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Os prédios que violaram o skyline do Rio

O que é skyline, ou “linha do céu” em inglês? O arquiteto Luiz Fernando Janot, conselheiro do Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio de Janeiro, explica com um exemplo essa marca característica das grandes cidades. E o melhor exemplo do Rio de Janeiro, na visão dele, é olhar, com o pé na areia da enseada de Botafogo, para os prédios do outro lado da avenida. “Olhando essa massa de cimento armado, flagra-se um skyline onde o concreto se sobrepõe à natureza, traduzida pela sinuosidade das montanhas logo atrás das edificações”, diz ele.

“Paris não tem montanhas, São Paulo também não. Então o skyline nessas capitais é limitado pelo contorno dos pontos mais altos dos edifícios. O skyline é o perfil das cidades”, diz o arquiteto. Cuidar desse skyline, portanto, é fundamental. E a palavra mágica para entender a agressão ao perfil da cidade é o “gabarito”, o tamanho máximo que um prédio pode crescer, de acordo com a legislação, a Lei de Zoneamento ou decretos de exceção que são muito comuns no Brasil.

“O skyline é desrespeitado em várias cidades brasileiras. Levá-lo em conta, tomar cuidado com o gabarito dos prédios, é fundamental para que não aconteça algo como em Balneário Camboriú”, acrescenta Janot, lembrando o município em Santa Catarina cuja praia, hoje, tem mais sombra do que de sol devido ao paredão formado por grandes edifícios. Apenas este ano, Camboriú deixou de ser a cidade com o maior prédio do país. Na orla, esse gigante mede 177 metros e tem 46 pavimentos. Foi desbancado por um prédio de Goiânia, de 190 metros.

No Rio, construtoras, com a cumplicidade do poder público, já fizeram alguns estragos que ficaram cravados na cidade como monstros a disputar espaço com as encostas. O caso do morro da Viúva, no Flamengo, é emblemático: é uma colina que pouca gente, mesmo do Rio, sabe que existe. Ela ainda está lá, mas é cercada de grandes prédios.

O morro da viúva existe, mas ninguém vê

A capital fluminense teve leis que ensejaram a verticalização dos prédios, sobretudo entre os anos 1960 e 1970. Na década seguinte, a legislação ficou bem menos flexível. No período do prefeito Eduardo Paes (PMDB), de 2008 a 2016, contudo, houve novas leis para aumento de gabarito na Região Portuária, no âmbito do projeto Porto Maravilha, e de bairros que receberam hotéis para os Jogos Olímpicos, como Copacabana.

Houve ainda o aumento de gabarito no bairro da Penha, aprovado na Câmara dos Vereadores em outubro de 2011. Isso ocorreu a despeito de o Plano de Estruturação Urbana (PEU) ter previsto ali gabaritos de quatro andares, que permitem que a Igreja da Penha, construída em 1613 sobre uma rocha de 111 metros de altura, possa ser admirada desde qualquer ponto do bairro. O PEU foi alterado sob forte influência do então secretário municipal de Urbanismo, Sérgio Dias, que não teve nenhum constrangimento em afirmar que o novo PEU aprovado na Câmara – e, portanto, com força de lei – iria atrair mais empreendimentos imobiliários ao bairro por liberar prédios com 12 andares, alterando radicalmente o gabarito anterior.

“Fizeram isso para agradar a interesses imobiliários”, disse à Pública o arquiteto Flávio Ferreira, responsável pelo Plano de Estruturação Urbanística da Penha anterior, realizado em 1988.

Céus da antiga capital

O Copacabaan Palace foi o primeiro no paredão de prédios que hoje domina Copacabana

O histórico do Rio de Janeiro, em relação à altura das edificações, foi bem mais próximo do chão até o século 20. O arquiteto David Cardeman, autor do livro O Rio nas alturas, em parceria com Rogério Cardeman, narra que, até a chegada do príncipe regente dom João VI, em 1808 – que trouxe a capital do império português para o Brasil ao fugir de Napoleão –, a área do centro era povoada por casas de um e dois pavimentos e, em casos mais raros, três ou quatro. Dom João VI, naquele tempo, fez decretos visando à construção de prédios, mas determinou que não passassem de dois andares. Em 1885, um decreto imperial determinava que habitações de famílias de baixa renda deveriam ter apenas um pavimento. No Brasil republicano, as edificações começam a ficar um pouco mais perto do céu da então capital do país. Um decreto de 1900, como aponta Cardeman, liberava a algumas ruas prédios de três andares.

Nos anos 1920, a cidade rompe com o andar baixo. Um mesmo arquiteto, o francês Joseph Gire, assina o projeto do edifício A Noite, com 22 pavimentos, e o Copacabana Palace, com duzentos e vinte e seis apartamentos e suítes, 148 no prédio principal e 78 no anexo, em uma área de onze mil metros quadrados. Também nos anos 1920, o prefeito Antônio Prado Júnior contrata o urbanista francês Alfred Agache para fazer o primeiro Plano Diretor da cidade, no qual o zoneamento de áreas industriais e residenciais é definido. “Seu plano não foi implementado, mas acabou influenciando a ocupação de Copacabana. Assim, Copacabana se verticalizou muito entre os anos 1940 e 1960, formando paredões devido à falta de espaçamento entre um prédio e outro. “Bairros como Botafogo, Flamengo, Catete seguiram o mesmo caminho”, explica Cardeman à Pública. Ele ressalta que, até os anos 1930, o bairro conhecido como “Princesinha do Mar” era pontificado somente por casas.

A cidade do Rio, no século 20, fica sob vigilância dos zoneamentos previstos pelas prefeituras, por decreto, ou seja, não era lei e, assim, não contava com a participação da Câmara dos Vereadores. Houve zoneamentos elaborados pelo poder público em 1914, 1918 e 1925. Em 1937, foi baixado um decreto que marcaria a cidade, o Código de Obras, que perdurou até 1970, com gabaritos variando de dois a dez pavimentos. Mas o decreto fundamental para entender alguns dos prédios imensos do Rio de Janeiro é o de número 3.800 de 1970, na gestão do governador do então estado da Guanabara Negrão de Lima, em que se permitia o erguimento de edificações de maneira bem radical: o decreto simplesmente liberou o gabarito ao céu desde que as edificações não ocupassem todos os limites do terreno e recuassem em relação à calçada. Ou seja, os donos de terrenos grandes poderiam fazer construções onde o céu seria o limite.

O polêmico Carlos Lacerda liberou as construções ao infinito

“Antes de Negrão de Lima, o governador Carlos Lacerda [1960-1965] havia baixado o Decreto 991, de 1962, no qual não havia barreiras ao crescimento vertical, quando o prédio não usava todos os limites do terreno”, diz Cardeman, apontando um exemplo de arranha-céu dessa época. “Em 1962, o edifício Apolo XI, próximo ao morro da Viúva, no Flamengo, pôde subir à vontade seus 28 pavimentos graças ao decreto de Lacerda.” Foi o primeiro prédio a tapar a vista do morro que hoje continua ali, mas ninguém consegue ver. A política do céu como limite acabou com um decreto de 1976, do então prefeito Marcos Tamoyo, que proibia a construção de prédios acima de 18 pavimentos no Rio de Janeiro.

Para a arquiteta Andrea Redondo, a Constituição de 1988 e, no Rio de Janeiro, a Lei de Orgânica do Município deram um fim aos decretos promulgados diretamente por prefeitos. “Agora, qualquer mudança tem de passar pela Câmara dos Vereadores.” Isso, teoricamente, abre mais discussão à sociedade sobre os rumos de edifícios e do skyline da cidade. “O problema aumenta quando leis de exceção que fogem do zoneamento dos bairros permitem gabaritos ainda mais acima daqueles que já cortam a paisagem”, afirma Roberto Anderson, arquiteto carioca com grande experiência em patrimônio histórico.

O edifício Candido Mendes

O edifício Cândido Mendes, projetado pelo escritório de arquitetura Harry James Cole

O centro viria a ter uma edificação que gerou uma grande polêmica em relação não só à agressão ao skyline ali como também à história do lugar. Cardeman o considera um atentado à arquitetura e ao urbanismo. Trata-se do edifício Candido Mendes, que abriga a faculdade de mesmo nome. Inaugurado em 1982, era o mais alto da cidade. Possui 49 pavimentos, com área total de 94.000m² e 140m de altura, foi projetado pelo renomado escritório de arquitetura Harry James Cole.

Construído sobre pilotis (colunas a partir do térreo), sua área avançou sobre o Convento do Carmo – edificação mais antiga da Praça XV, do século 17, que foi moradia de dona Maria I, a Louca, entre 1808 e 1816. A Antiga Sé, ao lado do convento, também contrasta, no mau sentido, com o edifício. Conhecida como Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, foi a Capela Real, no período de dom João VI, e Capela Imperial, no tempo de dom Pedro I e dom Pedro II.

Em frente ao prédio e ao convento, surge o Palácio Tiradentes, construído em 1922, a atual Assembleia Legislativa. Ali funcionava a chamada Cadeia Velha, onde o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, ficou preso antes de ser enforcado em 1792. “Ali havia uma harmonia entre as edificações históricas. Esse prédio quebrou isso de uma forma violentíssima. É uma das maiores aberrações do Rio de Janeiro”, diz o historiador Nireu Cavalcanti.

O edifício Candido Mendes foi aprovado na gestão do governador do estado da Guanabara Antônio de Pádua Chagas Freitas (1970-1975 ), no contexto do Conselho Superior de Planejamento Urbano como órgão normativo e consultivo. Sua função era estabelecer as diretrizes e normas do planejamento urbano e, entre outras atribuições, opinar nos casos especiais a cargo do governador – casos do licenciamento de edificações de caráter público e privado que se utilizassem da isenção dos dispositivos previstos no Decreto 3.800, que regulamentava o zoneamento, o parcelamento da terra e, claro, as edificações e construções. Nesse conselho havia a liderança do arquiteto Lucio Costa, um mito da arquitetura e do urbanismo nacional. Costa foi um a dar seu aval à construção do Candido Mendes.

Construtora da Globo fez shopping que desrespeitou lei em Botafogo

Em sua tese de doutorado, a arquiteta Rose Compans conta que o Botafogo Praia Shopping também se insere no trágico contexto de exceções. O prédio já tinha oito pavimentos quando era a Sears, uma famosa loja de departamentos onde foi inaugurada a primeira escada rolante do Brasil, e fechou em 1991 – mas ocupava apenas parte do terreno.

A construtora São Marcos, que era então um braço imobiliário das Organizações Globo, obteve, em 6 de novembro de 1997, uma licença municipal pela qual pôde aumentar para oito o número de andares do prédio em todo o quarteirão. “O projeto apresentado pela construtora São Marcos transformaria a construção num caixote único de oito andares da praia do Botafogo à Rua Muniz Barreto”, descrevia  o Jornal do Brasil.

A aprovação final ocorreu em novembro de 1997, na administração do prefeito Luiz Paulo Conde (PFL), mas a tramitação começou em 1996, quando seu antecessor, Cesar Maia, do mesmo partido, ainda era o prefeito do Rio. Segundo reportagem do Jornal do Brasil da época, o projeto previa que a parte de trás do edifício seria ampliada, passando de três para oito andares. Já no terreno dos fundos, na rua Muniz Barreto, seria construído um edifício-garagem com oito pavimentos. A área construída passaria de 15.227 para 46.745 metros quadrados. “

Notícia no JB sobre a liberação do Botafogo Praia Shopping

Os jornais louvavam o investimento de US$ 42 milhões feito pela São Marcos, os oito cinemas e as 226 lojas. O Jornal do Brasil descrevia: “Seu principal produto, para qualquer estação, será a vista da Enseada de Botafogo e do Cristo Redentor, em oferta a partir de dois terraços e da primeira escada rolante panorâmica do país”.

Ocorre que as normas urbanísticas de Botafogo só permitem três andares para prédios não residenciais, também pensando no impacto de circulação de pessoas.

O departamento de arquitetura e urbanismo da prefeitura de então se recusou a indicar um profissional que desse um parecer favorável àquela modificação, que feria o Plano Urbanístico de Botafogo, segundo ex-funcionários. Uma reportagem do Jornal do Brasil de novembro de 1997 detalhava: “Em ofícios internos adquiridos pelo jornal, a arquiteta Maria Léa de Araújo, da Coordenação de Licenciamento Central, e a então superintendente do Parcelamento e Edificações da Secretaria, Leila Leão, afirmavam que o projeto fere o gabarito da lei de zoneamento de Botafogo e ainda aumenta a taxa de ocupação do terreno para 90%, enquanto o permitido na área era de 70%”.

A construtora argumentava que o empreendimento era de interesse da cidade por revalorizar um prédio degradado e investir na cultura. A subsecretária de Urbanismo, Madalena Astácio, defendeu em ofício a construção. “A interpretação foi de que não haverá a construção de um prédio, mas a ampliação de um já existente e que já tinha oito andares”, escreveu. Ainda segundo a reportagem do JB: “Em resposta manuscrita, o prefeito Luiz Paulo Conde aprovou o projeto e fez apenas uma ponderação: que sejam abertas vitrines e acessos de pedestres para a rua Alfredo Gomes”.

A licença foi dada sob a rubrica denominada “despacho superior”, ferindo a Lei Orgânica do Município, segundo disseram à Pública funcionários que trabalhavam na prefeitura e pediram para não ser identificados.

Nas eleições de 2000, quando Cesar Maia, já no PTB, saiu vitorioso e voltou a ser prefeito do Rio, sua declaração de bens trazia dois apartamentos; um deles, no sexto andar do luxuoso edifício Rive Droite, em São Conrado – as metragens das unidades variam de 486 a 600 metros quadrados de área interna e contam cinco quartos, sendo quatro suítes, e quatro vagas de garagem – valia R$ 500 mil e fora adquirido com financiamento da construtora São Marcos, segundo declaração oficial do candidato. O valor foi questionado da imprensa da época, já que outros apartamentos no mesmo prédio custavam pelo menos o dobro.

Reprodução: Jornal do Brasil, 16 de agosto de 2000.

A construtora São Marcos, enquanto esteve sob controle da holding Globopar, foi repetidamente acusada de ignorar a legislação para limites de construção de prédios na Cidade Maravilhosa. O próprio edifício Rive Droite foi alvo de protestos da Associação de Voo Livre do Rio de Janeiro, que usa o local para voos de asa-delta. A obra chegou a ser embargada pela Justiça em 1992, mas reiniciada em razão de uma liminar concedida à construtora pela 4ª Vara de Fazenda Pública.

Secretário de Obras e Urbanismo na gestão de Marcello Alencar (PDT) entre 1989 e 1992, Luiz Paulo Correa da Rocha afirmava abertamente ao Jornal do Brasil que “é uma rotina a concessão de autorizações para que os limites sejam ultrapassados”. Em novembro de 1990, ele detalhou: “Agora mesmo, estamos analisando o projeto da cidade cenográfica da Rede Globo de Televisão, em Jacarepaguá, que, para ser executado, terá que ultrapassar em 267 metros o gabarito, que é de 33 metros.” O argumento que terminou vencedor foram os empregos que a cidade cenográfica ia gerar. “O que levamos em conta é o interesse da cidade e não o privilégio para esta ou aquela empresa”, disse o secretário – e citou ainda ao JB outro caso em que a construtora São Marcos não seguiu a legislação: o hotel Rio Atlântico, na avenida Atlântica. “Em 1985, foi pedida licença para uma edificação com 53 metros de altura. No entanto, foi construído um hotel com 59,30 metros de altura”, disse ele ao JB, explicando que a prefeitura do PDT considerou “inviável” ordenar a demolição do excesso e, por isso, cobrou mais-valia e deu o habite-se em dezembro de 1989.

Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa das Organizações Globo informou, por meio de nota, que a São Marcos “foi vendida para a Ancar em janeiro de 2008”. A Ancar era sócia no Brasil do fundo canadense Ivanhoe Cambridge. O valor da aquisição não foi informado, mas o jornal Valor Econômico estimou que tenha custado cerca de US$ 382 milhões.

Atualização em 4/11: Uma versão anterior desta reportagem dizia que a Sears tinha apenas 3 pavimentos, mas o prédio situado na rua Praia de Botafogo já tinha oito andares.  O seu estacionamento, na parte de trás, era mais baixo e foi ampliado. A informação foi corrigida.

Roubaram o céu