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Venderam o céu do porto

Trata-se de um roubo ainda invisível, sorrateiro, e envolto em escândalos de corrupção. Os céus do Porto Maravilha, se o projeto urbanístico for para a frente, desaparecerão quando prédios deformarem a vista de uma região fundamental para a história do Rio de Janeiro e do Brasil.

“A conta deve ter sido feita ao contrário”, diz, preocupado, o arquiteto Sergio Leusin sobre como o projeto do Porto Maravilha se tornou um espectro daquilo que se anunciava como revitalização da histórica região portuária do Rio de Janeiro. Doutor em engenharia de produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor titular da Universidade Federal Fluminense (UFF), Leusin é especialista em desenvolvimento de projetos. Contratado pela Cdurp em maio de 2010, ele começou a ficar apreensivo com os possíveis resultados da nova legislação para a região, a Lei Complementar 101 de 2009, que visava, segundo o então prefeito Eduardo Paes (PMDB), obter recursos da iniciativa privada utilizando-se de um instrumento previsto por lei, a Operação Urbana Consorciada.

“O cálculo sobre a área a ser construída nas edificações aparentemente teve como premissa de atingir o valor necessário às obras de infraestrutura, tais como os três túneis, a derrubada da Perimetral e saneamento”, diz o arquiteto. “Aliás, o saneamento acabou bem incompleto.”

Isso porque a Cedurp e o Consórcio Porto Novo (formado por Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia) desenharam a engenharia financeira Porto Maravilha associando o potencial construtivo à despesa com infraestrutura, na sua opinião. Assim, para cobrir as obras necessárias, calculou-se quanto se tinha de vender em Certificados do Potencial Adicional de Construção, os famosos Cepacs, títulos usados para financiar operações urbanas consorciadas. Trocando em miúdos, os Cepacs são uma permissão para construir prédios mais altos que o padrão. Comandada pelo PMDB durante o governo de Dilma Rousseff (PT), o Fundo de Investimento do FGTS, da Caixa, adquiriu todos os Cepacs e deu a verba para os investimentos de infraestrutura, na esperança de revendê-los. A equação financeira só ficou redonda quando os edifícios, nas projeções, começaram a subir, a subir muito. “Ou seja, a preocupação de se criar um ambiente urbano de qualidade ficou em segundo plano em relação a uma visão economicista equivocada”, afirma o arquiteto.

Trata-se de uma área tão importante historicamente que cabe a pergunta: a quem pertence o skyline do porto? Ao transeunte a passeio, a quem mora, a quem trabalha, a quem visita, a quem se aproxima de barco, avião, navio ou carro?

A área portuária recebeu os primeiros anos do Brasil-Colônia e abrigou a única monarquia das Américas – quando a corte portuguesa chegou ao Brasil em 1808, fugindo de Napoleão. A beleza do morro da Conceição – com sua fortaleza erguida em 1718, para que pudessem ser antevistas possíveis invasões francesas, e sua igreja, São Francisco da Prainha, do século 16 – desde sempre esteve à vista de quem desembarcava no porto do Rio. Da ponte Rio-Niterói, ainda se pode ver a costa da baía de Guanabara, onde aportaram 700 mil africanos escravizados no Cais do Valongo, considerado pela Unesco Patrimônio da Humanidade.

Vista do antigo centro do Rio colonial, comparado com a área portuária depois que os prédios forem construídos, segundo estudo do arquiteto Sergio Leusin

O paredão

Sergio Leusin é taxativo. Se construírem todas as edificações previstas em lei na Região Portuária (Lei Complementar 103 de 2009), o skyline da cidade será “um símbolo de um urbanismo de péssima qualidade, além de uma invasão grotesca no céu do Rio de Janeiro”.

Leusin traz exemplos – e desenhos – concretos. Ele fez um estudo de volumetria que mostra como será o porto novo, de acordo com o projeto urbanístico. Está previsto, por exemplo, um paredão de prédios bem perto do mar na avenida Rodrigues Alves, inaugurada em 1910, quatro anos depois do governo e da reforma urbanística do prefeito Pereira Passos. Ao desenhar o paredão, ele vai se transformando em um monstro assustador a interferir na paisagem.

Serão ao todo 2.500 metros de concreto, se for levado em conta o comprimento. A altura dos edifícios na Rodrigues Alves vai variar entre 150 e 120 e 90 metros, sendo a maioria de 90. “Quem chegar de navio ao porto não verá o Corcovado. O morro do Pinto também ficará coberto, assim como os morros de Santa Teresa e dos Prazeres. Do ponto de vista de quem está na ponte Rio-Niterói ou chegando de avião pelo Aeroporto Santos Dumont, o maior pecado é a perda da continuidade das montanhas”, diz Leusin.
A agressão ao skyline não se limita ao paredão da Rodrigues Alves. Paralela à avenida, a Via Binário terá 700 metros de comprimento de concreto armado com prédios de 90 metros de altura. Já o concreto contínuo da avenida Venezuela terá 500 metros, com prédios de 90 metros.

Na avenida Francisco Bicalho, por sua vez, os prédios terão 150 metros. O arquiteto Flávio Ferreira – que fez projeções para o lugar em função do concurso público Porto Olímpico – alerta que só na Francisco Bicalho podem ser instalados 6 mil apartamentos. “O projeto do porto é um horror. Derrubaram a perimetral, fizeram túneis. E, para pagar essa infraestrutura, criaram as tais das Cepcs, que resultaram no aumento de gabaritos na região. Isso não é planejamento urbano. Essa será a consequência de definir um ambiente urbano para pagar as intervenções em infraestrutura”, afirma Ferreira. “Chega a ser ridículo.”

Pesquisadora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, Mariana Werneck disse que os prédios gigantes projetados para o porto tinham “infelizmente uma lógica especulativa”. Para ela, não houve uma contrapartida para a cidade. “O investimento em habitação social só foi tentado quando houve uma condicionante para isso em um segundo aporte do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço, mas este aporte não aconteceu.” Ela lembra que a maioria dos terrenos era da União e, portanto, públicos.

Arquiteto, urbanista e ex-presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), Fernando Alencar, assim como Sergio Leusin, fez uma projeção de prédios que seriam permitidos pela legislação para o Porto Maravilha. Ele se diz impressionado com o que chama de “um desenvolvimento de planejamento inconveniente”. Para ele, os prédios a serem construídos no porto terão um espaçamento maior do que o imaginado por Leusin. Mesmo assim, o skyline ficaria igualmente comprometido. “Nós simulamos em torno de 4,1 milhões de metros quadrados de área potencialmente construída, ou seja, novas construções ou o que se pode acrescentar em edificações existentes. Fizemos isso com prédios mais espaçados. Mas não tem jeito: a vista dos morros do Rio de Janeiro é altamente comprometida seja qual for a disposição dos prédios.”

A operação do porto, afirma Alencar, deu pouco retorno à cidade. “Para pagar a conta da infraestrutura, como a derrubada da Perimetral e a construção de três túneis, imaginaram 4,1 milhões de metros quadrados em novas áreas construídas. Isso foi elaborado sem um estudo de viabilidade que tivesse um mínimo de cientificidade.”

O arquiteto diz que o ocorrido no porto tem associação direta com uma prática recorrente. “O Plano Diretor do Rio não é seguido. A cidade, dessa forma, é feita por lei ordinárias ou complementares que descaracterizam o próprio plano diretor.” No caso da Região Portuária, a operação interligada – possibilidade de compra de potencial construtivo (Cepacs) para um imóvel acima do regularmente previsto na Lei de Zoneamento – era um artifício permitido pelo Plano Diretor. “Mas a forma como ela foi regulamentada é que trouxe prejuízo ao interesse público, já que a promessa de desenvolvimento da região não aconteceu.”

O Porto Marvilha hoje, com apenas alguns espigões. (Foto: Divulgação)

Fiasco anunciado

Verdade. Do total de área de construção ofertada pelo Porto Maravilha, apenas 1,37% foi de fato edificado e ocupado, calculou Alencar. Isso depois de sete anos. Três milhões e meio de metros quadrados deixaram de ser construídos por falta de demanda. E o prejuízo ficou com a Caixa Econômica Federal. O fracassado projeto é ainda envolto em casos de corrupção.

O ex-deputado federal Eduardo Cunha, do PMDB fluminense, é acusado por Paulo Cleto, ex-vice presidente da Caixa, de embolsar cerca de R$ 52 milhões (1,5% do R$ 3,5 bilhões) em propina, com o intuito de liberar o dinheiro do fundo de infraestrutura do FGTS da Caixa para o Porto Maravilha. Cunha, por sua vez, diz que o ministro Moreira Franco, um dos homens fortes de Michel Temer, era quem tinha poder sobre o FI-FGTS, o Fundo de Investimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.

O fiasco financeiro trouxe um prejuízo de R$ 5 bilhões aos cofres públicos, em dinheiro investido pela Caixa. E só teve algo positivo em relação ao skyline do porto, que, por enquanto, não foi agredido.
Mas a lei do porto ainda paira sobre a região. Ou seja, o skyline ali ficará sempre sob risco.

A advogada Sônia Rabello, ex-vereadora do PV e especialista em direito urbanístico, diz que, no Plano Diretor, a paisagem da cidade é um bem que deve ser preservado. Nele, está expresso que se condiciona a ocupação urbana “à proteção dos maciços e morros, das florestas, da orla marítima e dos corpos hídricos dos marcos referenciais da cidade, da paisagem, das áreas agrícolas e da identidade cultural dos bairros”.

“Nesse sentido, ao romper com o skyline naquela região, o planejamento do Porto Maravilha contradiz o Plano Diretor”, diz. Para ela, a lei do Porto Maravilha deveria ser modificada pela Câmara dos Vereadores. “Houve ali uma expectativa de venda dos Cepacs, mas ela ficou longe de ser preenchida. Isso pode facilitar a mudança da lei. Como a Caixa adquiriu todas as Cepacs e vendeu somente uma ínfima parte delas, outros bairros da cidade podem ter novas construções, para tentar diminuir o prejuízo. Mas, para isso, a Câmara dos Vereadores terá de modificar a lei complementar do porto”, avalia.

Morador da região, o arquiteto Demetre Anastassakis também torce para uma mudança na lei. “Para mim, o certo seria construir prédios pequenos e alguns de grande porte, mas bem distantes um dos outros, desde que o céu do porto não fosse prejudicado.” Demetre fez o projeto de um conjunto habitacional no porto, o Moradas da Saúde, onde ele mesmo vive. “Aqui tem muito potencial para uma classe média baixa, ou seja, pessoas com salários e rendas mais baixos. Como boa parte dos edifícios foi planejada para serem escritórios, teria de haver uma mudança de uso na lei, de comércio e serviço para residências.”

O arquiteto e urbanista Fernando Alencar teme que o fracasso do projeto do Porto Maravilha impeça que se faça um projeto para melhorar o ambiente urbano ali. Ele sonha com uma empreitada que volte a região para o mar, com marinas públicas e com um skyline respeitando a paisagem. “Prédios altos não devem ser proibidos na cidade, mas devem ser pensados os melhores locais para eles serem instalados. Nova York já ensinou que isso é totalmente possível.”

Washington Fajardo, arquiteto, urbanista e um dos membros mais importantes do governo Eduardo Paes, discorda frontalmente. Para ele, todo o investimento no porto já trouxe benefícios para a cidade. “O porto é um contraponto à possibilidade de crescimento da cidade na direção da Barra da Tijuca, na zona oeste.” Ele recorda que todo o arcabouço da operação Porto Maravilha foi elaborado no contexto de expansão dos negócios do setor de óleo e gás e petroquímica, que levaria a boa parte da ocupação de escritórios dos prédios que seriam construídos no porto. Como a crise econômica freou o boom do segmento, a maioria dos prédios a arranhar o céu não passou do chão, restando meia dúzia de gatos-pingados.

Sobre a altura dos prédios, Fajardo explica que alguns cuidados foram tomados. “Nos lotes reservados próximo a morros, a altura dos prédios é reduzida. E, além da altura, temos de discutir que uma região como a do porto merece ser dinamizada e ter uma paisagem urbana. Mas a Região Portuária é pós-industrial. Não é como na orla de bairros como Leblon e Ipanema.”

Trump Tower no porto, outro projeto que náo vingou (foto: Aflalo Gasparini Arquitetos)

O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil, Sérgio Magalhães, diz que os gabaritos altos levaram à queda do Porto Maravilha, pois exigem muito investimento. De fato, o milionário e atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, chegou a se interessar pelo projeto, e um plano para a construção de cinco Trump Towers de 150 metros chegou a ser anunciado. Jamais saiu do papel, embora tenha levado a remoções na área portuária, conforme a Pública revelou.

“Prédios de 50 andares são um exagero e exigem capitais elevados que não existem no mercado imobiliário. Saem muito mais caro do que prédios de pequeno e médio porte”, diz ele. “Na época, o prefeito Eduardo Paes me disse que o empresário Eike Batista iria comprar uma parte dos imóveis e um fundo árabe compraria outros’’, diz Sérgio Magalhães.

Eike Batista está na cadeia, preso pela Lava Jato, assim como o ex-deputado Eduardo Cunha; o ex-prefeito Eduardo Paes está morando nos Estados Unidos e é investigado pela Justiça, acusado pela delação da Odebrecht de receber R$ 15 milhões para a campanha à reeleição em troca de facilitar contratos da Olimpíada de 2016.

Roubaram o céu