Infiltrados

Um flagrante (quase) perfeito

Pergunte a qualquer carioca se ele sabe quem é Bruno Ferreira Teles, e há grande chance de ele dizer sim. Esse rapaz alto, moreno, corpulento e sorridente ficou famoso no Rio de Janeiro depois de vivenciar um episódio insólito no auge dos protestos de 2013, profundamente revelador das estratégias adotadas pela Secretaria de Segurança Pública para desarmar os protestos que acabaram enterrando a carreira política do então governador Sérgio Cabral (PMDB). Reeleito em 2010 com 66% dos votos, a popularidade de Cabral despencou de 45% para 12% durante as jornadas de junho. Hoje, é um dos presos da Lava Jato.

Em meados de junho de 2013, Bruno, com então 25 anos, não pensava em Cabral e nem mesmo em política, quando foi surpreendido por uma manifestação no centro no Rio. Morador da Baixada Fluminense, tinha ido comprar um equipamento
para fazer efeitos especiais em vídeos – é assim que ele ganha a vida. “Eu sempre fui contra o sistema dentro de casa, sabia que os poderosos estavam mentindo pra benefício próprio, mas não tinha aquela prática de ir pra rua. Aí eu me deparei com o pessoal protestando aquele negócio de 20 centavos”. Bruno gostou do que viu e resolver aderir às manifestações. Ele foi a quatro.

“Eu fiz um cartaz e desenhei: ‘Contra a corrupção’”, diz.

Na segunda-feira, dia 22 de julho, sabia que seria sua última. “Decidi não me arriscar mais nesse negócio. Tava ficando muito violento e perdendo força”, conta. Era o dia em que o papa Francisco chegava ao Rio de Janeiro, e ele tinha dois objetivos: “Eu queria protestar. Só que eu sou de origem católica, eu também queria ver o papa. Queria fazer os dois”. Animado com o sucesso de grupos como Mídia Ninja, Bruno decidiu fazer um vídeo sobre sua ida ao centro da cidade. Chegou a gravar dicas de como se proteger em manifestações, mostrando um colete de alumínio que fabricou para conter as balas de borracha. Foi filmando o trem desde Duque de Caxias até o largo do Machado, onde 300 manifestantes se reuniram para caminhar rumo ao palácio de governo. “Mas eu não tinha noção que ia acontecer aquilo que aconteceu”, resume.

Molotov e bala de borracha

Naquele dia, o pau comeu cedo entre os manifestantes e a polícia: por volta das 19 horas. “O papa saiu, voou a bomba. Eu tava na frente, voou uma bomba em direção à polícia, veio lá de trás, dos manifestantes. Aí deu aquele estouro, eu não vi mais nada”, diz.

Bruno não viu de onde veio o coquetel molotov que feriu dois policiais naquela noite. Mas outras pessoas viram – e filmaram. Um vídeo publicado na internet (veja aqui, editado pela Mídia Ninja) mostra que Bruno estava diante de uma barreira de metal, que separava os manifestantes de policiais militares fortemente preparados – escudos, capacetes, cassetetes nas mãos.

No filme, Bruno levanta os braços, exaltado, grita para os PMs; e depois empurra junto com outros jovens a barreira de metal. Ele aparece de blusão cinza, calça preta e com óculos de proteção. Não porta mochila nem segura nada; a câmera já estava no bolso da sua calça. É quando vem o primeiro clarão da parte de trás, bem distante de onde ele estava. Pouco depois, os policiais avançaram. E ele lembra: “Do nada veio uma mão no meu braço, eu nem olhei pra ver quem era. Falei: ‘Solta, solta!’. Nisso eu olhei e já tava vindo uma manada, uns 40, 50 policiais em cima de mim”. A cena foi filmada por outra carioca do alto de uma janela:

Bruno consegue se desvencilhar e sai correndo. “Corri muito, nisso fui sentindo umas balas [de borracha]”. Na corrida, viu um homem partir para a sua direção. “Eu fui por instinto de me defender. Falei: ‘Esse cara vai me dar uma ‘banda’, eu vou tentar dar uma voadora. Ele não estava de farda. Aí eu dei uma pesada na perna dele e cambaleei, mas continuei de pé. Depois eu fui saber que era um policial infiltrado. Era um P2.”

Um terceiro vídeo mostra ainda o final da perseguição. O cinegrafista registrou Bruno correndo pela rua Pinheiro Machado. É perseguido por um policial e um homem sem farda, de camiseta branca. Atingido por um tiro de pistola Taser, ele cai no chão. O PM se debruça sobre ele e dá choques com a arma. “Eu senti… Eu nem sei mais o que eu tava sentindo. Tava cansado, já tinha tomado bala de borracha”, lembra o rapaz. “Sabe no Senhor dos Anéis, quando o Frodo está quase pegando o anel, mas está quase sem força?”

Em seguida, o homem de camiseta branca é afastado, mas grita: “Sou polícia! Sou polícia!”. O vídeo segue. Bruno é arrastado por quatro PMs; a cabeça pende para o lado. Logo o grupo levanta seu punho e mostra para a multidão de fotógrafos dois braceletes metálicos que ele também usava para sua proteção. Logo o seguram em pé, mas sem camisa e com os braços puxados para trás. Um policial agarra seu pescoço. Outros seguram o colete de metal sobre seu tórax, exibindo-o para fotos: “Ó o colete! Ó o colete!”. Nesse momento, o policial Diego Luciano de Almeida grita para os jornalistas: “Foi ele quem atirou o primeiro coquetel molotov!”.

Já algemado e recobrando os sentidos, Bruno começa a se defender diante da imprensa. Um policial agarra sua cabeça e se apoia sobre ela, empurrando-a para baixo. Um PM pergunta: “Ele é preso de quem?”. “Foi o P2 que pegou ele.”

Dias depois, o governador Sérgio Cabral afirmou desconhecer que havia policiais à paisana nas manifestações. Já o relações-públicas da Polícia Militar, coronel Frederico Caldas, reconheceu que eles agiam, mas apenas com objetivo de identificar agressores e coletar provas. Ele respondia a uma acusação bastante grave, que tomou corpo naquela noite: os próprios P2 teriam sido responsáveis por atirar coquetéis molotov – o coronel disse que a acusação o deixava “enojado”. Alguns vídeos feitos por anônimos naquele dia impressionam: um homem vestido com uma camisa preta lança o coquetel molotov e depois aparece dentro do perímetro de segurança da polícia, onde mostra uma identificação e é liberado sem maiores questionamentos. (Assista aqui a uma compilação feita pela Mídia Ninja).

Tortura em Bangu 

Bruno chegou à delegacia por volta das 20 horas, junto com seis pessoas. Todas foram liberadas, mas ele ficou preso por dez horas, tempo suficiente para ser indiciado em flagrante por posse de explosivos e levado até Bangu.

Ainda na delegacia, fez um apelo por meio da Mídia Ninja, pedindo que manifestantes postassem vídeos que provavam que ele não havia atirado a bomba caseira. “Quando eram umas 4 horas da manhã, já tinha mais de 100 mil acessos. Não apareceu apenas um vídeo, mas sete, oito vídeos, de vários ângulos diferentes”, conta.

Enquanto as imagens iam se proliferando na internet, as forças de segurança soltavam notas acusatórias. A PM divulgou no seu Twitter oficial que 20 coquetéis molotov tinham sido apreendidos com um manifestante. E a Polícia Civil divulgou um balanço com o nome dos sete presos e as acusações. Bruno fora “preso por porte de artefato e desacato”, segundo a nota, igualmente divulgada pela imprensa. Em depoimento na delegacia, o PM Diego Luciano de Almeida disse que Bruno “começou a instigar os outros manifestantes” e que “neste momento, um manifestante não identificado lançou um ‘coquetel molotov’, e, logo após acenderam um outro que entregaram a Bruno Teles, que também o lançou”. Acusou-o também de oferecer resistência à legítima voz de prisão: “O declarante machucou a sua mão tentando deter Bruno, que resistia a todo momento usando a sua unha”.

Bruno chegou a Bangu lá pelas 4h30. O carcereiro logo o identificou como aquele que “tava botando fogo na polícia ontem”. Em seguida, o encostou contra a parede e “chamou um garoto e botou do meu lado, menino sem camisa, coitado, todo já esculhambado”, lembra. “E deu porrada no garoto. Aí eu já fiquei com medo. E fiquei com mais pena do moleque do que com medo dele me bater. Eu só escutava umas porradas e uns gemidos.”

Bruno Ferreira Teles conquistou, em primeira instância, o direito de ser indenizado em R$15 mil pelo governo do Rio. Em 2016, porém, a decisão foi revertida na segunda instância (Foto: Natalia Viana/Agência Pública)

 

Bruno ficou em uma sela separada, só para ele. Não pregou os olhos; de manhã foi liberado graças a um habeas corpus. A decisão judicial alertava para prisões “sem amparo legal durante as manifestações populares que vêm ocorrendo recentemente no país”. E até o papa defendeu as manifestações. “Ele disse que a voz dos manifestantes tem que ser ouvida”, diz Bruno.

Seis dias depois, o processo contra ele foi arquivado após o Ministério Público (MP) ter analisado as imagens disponíveis na internet. Para o MP, a palavra isolada do policial Diego Luciano de Almeida “não configura indício suficiente de autoria a justificar a deflagração da instância penal, em não havendo outras provas”. Destacou, ainda, que os policiais feridos diziam “não ter como identificar o autor do arremesso”. O PM passou a ser investigado pelo MP por excessos na prisão e de falso testemunho.

“Foi um dia em que o sistema levou um xeque-mate”, lembra Bruno. “Me senti orgulhoso de todo esse trabalho que nós fizemos.”

A Justiça reconhece e depois dá para trás

“Foi um abuso”, resume o advogado Miguel Dehon, que defende o caxiense. Logo após o arquivamento da acusação, Dehon iniciou a segunda etapa dessa história – a luta por reparação. No processo, afirmava que o rapaz fora atingido em sua “honra, a intimidade, a vida privada e a imagem, por força da prática arbitrária e por que não dizer midiática dos agentes de segurança pública”. (Baixe aqui a peça)

Quase dois anos depois do ocorrido, em março de 2015, a juíza Sylvia Therezinha Hausen de Area Leão, da 2ª Vara de Fazenda Pública do Rio, lavou a alma e deu ganho de causa ao manifestante. “Resta claro o equívoco e açodamento dos policiais militares em incriminar o autor”, disse a juíza. “Quanto à fuga do autor após ser abordado pelos policiais, é certo que ele deu causa à perseguição policial. Por outro lado, diante da dinâmica dos fatos narrados, entendo que não há como imputar a culpa exclusiva da vítima na produção do evento, haja vista o clima de tensão das manifestações e a sucessão de notícias veiculadas à época sobre a abordagem violenta dos policiais militares, o que justifica a tentativa do autor de fugir da abordagem. Por outro lado, eventual fuga do cidadão não torna lícita qualquer atividade excessiva da polícia na própria perseguição policial e tampouco autoriza o indiciamento equivocado de uma pessoa em inquérito policial”. A juíza condenou o Estado a pagar uma indenização de R$ 15 mil (veja aqui a sentença).

Porém a celebração da vitória durou pouco. O governo do Rio recorreu à segunda instância, que reverteu a decisão em 13 de abril de 2016. Para o desembargador Elton M. C. Leme, os policiais agiram legalmente. “Ainda que o primeiro autor não tenha lançado nenhum artefato explosivo contra a tropa, participava da mesma baderna descontrolada. Na dinâmica dos fatos, acabou imobilizado por policiais, após oferecer resistência. Houve, portanto, perseguição e resistência.” Ele conclui: “A coerção pessoal que enseja o dano moral pelo sofrimento causado ao cidadão é aquela que não observa os parâmetros legais e decorre de má-fé dos agentes públicos, o que não se verificou no caso concreto, em que não houve violação ao princípio da dignidade da pessoa humana”.

Agora o advogado de Bruno recorre ao Supremo Tribunal Federal (STF), onde não há previsão para uma nova sentença. “Eu fiz o recurso ao STF, mas eu acho muito difícil, apesar de todo o meu esforço, mudar isso. É uma decisão absolutamente retrógrada”, lastima Dehon.