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Em São Paulo, empresas e clubes ocupam terrenos públicos irregularmente

Se a terra é de todos, o benefício tem de ser compartilhado. É essa a lógica por trás da legislação paulistana, ao garantir que terrenos da prefeitura têm de ser usufruídos pela população ou, ainda, cedidos a agentes privados, desde que haja uma boa contrapartida à sociedade. Mas em São Paulo, até o começo dos anos 2000, a terra pública era invadida, usada e abusada sem nenhum controle – não por gangues criminosas, mas por empresas e clubes de excelente reputação.

Cento e quarenta e um terrenos públicos ocupados por empresas foram investigados em 2001 por uma CPI na Câmara dos Vereadores. Ao longo de seis meses, sete parlamentares fizeram um levantamento até então inédito, investigando empresas como Telhanorte, TGI Fridays, Itaú, Bradesco, Shopping Center Norte, além de clubes como São Paulo, Palmeiras, Corinthians, Ipê, Esperia, Paineiras do Morumby. Alguns deles tinham concessões que datavam da época da ditadura. Outros haviam descaradamente invadido terra pública. Na época, os vereadores estimavam que a prefeitura tivesse cerca de 4 mil terrenos na cidade. As 40 maiores áreas investigadas somavam 731 mil metros quadrados.

Em quase todos os casos, havia irregularidades. Grande parte das empresas pagava pouco, ou nada, pelo uso dos terrenos. Apenas dez foram consideradas regulares. A CPI avaliou que a prefeitura havia acumulado um prejuízo de R$ 600 milhões.

“A prefeitura tem um patrimônio imobiliário imenso. Nenhuma empresa cuida do seu patrimônio de maneira tão irresponsável como a prefeitura faz”, diz o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, que integrou a CPI durante seu mandato como vereador.

Na época, a lei determinava que, para obter a cessão de áreas municipais, o beneficiário era obrigado a entregar contrapartidas que beneficiassem a população, geralmente detalhadas no decreto de concessão. Podiam ser aulas gratuitas, fornecimento do espaço para eventos públicos etc. Mas os vereadores descobriram que quase nenhuma empresa pagava a contrapartida, nem em dinheiro nem em serviços. “Eles fingiam que cumpriam a contrapartida, e a prefeitura fingia que fiscalizava”, diz o vereador Paulo Frange (PTB), que foi o relator.

Bonduki tem uma visão crítica dos resultados da CPI. “Ela foi bem-feita, mas eu acho que os efeitos foram mínimos. Teve alguma coisa que conseguiu se fazer, mas nada na escala do que era necessário”, diz ele. “Na verdade, grande parte dessas áreas tem algum tipo de influência política. Você mexer com um clube, mexer com a magistratura…” De fato, a cada nova visita da comissão, choviam telefonemas para os gabinetes dos deputados, pedindo que não investigassem os clubes, postos de gasolina, ou empresas em questão.

O Clube do Círculo Militar em São Paulo, no Ibirapuera

Pouco pagamento, muito prejuízo

A CPI detectou casos escandalosos – alguns deles seguem até hoje –, como o do Clube do Círculo Militar de São Paulo, instalado no Ibirapuera, o bairro mais caro da cidade e um dos mais caros do país, onde o metro quadrado chega a custar R$ 20.714. Os vereadores descobriram que por conta de uma lei municipal de 1986, o clube ocupava um terreno de 31.005,20 metros quadrados, sem pagar um tostão ao governo. Entre as contrapartidas exigidas estavam a admissão de alunos da rede de ensino da prefeitura e outros enviados pela Secretaria de Esportes. Porém, em depoimento à CPI, seu presidente Luiz Carlos Prestes de Faria Bidart, defendeu-se dizendo que a contrapartida “é incompatível com a capacidade de funcionamento do clube, pois seria prejudicial à estrutura e dinâmica do mesmo”. A CPI decidiu que os termos da concessão, que valia até 2011, deveriam ser renegociados. Na época, as instalações usadas para recreio dos militares valiam R$ 50 milhões. Hoje, apenas o terreno vale R$ 642 milhões.

Sem chegar a um acordo, o Círculo Militar continuou usando o terreno mesmo depois de vencida a concessão. “É uma situação delicada”, diz Paulo Frange. Ele lembra que em 2006 o prefeito José Serra tentou extinguir a concessão para ampliar o Parque do Ibirapuera, sem sucesso. “Quando chegou em 2012, o Gilberto Kassab [PSD] fez um decreto, pouco antes de deixar o cargo, de permissão de uso por tempo indeterminado. Isso não existe!” O Decreto 53.128 permitiu o uso a título precário e oneroso em troca de “contrapartidas sociais estabelecidas pelas secretarias municipais de Esportes, Lazer e Recreação, Educação e Assistência e Desenvolvimento Social, bem como pela subprefeitura de Vila Mariana” – as mesmas que o próprio presidente do clube afirmara não conseguir cumprir.

Provocado pelos vereadores, o Ministério Público (MP) até tentou agir; iniciou uma ação civil pública contra o clube e a prefeitura, mas ela foi julgada improcedente pela Justiça paulista.

O Círculo Militar não respondeu ao pedido de informação desta reportagem.

Já o clube Esperia, um dos mais tradicionais da cidade, fundado em 1899, passou por diversas gestões municipais, obtendo consecutivas concessões gratuitas de uma área de 71.710,77 metros quadrados às margens do rio Tietê, na zona norte. O clube oferece, por R$ 400 por mês, para um casal, acesso a pista de atletismo, academia e salão de festas.

A piscina do Clube Esperia, em Santana.

Na época da CPI, a concessão datava de 1968 e valia por 40 anos. Mas a conclusão foi de que o acordo seria prejudicial à prefeitura, que também havia concedido isenção de IPTU por vários anos seguidos. O clube cobrava, ainda, pelo estacionamento, o que era proibido. Por isso, os vereadores sugeriram um pagamento em dinheiro, de acordo com o valor real do terreno. A concessão do Esperia venceu em 2008, sem nova negociação; em dezembro de 2013, a prefeitura negou um pedido de renovação.

Quinze anos depois, a disputa continua. O MP seguiu a indicação dos parlamentares e abriu um processo contra o município de São Paulo e o clube, pedindo a “declaração de nulidade das concessões de uso dos imóveis municipais, cessação do alegado uso clandestino e a regularização da cessão de áreas municipais ao referido clube”. A Justiça julgou a arguição do MP procedente, e o município apelou no fim de novembro. O processo segue em aberto. Procurado pela Pública, o clube não respondeu.

Outro caso que segue em disputa, também às margens da Marginal Tietê, é o Centro de Tradições Nordestinas (CTN). A área de 7.475 metros quadrados foi cedida por tempo indeterminado para a Rádio Tupi, no bairro do Limão, em 1988. Segundo a concessão, o espaço era apenas para as antenas e instalações da rádio, que deveria veicular gratuitamente cinco textos diários fornecidos pela prefeitura. Mas o terreno foi – e ainda é – ocupado também pela Rádio Atual e pelo Centro de Tradições Nordestinas, que abriga lanchonetes de comida nordestina e shows de forró.

Entre as irregularidades detectadas pela CPI estavam a locação da área para empresa particular de estacionamento, a perfuração de uma fossa sanitária por conta de uma dívida de R$ 100 mil com a Sabesp e de um poço artesiano e a declaração de um ex-diretor de que o local chegava a lucrar R$ 150 mil por mês, sem nenhuma contraprestação à prefeitura. Os anúncios governamentais eram veiculados, mas ninguém sabia quantos nem quando. A CPI determinou a “imediata reintegração de posse”, já que não havia nenhum interesse público na cessão. Ao mesmo tempo, a prefeitura revogou a permissão. Seguiu-se uma guerra judicial que perdura até hoje. “A ação de reintegração de posse tramitava perante a 12ª Vara da Fazenda Pública e foi redistribuída à 7ª Vara da Fazenda Pública, pois as áreas discutidas nas ações são idênticas, conforme laudo pericial. Com isto, a ação de reintegração de posse ficou apensa à ação declaratória. O processo está em fase pericial”, explicou a PGM à Pública.

Outro caso notório é o clube Paineiras do Morumby, instalado em uma áreas nobre da cidade, o Morumbi, na zona sul, onde o metro quadrado custa 6.780,71. O clube, cujos títulos custam R$ 58 mil a novos sócios, ocupava um terreno público concedido, a título gratuito, por 99 anos. “Não há aqui nenhum interesse público contemplado, exceto o interesse do público que utiliza o clube”, diz o relatório da CPI, que recomendou a imediata cobrança de aluguel do clube, além de uma indenização pelo uso irregular do espaço público pelo período utilizado indevidamente. A ação popular proposta pelo MP foi extinta sem julgamento do mérito. Mas a área pública ocupada parcialmente pelo clube foi desocupada em 2013, segundo informou à Pública o Departamento de Defesa do Meio Ambiente e Patrimônio da Procuradoria-Geral do Município (PGM). Segundo a PGM, o processo pelo tempo de uso sem indenização ainda corre na Justiça. O clube não respondeu aos questionamentos da reportagem.

“Até hoje se encontra irregularidade em todas as concessões”, diz Paulo Frange. “Nós fiscalizamos muito mal as nossas concessões. E aqueles que recebem já assumem aquilo como se fosse uma propriedade”. Ele acrescenta que é muito difícil fiscalizar e quantificar os serviços prestados como contrapartidas. Bonduki concorda: “Geralmente esses clubes tinham uma partezinha que era o clubinho de futebol que ia atender as crianças do bairro. Uma coisa difícil de fiscalizar e pouco visível, não faz parte de um programa público que utilize os clubes como uma escola de futebol da prefeitura, por exemplo”.

O Clube Regatas Tietê, por sua vez, é um exemplo positivo. Adicionado à CPI por não pagar pelo uso da terra pública – e ainda dever IPTU –, o terreno do clube, de mais de 50 mil metros quadrados, foi retomado em 2012, após 105 anos. Estava afundado em dívidas que chegavam a R$ 25 milhões. Hoje a terra é ocupada por um clube municipal, o Centro Esportivo Tietê, que oferece gratuitamente quadras poliesportivas e aulas de caratê, kickboxing, kung fu e tênis, e pela Faculdade Zumbi dos Palmares.

Foto tirada a partir da antiga Ponte Grande, em 1915, antes da retificação do Rio Tietê. A foto mostra o Clube de Regatas Tietê e o Clube Esperia. (foto: Guilherme Gaensly/IMS)

Invasões

A CPI apurou ainda que certas empresas haviam descaradamente invadido áreas públicas. Muitas cobravam seus clientes pelo usufruto da área.

O supermercado Extra Itaim, na avenida Juscelino Kubitschek – outra das áreas mais caras da cidade, com metro quadrado estimado em R$ 12.532 –estava, segundo apurou a CPI, invadindo terras públicas para usar como estacionamento privado. Ocupava uma área subterrânea e três aéreas em formato irregular, com 706 metros quadrados.

Assinatura recorrente nos decretos de anistia às terras públicas ocupadas, o ex-prefeito Gilberto Kassab permitiu o uso por 15 anos, retroativamente, em um decreto de 2010. Ou seja, até 2015. Desde então, o promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da capital abriu um inquérito civil exigindo da subprefeitura de Pinheiros um relato de vistoria para provar que houve desocupação da área pública. Nada aconteceu. O Extra e seu megaestacionamento continuam lá.

Diante do não cumprimento, o MP acaba de proferir uma recomendação, em 11 de setembro, para que a regional de Pinheiros “promova a completa desocupação da área pública acima indicada, notadamente de seu espaço aéreo, determinando a imediata interdição do estabelecimento comercial que a ocupa indevidamente até posterior demolição ou regularização da ocupação”. No meio do imbróglio jurídico, o prédio foi vendido pela Gazit Brasil, subsidiária do milionário grupo israelense Gazit-Globe, a um proprietário desconhecido, pelo valor de R$ 350 milhões. Procurado pela Pública, o Grupo Pão de Açúcar, proprietário do supermercado Extra, alegou que o terreno não é próprio, mas alugado, e o contrato segue até julho de 2019.

Além do Extra, outras empresas ocupavam irregularmente terrenos públicos para usar como estacionamento – o relatório cita, por exemplo, o TGI Friday’s da Vila Mariana, a Telhanorte Conceito, na avenida Brasil, o banco Bradesco da praça Panamericana e o Drogão, na mesma praça.

“Em todas as avenidas que abrimos em São Paulo, ficaram áreas remanescentes de desapropriação, e tem áreas públicas de 90, 100, 200 metros quadrados que o município não usa e acabam virando estacionamento de mercado, ampliação de estacionamento de postos de gasolina”, diz Paulo Frange.

 

Terra para quê?

Entrada do Centro de Tradições Nordestinas, em São Paulo

“Um dos desafios de acompanhar a gestão de terra pública é que não tem uma gestão transparente nem para as próprias subprefeituras. Como você vai fazer gestão pública se você desconhece suas propriedades?”, questiona a pesquisadora Paula Santoro, do LabCidade – Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

Ela reconhece que nos últimos anos houve avanços em termos de gestão das terras do povo paulistano. Por exemplo, em 2014, com o Plano Diretor, a Comissão Municipal do Patrimônio Imobiliário passou a ser vinculada ao Conselho Municipal de Política Urbana. “Começou a ter uma gestão um pouco mais compartilhada com a sociedade civil. Mas não foi revolucionária”, critica. Em especial, diz ela, embora o Plano Diretor obrigue a cidade a criar um Plano de Gestão de terras públicas, ele ainda não se tornou realidade. “Esse plano nunca aconteceu.”

Em 2016, o prefeito Fernando Haddad (PT) promulgou a Lei 16.373, que proíbe a cessão gratuita de terras públicas. Todas as concessões devem ser “a título oneroso, mediante o pagamento de remuneração mensal”. Só escaparam os blocos carnavalescos. “O pagamento é estimado em 1% do valor venal”, explica Paulo Frange. “Esse valor já havia sido determinado por um decreto quando José Serra era prefeito.”

Frange anima-se com as possibilidades do que chama de “moralização da gestão das terras públicas”. Ele explica que, desde o começo da gestão de João Doria (PSDB), no começo deste ano, a prefeitura está tentando fazer um inventário de todas as suas terras. “A ideia era levantar 10 mil terrenos”, diz Paulo Frange. “O município está levantando todas as áreas públicas que ele tem para ir vendendo.” A verba será depositada num Fundo Imobiliário que facilitará parcerias público-privadas, em especial na área de habitação. A venda de terras públicas faz parte do “programa de desestatização” de Doria.

Nabil Bonduki concorda que, em certos casos, a venda dos terrenos públicos pode ser benéfica à cidade. Ele chegou a elaborar um projeto de lei que financiaria o Fundo Municipal de Parques com a verba proveniente da venda de terrenos públicos. “Isso é muito melhor que a prefeitura ficar tentando conseguir contratar dívidas de clubes que não consegue fiscalizar. Já que não vai conseguir tirar esse clube de lá, vamos alienar de uma vez essa área. O clube fica proprietário e a prefeitura usa o recurso para comprar outras áreas públicas.”

Já Paula Santoro vê a venda de terrenos, como está sendo planejada por Dória, como uma tendência mundial – aos seus olhos, negativa. “Nas nossas grandes metrópoles, muitos terrenos centrais são públicos, então o mercado imobiliário está muito interessado em liberar, ou ‘destravar’ esses terrenos. E a gente acaba submetendo as terras públicas às lógicas neoliberais do mercado imobiliário hoje, em vez de fazer uma reforma urbana mais inclusiva.” Para ela, a consequência a longo prazo é ruim. “A cidade vai ficar sem terrenos para fazer equipamentos públicos e vai depender ainda mais do mercado imobiliário quando precisar, por exemplo, fazer desapropriações.”

A solução, para a pesquisadora, deveria começar por fazer, afinal, um plano de gestão das terras. “Tem que começar avaliando como fazer uma boa gestão do patrimônio existente sem se desvencilhar dele.” Ela dá um exemplo: as dezenas de terras públicas que ocupam a Marginal Tietê, muitas delas irregularmente e sem área verde preservada, dariam para fazer um parque muito maior do que o Ibirapuera. “Muito se fala que a cidade não tem terra para fazer transformação urbana, mas isso não é verdade. Temos muita terra. Se bem usada, isso seria uma revolução imobiliária.”

Roubaram a rua