio Cabral, apesar de a ivermectina não apresentar efeitos colaterais graves para quem a toma sem motivos, a disseminação da ideia de que existe um tratamento preventivo traz consequências negativas para o enfrentamento da Covid-19. “Os negacionistas fizeram pressão pelas pílulas milagrosas para que a população tivesse a falsa impressão de que havia um arsenal de remédios à sua disposição para se proteger contra a doença. Assim, as pessoas voltaram à vida normal”, explica. O médico e deputado estadual acredita que, ao fazer uso da profilaxia como instrumento político, os governos não se atentaram para o risco de a população acreditar estar protegida, e por isso, tomar menos cuidado. 

Vilhena tem 113 mortes e 3.389 casos a cada 100 mil habitantes. Já a capital do Mato Grosso, Cuiabá, tem 156 mortes e 4.180 casos a cada 100 mil habitantes. O estado inteiro tem 101 óbitos e 3.733 casos a cada 100 mil habitantes, mais do que a média brasileira. O país tem, atualmente,70 óbitos e 2.392 a cada 100 mil habitantes. As informações são do Ministério da Saúde referentes ao dia 8 de outubro

Segundo o enfermeiro Rafael Toshima de Alencar “os óbitos [na cidade] estão aumentando e os casos também”. De acordo com o boletim epidemiológico da prefeitura de Cáceres, entre a semana do dia 24 de setembro e 1 de outubro, foram 477 novos casos e 9 óbitos notificados. Já entre os dias 1 e 8 de agosto, o município somou 200 novos casos e 7 novos óbitos. E entre 2 de julho e 9 de julho, foram registrados 315 novos casos e 4 óbitos. 

Os leitos de UTIs dos dois hospitais de Cáceres também são os únicos disponíveis para atender a população de outros 22 municípios menores na região, um total de aproximadamente 320 mil pessoas.

Infografista: ,
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Reprodução/Secretaria de Saúde de Cáceres
Rafael Toshima de Alencar
Bruno Fonseca/Agência Pública

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