Roubaram
a praia

Nesta série de reportagens, chegamos a pé ou de barco até praias fechadas, controladas e vigiadas pra revelar as disputas por esse bem que é de todos

Se algum deputado propusesse uma lei permitindo a privatização ou concessão de praias, com certeza seria rechaçada pelos eleitores.

No entanto, sem nenhuma permissão legal, o público e o privado vêm se confundindo nas faixas de areia do litoral brasileiro, deixando apenas uns poucos usarem um território que pertence a todos. São mansões de luxos, resorts, clubes, entre outras estruturas que inibem a circulação e promovem segregação na areia. Assim o deslumbramento de alguns pode passar do limite do razoável ao limite da ilegalidade.

A lei federal 7.661, de 1988, estabelece, no seu artigo X, que no Brasil as praias “são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica”. Ou seja, pisar na areia no Brasil é fazer valer um direito.

Em países da Europa e nos Estados Unidos, praias privatizadas por grandes empreendimentos são permitidas por lei – diferentemente do Brasil.

A fim de animar as ocupações nas praias, a geógrafa Irene Chada Ribeiro, criada em Angra dos Reis, escreveu sua dissertação de mestrado usando como fio condutor o conceito do “comum”. Ela distingue o público, o privado e o comum. O que é privado pertence a agentes particulares. O “público” é ligado, no Brasil, à propriedade do Estado. Já a diferença entre o que é “público” e o que é “comum” é o acesso, segundo ela. Um hospital público, por exemplo, é obviamente público, mas não se pode circular nele sem obedecer a critérios associados à saúde.

“Essa dimensão não estatal das praias deveria impedir que elas fossem privatizadas e se tornassem, por exemplo, de uso exclusivo por condomínios ou hotéis”, diz a advogada Virgínia Totti, professora da PUC-RJ. Segundo ela, o “comum” é uma categoria difusa, que pertence a toda a coletividade, e “não exatamente ao Estado”. Assim, os governos deveriam agir como um gestor dos interesses da sociedade, resguardando o cumprimento da legislação. Não é bem assim.

“Muitos são os casos autorizados pelo próprio Estado, que se ausenta de seu dever fiscalizador, permitindo a privatização de praias”, diz. “Isso denota a proximidade do poder público com certos setores privados”.

Irene definiu, em seu mapeamento das praias de Angra dos Reis, diferentes tipos de “privatização”: acesso privatizado, ou seja, proibido ao público e franqueado a proprietários e hóspedes; acesso livre, mas com trilhas, ruas e escadas que não são confortáveis ao caminhar em quaisquer dias e horários; acesso controlado, com a entrada na praia franqueada sob condições, como seguranças em portarias e cancelas exigindo identificação do usuário ou estabelecendo horários à circulação e permanência; acesso de interesse estatal, como áreas militares; e, por fim, falta de acesso pela impossibilidade de se chegar por terra.

Nesta série especial, elaborada ao longo de cinco meses, nossa reportagem mergulhou nos diferentes aspectos da privatização das praias fluminenses. Viajamos até Angra dos Reis, Paraty, perscrutamos as areias da capital. Usando a nomenclatura criada pela geógrafa, elaboramos um mapa interativo pelo qual você, leitor, vai poder denunciar que uma praia foi privatizada.

Mas não adianta só denunciar. Ir à praia é um ato de preservação do direito. Que se juntem a nós aqueles que adoram pegar uma praia.

Em Angra, uma aula sobre praias privatizadas

Condomínio Laranjeiras: segregação, ameaça e processos em Paraty

Negrão, o dono da praia

Roubaram a praia do Vidigal


Roubaram
o céu

Na segunda série de reportagens, contamos a história de arranha-céus que arruinaram o horizonte carioca - sempre com a conivência do prefeito da vez

Em “Samba do avião”, lançado em 1962, o músico Tom Jobim descrevia o Rio de Janeiro antes de pousar no aeroporto do Galeão, que hoje leva seu nome. Falava de um “Rio de sol, de céu, de mar”, para descortinar o skyline da cidade, o contorno que ela forma ao encontrar com o céu.

Quinze anos depois, o compositor mudou de tom. Irritado com a subida dos chamados espigões, fez uma intervenção mal-humorada na música “Carta ao Tom”, com coautoria de Chico Buarque: Minha janela não passa de um quadrado/ A gente só vê Sérgio Dourado/ Onde antes se via o Redentor. Sérgio Dourado foi uma construtora famosa até o fim dos anos 1970.

O skyline é a marca de uma cidade. Guarda a sua personalidade, sua originalidade – quem já cruzou a Rodovia Dutra vindo de São Paulo sabe que o limite estadual é marcado justamente por uma representação dos orgânicos morros cariocas, sempre à vista. Mas a quem pertence o skyline do Rio? “As alturas sempre estiveram presentes na cidade. Ela é um cenário vivo de sua legislação”, diz o arquiteto Rogério Cardeman, que, com o pai David Cardeman, escreveu o livro Rio nas alturas.

Se a Sérgio Dourado desapareceu, outras construtoras vieram, e a ofensiva contra o céu e a vista vem recrudescendo desde então.

Nesta série especial, a Pública traz três reportagens que contam a história de como o gabarito dos prédios foram crescendo sob a pressão de grupos econômicos, sobretudo os imobiliários.

A construtora São Marcos, que foi o braço incorporador das Organizações Globo até 2008, é um exemplo. Um shopping em Botafogo recebeu da prefeitura o que se chama de “despacho superior”: foi construído à revelia do zoneamento do bairro. Outros espigões, shoppings e hotéis receberam a mesma forcinha das autoridades pra burlar a lei e enfear um pouco mais a cidade maravilhosa.

“O skyline é o perfil das cidades”, diz o arquiteto Luiz Fernando Janot, conselheiro do Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio de Janeiro. Cuidar desse skyline, portanto, é fundamental. Ele alerta que esse não é um problema só do Rio “O skyline é desrespeitado em várias cidades brasileiras”.

Se você já percebeu algum prédio que agride o visual da sua cidade, seja ela no Norte, Sul, Sudeste, Nordeste ou Centro-Oeste do país, participe e envie uma foto para a Pública através desse mapa.

Os prédios que violaram o skyline do Rio

Venderam o céu do porto

Hotéis foram aos céus pela Olimpíada


Roubaram
a rua

A terceira série de reportagens investiga como aquilo que está debaixo dos nossos pés é usurpado do uso comum por governos ou agentes privados

Se a praça é do povo como o céu é do condor, como dizia o poeta Castro Alves (ou do avião, como escreveu Caetano Veloso), por que nunca sabemos a quem recorrer quando uma praça, um terreno ou uma rua pública são fechados, impedindo o acesso dos pedestres?

O tema do fechamento de ruas é controverso, fruto de debates acalorados e muitas brigas de vizinho. Em São Paulo, em março de 2016, após questionamentos da Justiça, a prefeitura de Fernando Haddad (PT) determinou que os portões de vilas deveriam permanecer abertos durante o dia; a Câmara dos Vereadores reagiu, aprovando uma lei que permitia o fechamento a pedestres o dia todo. Ao final, o ex-prefeito regulamentou o impedimento de transeuntes, mas apenas durante a noite. Na época, a prefeitura identificou 678 vias fechadas, 231 em situação irregular.

Já no Rio de Janeiro, cidade que tomamos como ponto de partida para esta série de reportagens, a coisa é bem diferente. Embora seja prática corriqueira na cidade, a prefeitura não tem nem ideia de quantas ruas são fechadas por cancelas e portões. O debate está acalorado; na semana passada, moradores do bairro de Laranjeiras, na zona sul, expulsaram uma empresa que instalou uma cancela na sua rua, sem a permissão da maioria. Acusaram o serviço de “milícia gourmet”; o proprietário da empresa não gostou nada disso, e promete processar todo mundo por difamação. Há ainda uma briga entre vereadores e o prefeito, Marcelo Crivella (PRB), sobre como regulamentar a prática – e a quem cabe essa decisão.

Como nos demais temas abordados no especial Coleção Particular – praias privatizadas e céus privatizados –, as histórias contadas aqui são apenas o ponto de partida. Sabemos que há centenas, milhares de casos semelhantes em quase todas as cidades brasileiras. Por isso, precisamos que o leitor se converta em repórter-cidadão e inclua no nosso mapa colaborativo casos de ruas fechadas na sua cidade de maneira irregular. Vamos juntos mapear mais esse roubo do espaço público!

Ruas privatizadas causam conflito no Rio de Janeiro

Há 40 anos, roubaram uma rua em Botafogo

Em São Paulo, empresas e clubes ocupam terrenos públicos irregularmente