O que motivou o pedido de impeachment do presidente feito pela Coalizão Negra por Direitos?
A análise de que o governo Bolsonaro tem um caráter genocida já era uma avaliação prévia nossa. A Coalizão Negra por Direitos, inclusive, se articulou a partir da eleição de Bolsonaro. O movimento negro denuncia o genocídio brasileiro desde sempre, o genocídio de Estado. E é óbvio que dependendo do perfil de quem gerencia o Estado, essa dimensão genocida se aprofunda. Então, a gente já tinha pressupostos anteriores e, no contexto da pandemia, a atuação do presidente da República gerou provas explícitas de práticas genocidas. Foi a partir desse contexto de pandemia que construímos o documento do pedido de afastamento.
É o primeiro pedido de impeachment contra um presidente brasileiro protocolado pelo movimento negro organizado. Você pode falar mais sobre o que levou a essa ação mais contundente e articulada do movimento contra um presidente? Resulta de uma articulação anterior entre as entidades que assinam o documento?
O movimento negro sempre – em momentos cruciais da história – se articula nacionalmente. Há uma diversidade enorme no campo do movimento negro, com diferentes grupos, diferentes matrizes ideológicas, formas de organização e concepção de movimentos, mas em momento importantes esses movimentos se unificam. Isso já aconteceu no início do século 20, nos anos 70, nos anos 80, e volta a acontecer agora, diante de ameaças concretas de um presidente que sempre se colocou contra as lutas por direitos da população negra.
Desde o primeiro mês do governo Bolsonaro os movimentos que lutam pelos direitos da população negra passaram a fazer incidência política juntos, por meio da Coalizão Negra por Direitos. E só temos aprofundado essa relação, aumentando nossa organização coletiva. Atualmente reunimos mais de 150 organizações e coletivos no país inteiro.
Mas o documento não é assinado apenas por essas entidades.
Não. O pedido de impeachment é promovido pela Coalizão, mas vem endossado pela amplitude da sociedade brasileira. É um pedido feito a partir da leitura da realidade dos movimentos negros, mas é representativo da sociedade como um todo. O texto foi redigido por advogados do movimento negro, com apoio de mais de 600 entidades do país inteiro e centenas de pessoas, incluindo artistas, que assinam o documento.
O pedido está vinculado a algum partido político?
Não é um pedido ligado a nenhum partido político.
Depois de protocolar o pedido, vocês fizeram um ato na frente do Congresso Nacional. Como foi o ato? Enfrentaram alguma resistência?
A gente fez um ato simbólico com 30 militantes. Escolhemos uma data simbólica para apresentar o pedido. O 12 de agosto é o dia em que a gente celebra a Revolta dos Búzios, um grande levante de pessoas escravizadas em Salvador (BA), no ano de 1798. Foi um dia de luta do povo negro contra a escravidão. Fizemos nosso ato com poucas pessoas, de forma rápida, garantindo o respeito aos procedimentos de segurança em relação à pandemia. Tudo ocorreu de maneira tranquila, sem interferências.
No pedido de afastamento, a Coalizão Negra por Direitos ressalta que “são os negros que mais morrem em decorrência da Covid-19”. Várias pesquisas já comprovaram essa afirmação com dados. Por que isso ocorre?
Nossa denúncia sobre o estado precário e desumano das condições de vida da população negra é permanente. Sempre presenciamos isso, independente dos governos. A história do povo negro no Brasil é de opressão, desigualdade e violência. É uma prática do Estado brasileiro e da sociedade. O que tem de diferente agora é que a pandemia explicitou e aprofundou esses aspectos que já são permanentes na sociedade.
As políticas promovidas pelo atual governo deixam explícita a desvalorização das vidas negras a partir dos cuidados que não foram tomados para preservá-las. A gente tem, em um curto espaço de tempo, a exposição de práticas que são prova cabal daquilo que acontece o tempo todo. Se durante a história, de maneira disfarçada, as políticas sempre nos levaram a condições de vida piores que a média da população, no caso da pandemia isso aconteceu numa gradação muito maior, em um curto espaço de tempo.
Quando o governo não estabelece políticas de contenção de um vírus que é letal – e atinge a todos, ou seja,deveria ser letal e grave para todos -, e esse vírus atinge de maneira desproporcional um segmento da sociedade, a gente tem a comprovação da política genocida do governo. Na verdade, a pandemia revela, com traços mais evidentes, uma realidade que é permanente no Brasil, que é: o governo brasileiro promove políticas de extermínio da população negra.
Além da denúncia de crimes de responsabilidade pelo genocídio da população negra e pelas mais de 100 mil mortes na pandemia, o documento também atribuiu outros crimes de responsabilidade ao presidente Bolsonaro. Inclusive cita a ameaça de golpe ao STF (Supremo Tribunal Federal), denunciada recentemente pela Revista Piauí. Você pode destacar algumas dessas denúncias?
A peça traz argumentos que se somam aos demais argumentos dos outros 55 pedidos de afastamento do presidente já protocolados na Câmara do Deputados. De modo geral, a gente denuncia o caráter antidemocrático e protofascista do governo. É um governo que atua contra a democracia, que comete crimes de responsabilidade em diversos âmbitos de sua atuação.
A gente reafirma a denúncia desse caráter antidemocrático do governo e traz como elemento fundamental o genocídio negro como resultado dessas políticas. Mas o centro da nossa denúncia, pode se dizer, é a defesa da vida, porque o principal argumento é a denúncia da promoção do genocídio pelo governo brasileiro. Para garantir a vida da população brasileira, é fundamental dar freio em um governo que produz a morte.
Como presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), é o responsável por andamento ao processo de impeachment do presidente. O pedido de impeachment da Coalizão Negra por Direitos fala em “inércia” e “letargia” de Maia na instauração do procedimento investigatório contra Bolsonaro, mas ele já disse, em entrevista ao programa Roda Viva, no começo de agosto, que “não vê nenhum crime do presidente”. Qual é a sua opinião sobre a fala e sobre a atitude do presidente da Câmara dos Deputados?
Acho que é tarefa da sociedade civil pressionar Rodrigo Maia. O fato dele não concordar com a abertura de um processo de impeachment não poderia ser suficiente para ele não observar a lei. A nossa observação em relação a Maia é que ele respeite o processo democrático – já que se coloca nesse lugar de defensor da democracia, de defensor do equilíbrio entre os poderes e da autonomia do Congresso Nacional – para que ele seja coerente com essa postura, precisa dar início ao processo de impeachment e dividir com o Plenário da Câmara e com a sociedade brasileira a reflexão sobre isso.
Maia não deve ter poderes suficientes para decidir sozinho, pelo menos não do ponto de vista ético e moral. E sabemos que não é verdade que ele não vê os crimes de responsabilidade do presidente, a questão é política, não jurídica. Do ponto de vista jurídico há elementos suficientes para o afastamento de Bolsonaro. Há crimes de responsabilidade listado nos pedidos que foram protocolados que são publicamente reconhecidos.
Neste contexto, Rodrigo Maia se coloca como defensor e cúmplice dos crimes que vemos o presidente cometer. Quando protege o governo, ele se coloca como cúmplice do genocídio e da morte de mais de 100 mil pessoas na pandemia. Não é possível conviver com um governo que promove a morte. O problema é que há setores da sociedade brasileira que, infelizmente, preferem se articular de maneira a manter seus interesses econômicos, acima da vida das pessoas. É isso que tem mantido Bolsonaro no poder.