De tanto passar no espaço aberto entre as ruas Professor Álvaro Rodrigues e General Polidoro, em Botafogo, na zona sul do Rio – desde a época em que a cidade ainda era capital do Brasil –, o povo abriu uma rua. No site do Município do Rio, o caminho extraoficial aparece reconhecido pelo poder público pela primeira vez em 1942, no Projeto Aprovado de Alinhamento (PAA) 3798, que determina o traçado que separa a área pública da área privada. Outros dois projetos reconheceram que o pedaço era do povo, em 1943 e em 1968. Mas, para a construção da estação do metrô de Botafogo, entregue em 1981, a rua foi cedida para o governo do estado, que na época estava mesmo desapropriando os moradores vizinhos para fazer ali o canteiro de obras. O governo, por sua vez, entregou toda a área nas mãos da Odebrecht, construtora que ganhou a licitação para realizar a obra.
Assim, o caminho deixou de ser uma continuação da atual rua Nelson Mandela e passou a ser um canteiro de obras para a construção do metrô, que durou de 1975 até 1978 – o metrô foi inaugurado apenas em 1981. O canteiro era formado por dois terrenos, ao lado, e a antiga rua, que espremida no meio deles, nem tinha uma extensão tão grande: cerca de 100 metros. Era para ser um percalço temporário. Os moradores do bairro atravessam um hortifrúti em um prédio vizinho para passar a quadra. O metrô ficou pronto, e nada da rua voltar a ser rua.
O empréstimo já se estende por mais de 40 anos. A rua e os terrenos de 4.421 metros quadrados acabaram servindo de instalações provisórias até para as construções das estações da Linha 4, finalizada em 2016 com a Estação Jardim Oceânico, obra da Odebrecht que levou todos os torcedores para a Olimpíada do Rio, na Barra da Tijuca, a 16,3 quilômetros de distância de Botafogo. Nesse meio tempo, a terra foi valorizando. Com R$ 12.852 por metro quadrado, Botafogo é o 10º bairro mais caro do Rio de Janeiro. Hoje, o espaço vale R$ 56 milhões.
A última notícia, veiculada em maio deste ano pela Veja Rio, era que o plano da rua havia se perdido na burocracia estatal. Os integrantes do novo governo, de Marcelo Crivella (PRB) simplesmente ignoravam o projeto.
De fato, procurada pela Pública, o assessor da Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação informou ter consciência da existência da resolução 481, de 2003, assinada pelo então secretário municipal de Urbanismo Alfredo Sirkis, no governo Cesar Maia (DEM), que traçava um plano urbanístico para a área. Mas não encontrou o documento da resolução.
O projeto de 2003 regulamentou mais uma vez a extensão da via até a rua General Polidoro.
No meio desse imbróglio burocrático, a antiga rua quase é vendida num sanduíche, com os dois terrenos laterais.
Tire o seu Pezão do meu caminho
‘‘Ali é uma demanda de dezenas de anos”, diz a presidente da Associação de Moradores e Amigos de Botafogo, Regina Chiaradia. “Não tem cabimento, quando o hortifrúti fecha às 22h, sábado e domingo, não é justo a pessoa ter que dar uma volta imensa’’. Assim que a Odebrecht ameaçou tirar o canteiro, Regina foi até a Companhia de Transportes sobre Trilhos do Estado do Rio de Janeiro, RioTrilhos, para saber quando a via seria reaberta. A companhia informou que a rua seria ignorada e vendida com os terrenos laterais, como um terreno único.
Segundo Regina, quando as obras do mais recente trecho de metrô ficaram prontas para a Olimpíada, o canteiro, antes separado por três construções, foi demolido para formar apenas uma estrutura. ‘‘Eles demoliram tudo. Pensaram que a gente não ia perceber que eles iam conseguir vender o terreno todo com a rua’’, disse.
Para impedir a ação, no último dia 10 de julho, a Amab organizou a manifestação ‘‘Tire o seu Pezão do meu caminho’’ em frente ao espaço, pressionando o governador do estado do Rio, Luiz Fernando Pezão (PMDB), a não vender a rua, os terrenos, tudo junto. ‘‘Quando o estado ameaçou que ia vender, pensamos: temos que ir pra rua, temos que marcar. Se a gente não chegar junto e gritar, ele vai vender’’, explicou. ‘‘A gente ameaçou ir pra Justiça e denunciar que eles iam ignorar o PAA. Ia ser muito mais lucrativo vender tudo junto, não duas pontinhas.’’
Regina tem como provar que retomar um espaço público pode melhorar o bairro. Em 2002, a Amab havia participado ativamente no processo de discussão de um projeto para a praça Nelson Mandela, que fica justamente acima do metrô, junto com a Agência Rio e o Instituto Pereira Passos (IPP), da Secretaria Municipal de Urbanismo. A Amab organizou uma chamada para que jovens arquitetos apresentassem propostas. A proposta vencedora previa uma praça arborizada.
Em agosto de 2007, a Amab protocolou no gabinete do governador do estado do Rio de Janeiro a entrega de um abaixo-assinado com mais de 5 mil assinaturas em prol da construção da praça. Mesmo assim, a prefeitura tentou dar outro destino à área – uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e uma Delegacia do Idoso – e só cedeu depois de muitas manifestações dos moradores. A UPA está ali, mas a praça também.
A postura do governo “expõe a visão de parte da população contemporânea em relação aos logradouros públicos: são espaços vistos como o local de luta, de malandragem, do medo e do abandono. É baseado nessa visão negativa de cidade – não como o locus da troca, mas sim como o locus do medo –, a fim de se evitar que o abandono tome conta do espaço público, mata-se antes, então, o próprio espaço público!”, diz o dossiê preparado pela Amab sobre o embate.
Em seis anos, o local se tornou o coração de Botafogo, como reconhece Regina Chiaradia.
Desde as manifestações da associação em julho, o discurso sobre a rua roubada mudou. A Secretaria de Transportes do Estado do Rio de Janeiro, responsável pelo local durante as obras do metrô, informou à Pública que o espaço foi devolvido à prefeitura. Por sua vez, a prefeitura do Rio, através de um acordo com a RioTrilhos, se comprometeu a reabrir o trecho. A Subsecretaria de Urbanismo confirmou que a reabertura deve ocorrer no início de 2018. Segundo a Secretaria de Transportes, a RioTrilhos ainda não definiu o destino que será dado aos terrenos vizinhos. Vale esperar para ver.
Regina diz que, depois de esperar todo esse tempo, só vai ficar satisfeita quando vir a promessa concretizada. “A gente vai abrir a rua”, garante. “Que o estado cuide do terreno dele, mas a gente vai abrir.”