Cento e quarenta e um degraus. Quem quiser acessar a praia do Vidigal – e não for hóspede do Hotel Sheraton Grand Rio Hotel & Resort – precisa descer exatamente 141 degraus. Essa cobiçada faixa de areia pode ser vista por quem passa na avenida Niemeyer, que liga o bairro do Leblon ao de São Conrado. Mas, para chegar lá, haja degrau. Em sua inauguração, no início dos anos 1970, o hotel, situado aos pés da favela do Vidigal, passou a ocupar o acesso antigo à praia.
O hotel fica em um terreno de intensa declividade com cerca de 30 mil metros quadrados, entre a própria avenida Niemeyer e a praia, na capital fluminense. Da praia até a avenida, são ao todo seis pavimentos, e os acessos ao hotel são feitos no sexto andar por este ficar no mesmo nível da via. Acima da avenida, são mais 18 apartamentos. Ao todo, a espaçosa edificação conta com 596 apartamentos. Estando nela, pode-se chegar à praia de elevador – são quatro principais e dois de serviço – ou escada rolante.
Nos anos 1970, notícias de jornal mostram como o hotel era anunciado aos hóspedes VIP como se tivessem acesso a uma praia particular. O jornal O Globo chegou a noticiar em 1973 que a praia do Vidigal era “exclusiva” do Sheraton. Foram notícias como essa que começaram a revoltar moradores do
entorno. Luís Cláudio Lima, 70 anos, residente na favela do Vidigal desde os 10 anos, recorda que os moradores se organizaram. “O acesso para a praia, naquela época, passou a fazer parte do terreno do hotel. Como ali é uma encosta, a praia passou a ser só frequentada por hóspedes. Fizemos um protesto na avenida e outro na própria praia.”
Pressionado, o hotel construiu a longa escadaria como único acesso a quem não é hospede. Embora o Sheraton não controle o acesso de quem quer chegar até a praia, tampouco facilita o passeio dos demais moradores da área. “Trata-se de um acesso tão desconfortável em relação ao que oferece o hotel que
mostra claramente uma segregação socioespacial’’, diz o arquiteto Pablo Benetti, para quem a escada está defasada em termos de padrão urbanístico.
Pescadores cuja presença só é notada devido aos armários de madeira onde guardam seu material de pesca e moradores da favela do Vidigal, comunidade com quase 10 mil habitantes segundo o Censo de 2010, localizada na encosta acima do hotel, relataram à Pública que o hotel não dá apoio a quem
precisa ir de elevador até a avenida – caso de pessoas com problemas de mobilidade. “Já houve pessoas que ou passaram mal ou mesmo quase se afogaram e tiveram de subir a escadaria. Casos assim dependem da boa vontade do gerente de plantão”, diz o pescador Marco Aurélio Costa.
Moradora do Vidigal, Jéssica Carvalho, de 25 anos, estava na praia do Vidigal, amamentando um bebê de 4 meses no último mês de setembro. A reportagem da Pública perguntou então se ela enfrentaria aqueles 141 degraus de volta para casa. “Você contou o número de degraus?”, indagou. “Vou voltar pela escada, sim; nem passou pela minha cabeça pedir ao hotel.”
A reportagem da Agência Pública tentou algumas vezes contato com o hotel, mas não foi atendida. Sem se identificar, um gerente disse que o critério de acesso é “caso a caso”, explicando que se trata de um prédio privado.
O Sheraton atualmente pertence à rede norte-americana Marriott, que, por sua vez, o adquiriu da rede StarWood em 2014, somando assim mais de 5 mil hotéis no mundo. A estada custa mais de R$ 600 no quarto mais em conta. Há unidades para casal, família, de frente para o mar, tudo isso levando a variação de preços. Uma refeição pode sair de R$ 100 a R$ 300.
O hotel é mais frequentado por argentinos, chilenos e, em menor escala, brasileiros, de acordo com funcionários. E tem um histórico de hóspedes famosos como o ex-presidente americano George Bush, o cantor norte-americano Tony Bennett e o ídolo britânico da música pop Rod Stewart. Entrevistados pela Pública, alguns hóspedes disseram não ver nenhuma segregação.
Porém, na faixa de areia, nota-se uma clara divisão. Aquelas cadeiras de madeira na praia, tão características de hotéis de luxo, firmam uma espécie de linha divisória entre os hóspedes e moradores do Vidigal que frequentam o pedaço.
O começo
Em 1968, quando instalou ali seu empreendimento, a administração do Sheraton resolveu privatizar a praia do Vidigal, onde já havia uma colônia de pescadores. Armando Almeida Lima, de 75 anos, a quem moradores da favela do Vidigal recorrem quando o assunto é memória do morro, disse que já durante a obra o hotel tentou fechar os caminhos da praia, o que seria ilegal segundo a legislação atual – a Lei 7.661, de 1988, garantiu que as praias são bens públicos de uso comum do povo.
“Nosso único acesso, que era uma escada de barro, passou a fazer parte do terreno do hotel. É claro que o Vidigal foi contra, mas o fundamental para a construção de novos caminhos para a praia foi a pressão de moradores de classe média alta da avenida Niemeyer, que também não se conformaram com a ideia de uma praia exclusiva para o hotel. Então, o hotel construiu uma escada de madeira e, depois de protestos, uma de alvenaria.”
Armando não vai mais à praia que leva o nome da favela onde mora. “Com a minha idade, fica impossível encarar aqueles degraus’’, diz. Mal conservado, o caminho é inóspito, íngreme e com concreto já desgastado. Também morador do Vidigal, o cantor e compositor Sérgio Ricardo, de 80 anos, é outro que nunca mais frequentou a praia. “Não vou pedir para ir à praia no elevador do hotel. Aquilo ali é uma invasão”, diz ele.
Para outra moradora do Vidigal, Bárbara Nascimento, de 28 anos, o hotel criou “um apartheid”. “E não criaram uma rampa para cadeirantes ou idosos, mas uma escada praticamente só para jovens.” A praia é dos moradores, segundo ela. “Essa praia tem tanto a ver com o Vidigal que até Vinicius de Moraes fez um poema chamado ‘Balada da praia do Vidigal’. Parece que ele teve um encontro amoroso por lá.” Para Bárbara, só um acesso decente a todos devolveria o ar democrático à areia. “É muito estranha essa história de acessos diferenciados à praia.”
Em 2016, quando o peemedebista Eduardo Paes ainda era prefeito, sua administração prometeu um caminho mais acessível aos moradores. Nada foi feito. Procurada pela Pública, a atual prefeitura de Marcelo Crivella (PRB) limitou-se a responder: “Não há projeto para o local. A prioridade da Geo-Rio [Fundação Instituto de Geotécnica, órgão da Secretaria Municipal de Obras] são obras nas encostas que ofereçam riscos”.
Nos anos 1990, a prefeitura do Rio, com Cesar Maia (PMDB) à frente da administração municipal, fez o projeto Favela-Bairro, no morro do Vidigal. Como a calçada do hotel era por demais estreita, o poder público local pediu que ela fosse refeita, a fim de ficar mais larga e evitar atropelamentos em uma via bem movimentada. Então secretário municipal de Habitação e hoje presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), Sérgio Magalhães relembra o caráter elitista do hotel à época numa área contígua à favela do Vidigal. “O hotel não queria pobres passando em frente a ele, e só fez a calçada depois que saiu uma nota em uma coluna famosa do jornal O Globo”, conta o presidente do IAB. “No final, a calçada foi refeita.”