Documentos inéditos indicam que, mesmo com veto de José Sarney, os ideais do Orvil, livro secreto da ditadura, foram divulgados dentro das instituições militares e reverberam no discurso bolsonarista.

Após mais de 20 anos de ditadura militar (1964-1985), o Brasil já vivia sob uma nova Constituição. Aprovada em outubro de 1988, a nova Carta Magna prometia  aprofundar a democracia, ampliar os direitos sociais e o respeito aos direitos humanos.

Mas para o CIE (Centro de Informação do Exército) as mudanças não eram positivas, ao menos segundo os informes RPMs (Relatórios Periódicos Mensais) obtidos pela Agência Pública que vão de fevereiro de 1989 a julho de 1991.

Em 1989, o chefe do Centro de Informações do Exército (CIE), general Sérgio Augusto de Avellar Coutinho, mudou o formato dos Relatórios Periódicos Mensais (RPM) do órgão para a “difusão de conhecimentos destinados ao seu público interno”. Com alterações na diagramação, na linguagem e na distribuição, ele tentava ampliar a influência dos chamados RPMs na formação da tropa.

O material indica que a principal influência do general Avellar Coutinho ao elaborar os relatórios de inteligência do Exército, já na vigência do regime democrático, era o Orvil, um projeto secreto do CIE desenvolvido entre 1985 e 1988.

O documento de pouco menos de mil páginas, cujo nome oficial é “As tentativas de tomada do poder”, sempre circulou entre militares da reserva que haviam integrado a estrutura repressiva da ditadura.

O material foi a fonte de inspiração para livros escritos por esses militares, como por exemplo Rompendo o silêncio, publicado em 1987 por Carlos Alberto Brilhante Ustra, único militar reconhecido pela Justiça brasileira como torturador.

O objetivo de Orvil era elaborar uma narrativa para criar uma proteção aos militares que haviam atuado na repressão. Marcados por valores conservadores, eles acreditavam que o comunismo seguia representando um perigo real para o futuro, explica Priscila Brandão, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

“A gente não consolidou uma democracia, do ponto de vista das relações civis-militares”, (...) “Os militares criaram um discurso de que eles são o lugar por excelência da idoneidade, de que eles são um quarto poder moderador. Quando a sociedade não tem condições, eles são a força que consegue manter a ordem. A gente vai até onde os militares permitem” - Priscila Brandão

“Desde os anos 1960, havia um debate entre os conservadores norte-americanos sobre algo que às vezes recebe o nome de ‘marxismo cultural’, às vezes de ‘guerra cultural’. É a ideia de que a cultura ocidental cristã vai ser destruída pois seus valores estão sob ataque”. - Eduardo Costa Pinto, Professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

“O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. O Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época”, afirma o documento assinado em 2020 pelo então ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva e pelos comandantes das Forças Armadas.

Mas os ecos do Orvil estão presentes também em outras manifestações do governo de Jair Bolsonaro:

Vídeo de Pavel Danilyuk no Pexels

Desde que o jornalista Lucas Figueiredo revelou a existência do Orvil, em 2007, uma cópia do relatório foi postada na internet. Hospedado no site do grupo Ternuma (Terrorismo Nunca Mais) e na página de Carlos Aberto Brilhante Ustra, o arquivo em .pdf passou a alimentar as redes de extrema direita, ampliando a difusão de narrativas legitimadoras do golpe e da ditadura.

Foto: Arquivo Nacional

O Orvil é também leitura sugerida em cursos de aperfeiçoamento para militares, segundo fontes ouvidas pela reportagem.

“Isso é um problema não só para agora, mas também para o futuro, para as próximas gerações militares, que vão crescer e desenvolver as ideias do Avellar Coutinho, do Ustra” - Marcelo Pimentel, coronel da reserva do Exército