“Aqui morreram três filhos meus”, comenta, econômica nas palavras, Lourdes Araújo Firmino, ao passar em frente ao hospital militar, na avenida principal da cidade de Tabatinga, no Amazonas.

No dia em que a bolsa estourou, Lourdes, ticuna, parteira indígena por profissão, decidiu que queria ter um parto natural. Os médicos não lhe deram ouvidos. No começo dos anos 2000, era proibido às parturientes levar acompanhantes para a sua hora em hospitais públicos. O marido brigou: ficou do lado de fora do centro cirúrgico e foi impedido pelos funcionários de entrar na sala para acompanhar a mulher.

“Um bom parto tem que ser feito pela mulher, no tempo dela, com ela se descobrindo. Não pode forçar nada. A gente tem só que acompanhar e cuidar dela nessa travessia”

Lourdes Araújo Firmino

Desconfiadas do sistema público de saúde, as indígenas da aldeia se fiam nas parteiras para passar pelas incertezas e dores da gestação e do parto. São essas mulheres, em sua maioria idosas, analfabetas e que aprenderam o ofício com suas antepassadas, que conduzem o momento no qual, para elas, a menina morre para que a mulher, transformada em mãe, possa nascer.

56% dos partos no país em 2017 – segundo dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) – foram realizados com cirurgia cesariana. No mesmo ano, na rede privada de São Paulo, cidade mais rica do país, oito de cada dez paulistanos chegavam ao mundo através da cesariana.

O uso da cesárea vem se disseminando rapidamente no mundo – duplicou no século 21 –, e a Organização Mundial da Saúde (OMS) pede aos países que se esforcem para que seus sistemas de saúde façam mais partos normais, uma vez que, segundo a literatura médica, não mais de 15% dos nascimentos efetivamente requerem essa intervenção cirúrgica.

Os países que conjugaram melhor tradição e modernidade apresentam melhores resultados. Na Inglaterra, um quarto dos partos de baixo risco é feito em casa e supervisionado pelo sistema público de saúde. A Holanda tem uma política que dispensa anestesia e se apoia nas parteiras em vez de médicos. Contabiliza 65% dos partos como domiciliares e um índice de cesáreas abaixo dos 15%.

Um estudo da Fundação Perseu Abramo constatou que  um em cada quatro partos no Brasil ocorre algum tipo de violência obstétrica, seja física ou verbal. O uso da ocitocina, a escolha de colocar a mulher deitada na cama, sem poder caminhar, o corte chamado episiotomia e o uso do ultrassom são técnicas modernas que aumentaram o poder do obstetra sobre quando e como o trabalho será feito, da resposta da mãe e do bebê, os protagonistas da situação.

O crescimento paulatino de cesarianas no país a partir dos anos 1970 levou o Ministério da Saúde a estimular o parto humanizado no SUS e, na esteira dessa tentativa, redescobriu-se a função da parteira. Mas o governo federal ignora quantas delas existem no país e também quantos cidadãos vieram ao mundo por suas mãos.

O pesquisador gaúcho Julio Schweickardt trabalha para decifrar como tirar o ofício do limbo burocrático, uma vez que as parteiras estão sozinhas ante a legislação. Como não há dados, o Estado não dimensiona sua importância; como não há forma de quantificar sua importância, não há argumentos para colocá-las como agentes de saúde.