Igor Miranda, procurador do Ministério Público Federal, afirma que a lei da praia livre é desrespeitada de forma recorrente em Angra dos Reis. “Aqui, há um número elevado de ações contra o que se chama de privatização de praias. Há casos impressionantes de condomínios que fazem de tudo para que praias só sejam frequentadas por seus moradores’’, disse o procurador à Pública.
Há quadros gravíssimos de apropriação da areia e do mar públicos que perduram desde os anos 1970 em Angra dos Reis, a partir da construção da Rodovia Rio-Santos, que aumentou o potencial turístico e imobiliário da região. O Ministério Público Federal (MPF) investiga, por exemplo, o heliponto instalado no mar próximo à faixa de areia na praia do Morcego, na ilha da Gipoia. O MPF não cita nomes nem endereços, mas admite que está em fase de procedimentos em condomínios na BR-101, a Rodovia Rio-Santos. Na mesma ilha, há procedimentos que investigam a existência de impedimentos de acesso a praias. Segundo o MPF, são muitos os casos ao longo da via de condomínios que impedem acessos a praias. A Pública fez um pedido para que o MPF listasse todos os casos, mas não foi atendida em sua demanda.
Luciano Huck, que chegou a ser cotado como candidato à Presidência em 2018, foi condenado por ter cerceado o acesso à praia em frente de sua mansão na Ilha das Palmeiras. Depois de recorrer da condenação, adiando-a por seis anos, o titular do programa “Caldeirão do Huck”, da Rede Globo, pagou recentemente uma multa por cercar de boias o mar em frente à sua residência em Angra dos Reis, a qual já vendeu para o empresário Joesley Batista, dono da JBS e preso pela Polícia Federal.
Igor Miranda, o promotor do Ministério Público Federal de Angra dos Reis, disse à Agência Pública que o próprio Luciano Huck reconheceu a sentença e pagou R$ 40 mil. “Mas ele precisa pagar mais R$ 80 mil, porque deixou as boias 40 dias após a sentença”, garantiu o procurador. Como Huck não quis mais tentar novos recursos, a sentença foi confirmada pelo Tribunal Federal Regional da 2 Região. A multa adicional era de R$ 2 mil por dia.
No documento, o MPF justifica a multa adicional: “Preliminarmente, que foi deferido parcialmente às fls. 76/78 o pedido formulado pelo MPF de concessão da antecipação dos efeitos da tutela, determinando que, no prazo de dez dias, o réu Luciano Huck procedesse a imediata retirada da estrutura de cerco aparentemente dedicada à maricultura, existente no entorno da Ilha das Palmeiras, que se estende ao longo de toda a faixa costeira da residência do réu Luciano Huck, sob pena de retirada compulsória e/ou imposição de multa diária no valor de R$2.000,00 (dois mil reais), no caso de descumprimento. Não obstante, o réu Luciano Huck não cumpriu a medida liminar e interpôs recurso de agravo às fls. 105/126. Em razão de tais condenações, do trânsito em julgado ter ocorrido em 01 de agosto de 2017, bem como o executado ter cumprido parcialmente o julgado, faz-se necessário o cumprimento integral da sentença”.
O MPF deixa claro que Huck ocupou um espaço público, como enfatiza o texto da própria ação: “foi proferida sentença resolutiva de mérito, no bojo da qual restou declarada em face de Luciano Huck a ilegal instalação de cerco de boias, que resultou na privação da coletividade de bem público de uso comum. Tal fato, inexoravelmente, fez presumir o resultado danoso em detrimento da coletividade e dos frequentadores do local (turistas e moradores da localidade)”.
A condenação data de 2011 e foi proferida pela juíza Maria de Lourdes Coutinho Tavares. À época, ele alegou que as boias eram para o cultivo de mariscos. Na sentença, a juíza já apontava a vontade do apresentador em privatizar um espaço público: “A maricultura seria um pretexto para legitimar a pretensão não acolhida pela lei, de apoderamento de bem de uso comum do povo”. Ativista ambiental de Angra, Ivan Marcelo Neves disse à Pública que Huck iniciou a obra de sua mansão na ilha no início dos anos 2000, mas só teria conseguido uma licença do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) em 2004.
A Pública ligou para o Inea para confirmar a licença, mas não obteve retorno do instituto. Mas, segundo Ivan, Huck, sem licença ambiental, fez também o que se chama tecnicamente de engorda de praia. Pegou areia do lugar, e trouxe mais areia em lanchas, para fazer um cantinho de praia particular. “Ele fez essa engorda de praia sem amparo [legal]”, diz Ivan, acrescentando que a casa foi construída em desconformidade do zoneamento da Área de Proteção Ambiental Tamoios.
A liderança local disse que Huck quis se isolar com boias, também, porque turistas que passeavam de barco e até paparazzis queriam fotografar famosos levados à ilha. “O casal de atores norte-americanos Demi Moore e Ashton Kutcher chegaram a ser hospedar na mansão em Angra. Um paparazzi chegou a quebrar uma perna caindo de uma árvore”.
A partir de 2007, a prefeitura de Angra chegou a processar Huck por construção irregular, e o apresentador foi defendido pela então primeira-dama fluminense Adriana Ancelmo, advogada e esposa do então governador Sérgio Cabral. Coincidência ou não, Cabral fez, em 2009, o decreto 41.921, que tem normas mais frouxas para construções em algumas regiões de Angra dos Reis, inclusive aquela onde está instalada a mansão, que foi afinal vendida em 2013 ao empresário Joesley Batista, atualmente preso em decorrência da Operação Lava-Jato. Como a Procuradora Geral da União está questionando o decreto estadual, a mansão, com um novo dono, tem à sua espreita o fantasma da irregularidade.
Procurado pela reportagem, Luciano Huck não respondeu às perguntas.