Não é segredo nenhum que o estado do Rio de Janeiro está em bancarrota financeira – e, com ela, sua política de segurança pública. Na zona sul da capital, a região mais rica da cidade, a insegurança tem agitado alguns grupos de moradores, temerosos da criminalidade crescente. Há pouco mais de um ano, alguns síndicos de prédios da rua General Glicério, um dos mais belos cantos do bairro de Laranjeiras, onde todo sábado pela manhã um conjunto de instrumentistas fãs de Pixinguinha se apresenta, passaram a se reunir para debater o que fazer diante do aumento do número de assaltos. Dos encontros surgiu a ideia de contratar uma empresa de vigilância e, no fim da tarde de 4 de dezembro, a Groupe Protection instalou duas cancelas e cabines com o logotipo do grupo em frente à praça do Choro, principal ponto de encontro do bairro.
A ideia acabou se mostrando desastrosa – e virou centro de um embate acalorado pelo qual passam aqueles favoráveis ao respeito aos espaços públicos, atravessam alguns defensores do isolamento de vias em nome da segurança e circula uma sociedade cada vez mais afeita a guetos.
“Quando desci para a rua, dei de cara com um mundo de homens de preto instalando duas guaritas e duas cabines, cada uma de um lado da praça. Resolvi perguntar quem havia contratado tudo aquilo. A resposta de um deles foi a de que síndicos de prédios fizeram um acordo com a empresa. E esse acordo seria a permanência dessa parafernália toda por 15 dias, para averiguar se a iniciativa desses síndicos teria a aprovação da maioria dos moradores desse pedaço”, relata Rita Fernandes, presidente da Associação Independente dos Blocos de Carnaval de Rua da Zona Sul.
A indignação de Rita foi acompanhada por outros moradores, que não tinham a menor ideia da iniciativa e questionaram os seguranças. Mas a pressão forte mesmo foi nas redes sociais, que fez com que a empreitada não se perpetuasse por um dia sequer. Alguns moradores começaram a chamar a iniciativa de “milícia”. Houve, ainda, uma denúncia anônima ao 2º Batalhão da Polícia Militar.
“Querem criar ilhas de segurança e, claro, de isolamento da cidade. Uma pessoa passa por uma cancela e se coloca em uma bolha. É uma falsa solução. Quando sai da bolha, enfrenta os problemas urbanos de qualquer forma”, diz Rita.
Pouco depois, policiais militares cobraram da empresa a aprovação da prefeitura para a tal cancela. Um dos funcionários da Groupe Protection entregou um protocolo de pedido de aprovação. A polícia então pediu que eles retirassem imediatamente as cabines e as cancelas na mesma noite, e ainda os encaminhou à 10a Delegacia.
O morador do bairro e desembargador José Nascimento de Araújo – que se juntou a Rita e outras pessoas contra a medida – critica: “Os síndicos e as empresas quiseram fazer um fato consumado. Só saíram com a chegada da polícia. Colocar guaritas e cabines na praça do Choro com símbolos de segurança privada foi algo de extremo mau gosto”.
A repercussão negativa foi tão grande que a empresa foi obrigada pela fiscalização da prefeitura a tirar cancelas e cabines de outras ruas da zona sul. Só no bairro do Flamengo, somavam cinco. Assim como no caso de Laranjeiras, as cancelas foram instaladas sem autorização e sem pagamento, como um “aperitivo” para os moradores locais – estratégia de vendas da empresa. “Nas outras ruas da zona sul, fizemos a mesma coisa. Instalamos nosso equipamento e, como a receptividade foi muito positiva, não houve por que retirá-lo. Mas a prefeitura também exigiu que tirássemos e só voltássemos caso tivesse tudo legalizado”, disse à Pública o proprietário da empresa, João Fuster. Ele defende a atuação: “Na rua Senador Eusébio, no Flamengo, havia uma cracolândia, e hoje não tem mais. No Flamengo, somos quase unanimidade”.
Queixa contra os moradores
Em entrevista à Pública, o dono da empresa Groupe Protection quis enfatizar um ponto. “Não somos uma empresa de milicianos. “Temos CNPJ, assinamos carteira de mais de 240 funcionários e temos clientes como consulados estrangeiros”. No Rio de Janeiro, o termo “milícia” começou a tomar corpo nos anos 2000, para designar grupos de policiais e ex-policiais que, fazendo-se de benfeitores por combater o tráfico de drogas, haviam ocupado áreas da zona oeste, subjugando os moradores ao lucrar com “serviços” como venda de botijão de gás e transporte. Hoje, a zona oeste – região menos urbanizada e mais afastada do centro – tem boa parte do seu território sob o domínio de milícias, sob a liderança de policiais da ativa e aposentados em conluio com políticos.
João Fuster deu entrevista à Pública na Delegacia de Crimes contra a Informática, onde esteve para prestar queixa de todos que vincularam sua empresa com ações da milícia. Ele exibia o celular com fotos de posts em redes sociais associando seu grupo à milícia, e uma foto de funcionário em frente à sede da empresa, em Duque de Caxias. “Vamos processar todos que nos rotularam dessa forma”, afirmou.
Ele acredita que a segurança entrou em colapso no Rio de Janeiro. “Na rua Marechal Mascarenhas de Morais, em Copacabana, onde temos uma equipe de vigilantes, o número de assaltos caiu a zero nos últimos dois anos, mas nas ruas vizinhas há assaltos”, diz. A rua em Copacabana é a única onde a empresa atua, depois da confusão em Laranjeiras, por ter aprovação, de acordo com Fuster, da administração municipal anterior.
A Pública entrou em contato com três síndicos do grupo que chamou a empresa à General Glicério. O único que aceitou dar uma declaração, sem se identificar, mostrou-se revoltado com a reação. “Achamos que estávamos fazendo uma coisa boa para todo mundo e, de repente, passamos a ser atacados. Até de promover o aumento da criminalidade no local para contratar uma empresa privada de segurança fomos acusados. O nível de desgaste está muito grande.”
O sociólogo Marcelo Burgos, da PUC-RJ, faz óbvias distinções entre os grupos da zona norte que fecham ruas à revelia da lei ou decreto sobre o tema e os grupos paramilitares da zona oeste. Mas alerta: “A milícia não nasceu milícia”. Para ele, essa nova configuração de moradores dispostos a dar mais segurança às suas ruas traz à tona a existência de um vácuo de poder a ser ocupado. “Assim, o espaço público pode ser tomado por ameaças frontais à ordem democrática e por privações de direitos, como já acontece nas favelas. Seja como for, o cercamento de bairros leva à guetificação dos pobres e autossegregação dos ricos.”
João Trajano Sé, do Laboratório de Análise de Violência da Uerj, diz que, por enquanto, não há como prever o que será, no futuro, a atuação desses grupos que se reúnem e tomam medidas de segurança, expandindo-se pelas ruas. “Mas há um potencial negativo, sim, nessas ações.” O pior, na visão de Sé, são as consequências já sentidas. “Pessoas isoladas em suas ruas já conferem um enorme impacto social. A sociabilidade está sendo duramente atingida.”
Disputa entre prefeito e vereadora sobre acesso às ruas
A briga de Laranjeiras espelha uma disputa entre prefeitura e a Câmara de Vereadores, que levou a uma corrida de ruas fechadas e a uma confusão jurídica em torno do acesso às ruas cariocas.
O prefeito Marcelo Crivella (PRB) baixou, em abril, o Decreto 43.038, que prevê a instalação de cancelas e cabines sob determinadas normas, sem que esse equipamento possa interferir no tráfego e no direito de um pedestre andar por qualquer via da cidade. Além disso, três quartos dos moradores do local precisam estar de acordo, e a instalação de guaritas e cancelas só é permitida quando o condomínio de casas ou apartamentos está em uma área residencial e sem a presença de órgãos de serviços públicos como escolas ou hospitais.
Isso porque, segundo a assessoria de imprensa, a prefeitura não tem ideia de quantas ruas fechadas ou mesmo com cancelas existem na capital. Somente fez um levantamento dos pedidos de cancelas e guaritas. Em nota à Pública, a Secretaria Municipal de Urbanismo informou que desde o final de 2016 até hoje foram concedidas 64 autorizações para instalação de cancelas ou guaritas em pontos diversos da cidade, a grande maioria na zona oeste. “Até o final de 2016, os pedidos poderiam ser feitos pelos moradores às subprefeituras, secretarias da Casa Civil, de Urbanismo ou, por intermédio de vereadores, ao gabinete do prefeito. Por esse motivo, não temos um quadro estatístico consolidado e confiável das autorizações concedidas por governos passados”, diz a secretaria.
O decreto pareceu pouco para a vereadora Rosa Fernandes, do PMDB, que criou, em junho de 2017, a Lei Ordinária 6.206, que fala na palavra fechamento. “Fica autorizado o fechamento ao tráfego de veículos estranhos aos moradores de vilas, ruas sem saída e ruas e travessas com características de ruas sem saída de pequena circulação de veículos em áreas residenciais, ficando limitado o tráfego local de veículos apenas aos seus moradores e visitantes”. A lei permite que se feche totalmente o acesso de pedestres entre 22 horas e 6 horas. A partir da promulgação da lei, começaram a pipocar ainda mais cancelas pela cidade.
Em resposta, o prefeito Marcelo Crivella vetou a lei. Por sua vez, a Câmara de Vereadores anulou o veto. Procurada pela Pública, a resposta da prefeitura é que “está estudando a lei”. Fontes da administração municipal declararam que Crivella deseja arguir inconstitucionalidade, já que o texto interfere no direito de ir e vir das pessoas. “Vale destacar que a prefeitura autoriza a instalação de cancelas e guaritas de forma criteriosa, garantindo o direito de ir e vir das pessoas, conforme o Decreto 43.038, de 18 de abril de 2017″, justificou o secretário de Urbanismo, Índio da Costa, por e-mail à Pública.
Porém, enquanto a lei ainda não for regulamentada e anular de fato o decreto do poder executivo municipal, a cidade está com a legislação estacionada. Já o fechamento de ruas não.
Zona norte, berço eleitoral da autora da lei, fecha ruas a rodo
No bairro Irajá, onde morava a vereadora Rosa Fernandes e ainda mora parte da família dela – sua base eleitoral está em Irajá e em bairros vizinhos –, a quantidade de ruas fechadas é impressionante. Taxistas da zona norte –, conhecida como Grande Irajá – ouvidos pela Pública disseram que, se é confuso para eles circular por aquela área, “imagina quem não é daqui”.
Ruas fechadas não são forças de expressão. No Grande Irajá, até mesmo em ruas de ligação, encontram-se cancelas concretadas em sua base, impossibilitando a entrada de veículos. E nem sempre são consenso entre os vizinhos. É o caso da rua Araçari. Policial em atividade, o morador Paulo Senra não gostou da medida tão radical e disse que precisa dar uma volta maior de carro quando sai de casa devido ao obstáculo. “Um grupo de moradores fez isso e não fui sequer consultado. É claro que isso é para diminuir os assaltos. Espero que dê certo”, disse.
Naquele bairro, há uma empresa de segurança privada que administra as dezenas de cancelas do lugar e arregimenta os vigilantes. Para contratá-la e fechar algumas ruas, foi montada há cinco anos a Associação Parcial Vila Kosmos de Moradores. “Já disseram que a gente está desobedecendo ao direito de ir e vir. É um absurdo, isso acontece na zona sul e ninguém fala nada. Aqui foi tudo autorizado na administração Eduardo Paes com a ajuda da vereadora Rosa Fernandes, que fez essa ponte com a prefeitura. É tudo legal”, justifica Daniel Souza, um dos dirigentes da associação.
Ex-relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada, a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik considera que, na zona norte do Rio, de fato ocorre o mesmo modelo de áreas consideradas nobres pelo mercado imobiliário. “É um modelo perverso, em que as pessoas se fecham à cidade.” Já o arquiteto e urbanista Lucas Faulhaber, que mapeou as remoções da administração municipal anterior, lembra os problemas trazidos pelas ruas fechadas. “Se antes eram fechadas apenas ruas sem saída, atualmente existem em bairros da zona norte com acesso de carro e pedestres restrito em diversos quarteirões. Além de ser um atentado contra o direito de ir e vir, o fechamento dessas ruas prejudica o sistema de mobilidade urbana”, disse Faulhaber. Para ele, a autorização da prefeitura para fechamento de ruas passa, em muitos casos, pela questão eleitoreira. “São vereadores ou mesmo administradores regionais que se candidatam que usam o medo para ganhar votos.”
O padrão se repete em diversos cantos do bairro. Na rua Edgar Teixeira, há um portão de ferro, do qual só tem a chave os moradores da via. Um deles, Rômulo Santos, descreveu uma cena comum. “São muitos os motoristas que vêm da avenida Automóvel Clube para pegar a nossa rua e dão de cara com este portão”.
O traçado da rua Siracusa é semelhante ao de uma ferradura, com duas cancelas em cada extremo. Nessa rua, é normal ver carros com adesivos do deputado estadual Dionísio Lins (PP). Ali, em depoimentos gravados pela Pública, dois vigilantes afirmaram com naturalidade que só entra se for morador ou prestador de algum serviço, como Uber. Perguntados se alguém que alegasse o direito de ir e vir seria impedido ambos disseram que sim. E se a pessoa entrar mesmo assim? Disseram que, de alguma forma, seguranças privados do deputado seriam avisados e tomariam providências. Já houve algum caso? “Sim, já houve. Outro um dia um bêbado disse que tinha o direito de entrar. Os seguranças do deputado entraram em ação e ele saiu da rua apanhando muito.”
A reportagem da Pública entrou em contado com a assessoria de imprensa de Dionísio Lins e está à espera de uma resposta do político. De acordo com a assessoria de imprensa do parlamentar, ela está pouco informada sobre a disputa legislativa entre o prefeito Marcelo Crivella e a vereadora Rosa Fernandes.
Ao longo das visitas da reportagem, moradores foram avisando que um dos bairros da região, o bairro de Colégio, está repleto de ruas fechadas à revelia do decreto e da lei. Na rua Coema, depara-se, de fato, com uma rua privatizada. Nela, duas placas deixam claro: “Proibido estacionar” e “Rua fechada”. Com a camisa estampada com o rosto de Jair Bolsonaro, o militar Marcelo Gustavo afirmou que lamenta o fato de o Estado não cumprir sua função de fornecer segurança. “Somos um grupo de moradores querendo mais proteção. Aqui não há fins lucrativos. Todos ajudam a manter a rua fechada”, disse ele.
No mesmo bairro de Colégio, moradores de três ruas se comunicam por celular, organizando o fechamento das ruas durante a semana. “Aqui, levando-se em conta as ruas Sodré da Gama, Oliveira Pinto e Mário Lahmeyer, deixamos duas ruas fechadas e uma aberta. Assim, diminuímos as rotas de fuga de bandidos. Os assaltos diminuíram”, garante o morador Robson Carvalho. “Esta rua em que a gente está era conhecida como ‘Rua do Perdeu’, tamanha a quantidade de assalto. Melhorou muito a partir de nosso revezamento.”
Em Vila Kosmos, ruas também são fechadas sob o argumento de dar um fim a uma rota de fuga de bandidos. Na calçada, os obstáculos também não são nada convidativos.
Moradores da Vila Kosmos disseram à Pública que o fechamento de ruas é uma consequência do medo das pessoas de serem assaltadas e feridas de alguma forma. “Nossa rua ficou mais calma”, disse o funcionário público Max dos Santos, afirmando que o fechamento de sua rua impediu a circulação de bandidos que vinham da rua Meriti.
A reportagem da Pública tentou falar diversas vezes com a vereadora Rosa Fernandes, sem resposta.
Rolê nas ruas VIP
A reportagem da Pública foi verificar como ruas fechadas e com cabines e cancelas na zona sul manobram seus procedimentos diante desse vácuo.
O “passeio” começou no bairro do Humaitá, na rua Miguel Pereira. Nela, uma placa na cancela ordena: “Identifique-se”. Um cartaz acima da placa insiste: “Solicitamos que abra a janela [do veículo] e identifique-se”. Quando um carro desconhecido se aproxima, um dos seguranças sempre pede ao motorista que abaixe o vidro.
De forma transparente, os seguranças ali relataram que não usam armas e seus ganhos financeiros são por intermédio de uma relação bem informal de trabalho: sem carteira assinada e sem dar nota como empresa. “Estamos aqui há mais de 15 anos e sempre trabalhamos dessa forma”, disse um deles, sem se identificar.
A rua Leblon, no bairro do Leblon, apresenta outra distinção. Não é uma rua sem saída. A via é fechada com dois portões, um em cada extremo do caminho. Nelas, há sempre um segurança armado.
Em 2005, moradores do bairro chegaram a fazer um protesto contra a privatização de uma rua que dá acesso à praia. Mas o grupo que queria o fechamento ganhou: impetraram dois mandados de segurança contra a prefeitura e, em 1993, obtiveram no Tribunal de Justiça do Rio o direito de se trancar em relação ao bairro, com portões e seguranças armados. Ela é a única das 16 vias de acesso à praia com aparato de segurança próprio, criando uma fortificação em um dos bairros mais policiados do Rio.
No Jardim Pernambuco, também no Leblon, mansões saltam aos olhos. Os moradores ali chamam o lugar de condomínio, mas as ruas são liberadas a pedestres e carros “estrangeiros”, como se referem a não moradores. A área é de gente famosa, como o economista Armínio Fraga e Carlos Arthur Nuzman, ex-presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, proibido de deixar o país por suspeita de compra de votos para o Rio receber a Olimpíada de 2016. Pode-se dizer que ali é um jardim de seguranças por todos os lados, e quatro cancelas. Ao ser indagado sobre se os vigilantes ali tinham arma, o supervisor da empresa de segurança, Luciano Costa, disse que não responderia à pergunta. Mas, andando a pé por ali, dá para ver gente da empresa com arma na cintura.