Agência Pública

A vida e o crack na Maré

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Estamos no Complexo da Maré, favela da região norte do Rio de Janeiro. Um lugar de absurdos e potências, onde histórias costuradas entre si formam parte da história da cidade do Rio de Janeiro, do Brasil e do mundo. Lá, é escancarado o que a sociedade, em um misto de confusão e vergonha de si mesma, tenta esconder. Não é possível simplificar a Maré ou suas histórias: é complexa, contraditória e consegue reunir opostos, desafiando o entendimento.

Homem sentado e coberto por um tecido estampado, olha para o lado em frente a uma parede amarela

Agora, estamos em um dos epicentros de uso de drogas do complexo de favelas da Maré. Chamada pejorativamente de “cracolândia”, a região fica na avenida Brasil, gigantesca avenida de 58 quilômetros que corta o Rio de Janeiro. É aqui que um campo de concentração sem muros se mantém pelo roubo da autonomia dos frequentadores. Sabemos quem é o ladrão.

Uma mulher, sentada no chão, bafora fumaça ao lado de um carrinho de bebê rosa

A “cracolândia” é chamada assim porque seus frequentadores consomem majoritariamente o crack, droga feita de duas substâncias comuns e de um estimulante ilícito: água, bicarbonato de sódio e cocaína. O crack é barato, tem efeito rápido e muito volátil. Quem consome fala de uma intensa sensação de poder, euforia e prazer, além de acabar com a fome. Um usuário de crack pode perder cerca de 10 kg em um mês por não ter apetite.

Um homem deitado, com um terço no punho, olha para cima

O que separa o uso de drogas e a dependência de drogas? Para o neurocientista Carl Hart, a resposta está por trás da reflexão provocada por essa pergunta. Ele é o primeiro professor negro titular de neurociência da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, e estuda os efeitos do crack. Hart afirma que não é a química da droga que é altamente viciante e causadora das mazelas sociais dos usuários. É o exato oposto.

Um homem, em frente a uma parede azul e com o rosto coberto e voltado para o chão, mostra o cachimbo usado para usar crack

As consequências nefastas do capital enquanto sistema global, que cria e recria excessos humanos – seres que “sobram” na sociedade –, tornam o crack atrativo e viciante. O que separa o uso de drogas da dependência de drogas é a autonomia.

A definição coloquial da palavra “vício” sugere fraqueza moral, falta de autocontrole e um defeito pessoal. Para entender a complexidade da dependência química, é útil entender o oposto de dependência: a autonomia.

Em conversa com a doutora em psiquiatria da Universidade Federal Fluminense (UFF) Flávia Fernando, ouvimos que a autonomia significa poder depender de uma vasta quantidade de coisas e pessoas, em vez de depender de uma única coisa.

Uma pessoa, coberta por um tecido branco, posa atrás de grades

Autonomia pressupõe escolha, e os frequentadores da “cracolândia” da Maré não a têm – foram roubados. Entre homens e mulheres, majoritariamente jovens e negros, eles e elas vivem embaixo de um viaduto em construção, espremidos entre duas vias da maior avenida do país: não têm dinheiro nem para pagar a casa mais barata da favela. Sem muito a perder, se arriscam entre os carros para chegar de um ponto a outro da avenida. O barulho, a poluição e a violência são tão onipresentes quanto o ar.

A “guerra às drogas” chega aqui em formato de bala de fuzil vinda de um helicóptero da polícia. A “redução de danos” chega aqui em formato de internação compulsória, trabalho braçal forçado e doutrina cristã obrigatória.

A perda de autonomia é também a perda de identidade. Com opções limitadas, a oportunidade de fazer escolhas pessoais é escassa. A individualidade desaparece, assim como desaparecem as impressões digitais das pessoas que usam a droga severamente.

Uma pessoa mostra as mãos com alguns dedos sem as impressões digitais

As 16 favelas que formam o Complexo da Maré foram construídas no entorno da avenida Brasil. A construção da via, onde fica o local de uso de drogas da favela, escancara como as dinâmicas capitalistas edificaram um dos maiores complexos de favelas do estado do Rio de Janeiro.

No final da década de 1940, as obras para abertura da avenida Brasil atraíram grande migração nordestina para o Sudeste, da região mais pobre do país para a mais rica. Com baixos salários, que não custeavam nem a passagem de volta para casa, a saída encontrada foi a construção de casas precárias nas poucas áreas secas da região que ainda era um mangue. Estão lá até hoje.

Uma pessoa dorme em um colchão e se cobre com um guarda-chuva vermelho

Mais recentemente, o projeto de obra de transporte público que prometia conectar o aeroporto internacional com áreas nobres do Rio de Janeiro cortando a Maré, o TransCarioca, está indefinitivamente inacabado.

Os restos da obra hoje abrigam a “cracolândia”, e os responsáveis pelo fracasso da execução do projeto estão presos. O ex-secretário de obras, preso no ano passado, recebia propina e gerenciava a execução de uma obra sem semelhança alguma com o projeto financiado. Como se vê, o desvio de verba é um crime que causa danos a pessoas por gerações.

Jessica posa grávida com tecido rosa em frente a uma parede preta e branca
Edna Cristina, 43, tem 9 filhos e usa crack há 12 anos. Diz que ter lugar para morar e estar com os filhos a ajudaria a parar de usar. Ela gostaria de trabalhar como ajudante de cozinha, não terminou os estudos, sabe ler e escrever “mais ou menos”.

O sistema capitalista, além de estrutural e estruturante, se atualiza a cada momento, criando novos tentáculos que são capazes de tocar – e destruir – cada vez mais longe e mais fundo. Não há lugar, objetivo ou subjetivo, que esteja salvo. E o genocídio tem jeitos diferentes de matar.

Dois homens, sentados em uma carcaça de carro. Um está com o rosto coberto e o outro, dentro do carro, bafora fumaça

O capitalismo não quer apenas mortos, mas também corpos sem vida. O genocídio subjetivo está presente nos olhares perdidos, no jeito neurótico de agir e na constante desconfiança.

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