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Antropóloga Lúcia Helena Rangel, que coordenou o relatório do CIMI, diz que o primeiro ano da pandemia misturou tudo: "violência, truculência, descaso e abandono do governo"

Entrevista
28 de outubro de 2021
18:23
Este artigo tem mais de 2 ano

O assassinato do jovem Munduruku Josimar Moraes Lopes, 25 anos, e o desaparecimento – até hoje – de seu irmão, Josivan, 18 anos, na Terra Indígena Kwatá Laranjal, é um caso imortalizado como “a chacina no rio Abacaxis”, na Amazônia. A ofensiva de madeireiros na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, com emboscadas letais contra os Guardiões da Floresta – conflito que vitimou Paulo Paulino Guajajara, executado enquanto caçava. 20 das 23 famílias Matsés – indígenas conhecidos como Mayoruna – remando mata adentro, fugindo de agentes de saúde infectados com a Covid-19 na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas – onde há a presença de quase 20 povos isolados, ainda mais vulneráveis à doença. Um evento político que promoveu aglomeração de centenas de indígenas no Mato Grosso do Sul e, após duas semanas, causou um surto do novo coronavírus, com as mortes de seis Terena na Terra Indígena Taunay/Ipegue, em Aquidauana (MS), em menos de 24 horas. Estas são apenas algumas das cenas de uma verdadeira Guernica, imagem à altura do que o ano de 2020 significou para os indígenas segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

“Tenho uma antiga orientanda, do povo Terena em Aquidauana, que me mandou mensagem desesperada, contando: ‘nossos velhos estão morrendo, só esta noite morreram seis!’ Imagine isso, imagine o desespero destes povos”, afirma a antropóloga Lúcia Helena Rangel, professora do curso de Ciências Socioambientais na Pontifícia Universidade Católica em São Paulo.

Lúcia Rangel foi quem coordenou a produção do relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – 2020”, do CIMI, que apresenta uma visão geral das ameaças a diferentes etnias durante o primeiro ano de pandemia de Covid-19. Com base no acompanhamento contínuo feito por missionários espalhados em todo o Brasil e em uma série de dados oficiais, o CIMI destaca o legado nefasto do governo Bolsonaro até aqui.

Desde 2015 não havia tantos registros de violência contra indivíduos e territórios indígenas em um único ano. Tudo isso agravado por um pico de assassinatos, com pelo menos 182 vítimas conhecidas, número recorde em 25 anos. Ao todo, os homicídios de indígenas tiveram um aumento de mais de 60% na comparação com o ano anterior, 2019.

Assassinatos de indígenas aumentaram mais de 60% no primeiro ano da pandemia, aponta CIMI
O ano de 2020 bateu o recorde de violência contra indígenas, com ao menos 182 vítimas

As mortes vieram acompanhadas de aumento de grilagens, de invasões para extração ilegal de recursos naturais e de danos ao patrimônio indígena. Segundo o CIMI, em 2020 os conflitos territoriais atingiram 145 povos espalhados em mais de 200 terras indígenas em todas as etapas do processo de demarcação.

Ainda segundo o relatório, madeireiros, caçadores e pescadores ilegais, fazendeiros e garimpeiros “atuam com a certeza da conivência – muitas vezes explícita – do governo” em todas as esferas, da municipal à federal, passando também pela legislativa.

Exemplos não faltam: do projeto de lei 191/2020, feito sob medida para liberar a mineração dentro de terras indígenas, à instrução normativa nº 9, da Fundação Nacional do Índio, que abre brechas para que invasores obtenham registros de terras em áreas de povos originários em todo o país.

“O que é o genocídio senão impedir que determinados povos tenham paz, que possam reproduzir suas vidas em seus modos originais e tradicionais, podendo, caso queiram, plantar e colher seus próprios alimentos?”, diz a coordenadora-geral do relatório do CIMI. A Agência Pública conversou com Lúcia Rangel, para entender as descobertas contidas no relatório. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

O ano de 2020 ficou marcado como o primeiro ano da pandemia do novo coronavírus. Como a Covid-19 interferiu na dinâmica de conflitos e de violência contra indígenas no Brasil?

Em geral, a vida indígena é muito comunitária, não há cada um na sua casa, isolando-se. O distanciamento social não é, em si, um modelo fácil para sociedades indígenas. Na pandemia, é fato que os povos indígenas ficaram muito mais vulneráveis: particularmente, estas populações são mais suscetíveis a contágios por doenças bacterianas, virais e tantas outras. Então, quando surge um vírus novo para todos e matando muitos, por consequência os indígenas sentiram muito mais.

Assassinatos de indígenas aumentaram mais de 60% no primeiro ano da pandemia, aponta CIMI
Para se proteger da Covid-19, povos indígenas criaram barreiras sanitárias

Logo no início, a Associação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB) e outras associações e indigenistas mostraram-se preocupados, pedindo maior proteção às terras indígenas para evitar a contaminação. Foi quando aconteceram casos horríveis. Por exemplo: a Secretária de Saúde Indígena (SESAI) espalha suas equipes nas terras indígenas, e logo no início da pandemia estes profissionais pararam de ir, se ausentaram dos territórios por meses. Isso desprotegeu a população indígena, desprovendo diversos povos de atendimento médico e de medicamentos. Por outro lado, os desprotegeu no sentido mais comum, os deixando sem apoio do poder público para a proteção de suas terras por meio de barricadas, por exemplo.

Não à toa, povos fizeram diversas barreiras sanitárias por conta própria, evitando a entrada de qualquer pessoa, mas em muitos casos invasores armados chegaram, derrubando barricadas, atirando contra indígenas, entrando com truculência nestas áreas e se instalando para derrubar madeira, instalarem garimpos, grilarem terras. Em geral, não houve apoio de órgãos oficiais, os verdadeiros responsáveis pela instalação de barreiras sanitárias, o que fragilizou tanto os territórios quanto às populações em si.

Entendemos que o primeiro ano da pandemia misturou tudo: violência, truculência, descaso e abandono por parte do governo. E isso traz mais desmatamento ilegal, garimpagem e grilagem às terras e aldeias, o que ocorreu por conta dessa presença de ‘visitantes indesejados’. Um cenário devastador, o volume de descalabros foi enorme.

Imagem aérea de área desmatada ilegalmente na Amazônia
Mortes vieram acompanhadas pelo aumento da grilagem, desmatamento e garimpo

Neste contexto, chama atenção as perdas de anciãs e anciões indígenas devido à pandemia. O que tantas mortes de lideranças históricas representam?

Antes de tudo precisamos entender o que a velhice significa nas sociedades indígenas que, em geral, possuem uma tradição oral. Por mais que haja uma escolarização crescente, com a possibilidade da escrita e outras ferramentas, a tradição ainda predominantemente é oral. Os ensinamentos não estão nos livros.

Até determinada idade, muitos indígenas não têm a ‘palavra’, o poder da fala, algo que tem um status ímpar nestas sociedades. Ao longo da vida, cada indivíduo adquire maturidade para ‘empunhar’ a palavra. Logo, quanto mais velha é a pessoa, mais conhecimento ela detém, mais especial é seu lugar e sua função em meio ao seu povo.

Enquanto seus corpos perdem força, anciãs e anciões detêm a ‘palavra’, algo essencial para a reprodução da vida indígena, com seus valores próprios, mitos fundadores, modos únicos de fazer coisas – pense em uma avó ensinando suas netas a melhorarem os trançados de seus cestos, de suas redes, e assim sucessivamente. É assim que se transmitem os conhecimentos.

Os mais velhos oferecem o modelo e repassam as histórias fundadoras, as mensagens, as narrativas míticas sobre caça, animais, plantas, sobre tudo. Ou seja, a perda de uma anciã ou ancião significa a perda um arsenal enciclopédico, de bibliotecas vivas destes povos.

Antes da pandemia, os mais velhos morrem de pouco em pouco. Em 2020, morreram vários, aos montes. Tenho uma antiga orientanda, do povo Terena de Aquidauana (MS), que me mandou mensagem desesperada ainda no início da pandemia, contando: ‘nossos velhos estão morrendo, só nesta noite morreram 6!’. Veja: isso ocorreu logo após um evento político no município, com muitos intrusos na área indígena. Imagine o desespero destes povos, a necessidade de um socorro que, quando precisaram, nem sempre encontraram. Não houve abrigo ou amparo na Funai, na SESAI.

Para além das mortes decorrentes da Covid-19, houve também muita violência intencional no ano passado. O que se pode dizer do aumento de assassinatos de indígenas em 2020?

Desde 2019 notamos uma mudança histórica na dinâmica de homicídios contra indígenas. Naquele ano o Amazonas ultrapassou o líder histórico no problema – o Mato Grosso do Sul, onde há uma guerra contínua contra os indígenas. A mudança se confirmou em 2020, de certo modo, porque deslocou a violência para a Amazônia, com Roraima na primeira posição – com ao menos 66 assassinatos – seguido pelo Amazonas, com outros 41 assassinatos.

Acreditamos que há vários fatores por trás disso. Há uma série de grandes empreendimentos e projetos de extração de recursos naturais previstos para estes dois estados, planos que desorganizam totalmente a vida local dos indígenas. Por exemplo: existe uma abundância de minério e também a sombra das grandes mineradoras – sejam petrolíferas, sejam aquelas de ouro, diamante e pedras preciosas. Um cenário desses atrai garimpeiros, que não medem esforços violentos para conquistarem o território.

Mas há algo que vai para além dos dados. Notamos uma influência crescente do tráfico de drogas nas áreas indígenas nesta região da Amazônia. Antes, não tínhamos muitas informações sobre traficantes invadindo áreas indígenas para esconderem-se do Exército e dos agentes de segurança, ou abrindo garimpos nestas áreas para o enriquecendo do tráfico. Mas hoje o canal está aberto e passa por boa parte dos rios da Amazônia – especialmente, por Roraima.

Tome o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol como exemplo. Nos relatórios antigos, havia muitas mortes e assassinatos na área, mas logo após a demarcação os indígenas se organizaram, diminuíram muito as mortes por um período – algo em torno de uns cinco anos. Mas, desde 2019, a violência voltou a aumentar: há invasões de garimpeiros impondo um contexto de violência, uma bem diferente daquela do passado.

“O governo federal empodera a ilegalidade, fortalece os agentes ilegais”, afirma Rangel

Invasores na Raposa Serra do Sol agora trazem seus equipamentos de garimpo e entram todos armados, vão abrindo seu caminho à bala. Assim que se mistura o garimpo com o tráfico de drogas, com a liberação de armas, tudo desembocando nas terras indígenas. É algo capaz de se repetir em outras fronteiras na região, como em Rondônia e no Mato Grosso. Isso quando não há aliciamento de indígenas pelo garimpo e pelo tráfico, por fazendeiros e por invasores nestas regiões. 

Qual o papel das instituições no aumento dessa violência?

Há algo em comum em muitos dos relatos que basearam nosso relatório: nos primeiros contatos dos invasores com os povos indígenas, especialmente de garimpeiros, quem invadia alegava que não estava fazendo algo ilegal porque ‘o presidente da República liberou’ a garimpagem nos territórios. Sabemos que não é bem isso, mas é fato que esta mentalidade tomou conta, contaminou diversos conflitos na Amazônia, no Centro-Oeste e no Pantanal. Na prática, invasores estão quase que desfazendo o que determina a Constituição, com a devida responsabilidade da União de proteger territórios e os povos indígenas.

Além disso, temos medidas infralegais como a Instrução Normativa nº 9, da Funai, que tem uma grande má fé em si, já que ela impede apenas registros de imóveis em terras indígenas já demarcadas e homologadas, ou seja, nem metade das existentes no Brasil. A edição desta norma foi atroz, porque há mais de mil terras indígenas em processo de demarcação – a maioria delas sem providência alguma, com os processos totalmente empacados.

Pois bem, some a paralisia nas demarcações à Normativa nº 9 e você tem uma cena recorrente: o fazendeiro invade, obtém certificação de seu imóvel e diz às etnias que, ali, não há terra indígenas nenhuma. Depois disso, o fazendeiro regulariza sua situação no Cadastro Ambiental Rural (CAR), que é autodeclaratório, obtém um certificado do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e vai pra cima dos indígenas. Com todos estes papéis em mãos eles avançam, dizem ‘que têm todos os registros’. Imagine isso no interior do Brasil. Na prática, o governo federal empodera a ilegalidade, fortalece os agentes ilegais – de fazendeiros a grileiros, madeireiros e muitos outros – e vitimam indígenas em todo o país. Esta é apenas uma parte dos crimes das instituições contra os povos indígenas em 2020.

Para o CIMI, é correta a avaliação que, durante a pandemia, houve uma política genocida por parte do governo federal com as populações indígenas?

O que é o genocídio senão impedir que determinados povos tenham paz, que possam reproduzir suas vidas em seus modos originais e tradicionais, podendo, caso queiram, plantar e colher seus próprios alimentos?

Por um lado, temos assassinatos, doenças e fome; do outro, indígenas perdendo suas terras, suas roças, com seus campos envenenados.

Além disso, mesmo que os dados sejam discutíveis, há outro elemento: o racismo. Vimos diversos povos sofrendo tratamentos desumanos e preconceito, com o governo resgatando ideias ultrapassadas como a tese que o indígena só é considerado como semelhante caso se integre, caso vire um fazendeiro, garimpeiro. Por mais que não tenha ocorrido práticas genocidas em todos os territórios, podemos dizer que sim, houve práticas do tipo em parte significativa do país.”

Chiquitanos/CIMI
CIMI
Ituna Itata
Povo Pankararu/CIMI

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