Agência Pública

Uma jornada pelos territórios em conflito na Amazônia

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Com exceção de alguns anos na TV, em toda a minha vida fiz reportagens de texto. Minha ambição ao contar as histórias, que buscava em diferentes realidades, era levar o leitor junto comigo, descobrindo paisagens, personagens, a beleza e a tragédia em suas falas, nos seus modos de viver, a crueza da luta travada contra gente poderosa, que atropela leis e vidas com a cumplicidade do Estado, longe dos holofotes da mídia. 

Mas não estava preparada para o impacto que tem uma reportagem dessas em áudio. Sim, já ouvi muitos podcasts, embora ainda sejam poucos aqueles no Brasil que se dedicam ao jornalismo investigativo. Mas, mesmo depois de acompanhar a primeira temporada do Amazônia Sem Lei, que foi ao ar no ano passado, meu coração disparou ao ouvir o primeiro episódio da nova temporada do Amazônia Sem Lei, que está no ar desde terça-feira passada.

Com roteiro primoroso de Clarissa Levy, que teve o cuidado de ouvir todas as gravações que eu e o José Cícero trouxemos da comunidade Cedro, em Arari, Maranhão, e costurar o drama contado pelas falas emocionadas de dona Maria do Bom Parto, Adriana e sua mãe, dona Deusa, familiares de três de cinco quilombolas assassinados nos três últimos anos no Cedro e na comunidade vizinha de Flecheira, o episódio é impactante.

Se, para mim, aquelas vozes trouxeram de volta a sombra das árvores e as rodas de conversa no quilombo, ouvi-las pela primeira vez faz abrir o coração de quem se aproxima da vida das comunidades. Não há como duvidar daquela verdade expressa de forma simples e a indignação diante da injustiça contagia quem escuta. 

Acho que não há maneira melhor de sensibilizar as pessoas diante de dramas tão estruturais no país, como a violência dos conflitos fundiários contra comunidades tradicionais e agricultores familiares que já afetou mais de 100 mil famílias nos últimos dez anos, segundo os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Foi a partir dessa base de dados, cedida pela CPT com exclusividade à Pública, que nós, repórteres, fomos investigar os casos de violência narrados nos seis episódios dessa nova temporada. 

Assassinatos, ameaças de morte, perseguição de lideranças, casas queimadas, roças destruídas se repetem com tanta frequência na Amazônia que as pessoas parecem se acostumar a essa violência que, paradoxalmente, é mais escandalosa exatamente por ser tão comum e quase sempre impune. 

Debruçar-se sobre casos específicos, investigá-los e documentá-los é essencial para provocar os que têm poder de mudar essa situação – como procuradores da Justiça e políticos. Mas, para que o país evolua de verdade, é preciso que os cidadãos se importem, reflitam, debatam, cobrem e tirem da inércia os operadores de Justiça, as empresas que violam direitos, as autoridades locais e federais. 

Nisto, a série Amazônia Sem Lei, concebida e coordenada pelo nosso Thiago Domenici, com narração de Clarissa Levy e Ricardo Terto, traz uma contribuição decisiva. É impossível ficar indiferente diante da dor dos quilombolas do Maranhão, da violência cotidiana em Porto Velho – investigada por Clarissa no segundo episódio –, do sofrimento dos Yanomami, ainda em crise sanitária apesar dos esforços de expulsão dos garimpeiros, acompanhado por Rubens Valente.

Não é uma série fácil de ouvir, apesar da narrativa instigante e do impacto das vozes da Amazônia que sobressaem nos episódios. Mas é a possibilidade de mergulhar na complexidade da cultura e da vida dessas comunidades, de aprender e se indignar com elas, de conhecer os vilões – quase sempre fazendeiros, grileiros, madeireiros que contam com o apoio de autoridades e com a impunidade da Justiça – e entender as raízes da violência na Amazônia, ponto de partida para qualquer projeto consequente para essa região tão estratégica para um futuro democrático e sustentável para o país.

Para mim, o podcast trouxe um bônus extra, que, acredito, se repetirá nos próximos episódios. Com a história em áudio, é muito mais fácil a comunidade do Cedro ouvir coletivamente sua própria história e fazê-la circular por outras comunidades quilombolas que resistem em todo o país. 

Que essas vozes encontrem ressonância e tragam transformação para todos nós.

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