A legislação especial que permite que as retransmissoras de TV na Amazônia Legal produzam conteúdo local criou uma situação inusitada. Existem atualmente na região 1.737 retransmissoras aptas a produzir conteúdo, três vezes mais do que o total de emissoras geradoras de programação original existentes na tevê aberta em todo o país – 541 –, incluindo as TVs comerciais e educativas.
Não se sabe quantas retransmissoras da Amazônia estão efetivamente no ar nem quantas produzem conteúdo próprio. Calcula-se que só no Maranhão sejam mais de 300, mas as informações oficiais disponíveis sobre as retransmissoras são ainda mais falhas e incompletas do que sobre as geradoras.
Os dados da Anatel sobre as geradores, que são concessionárias de serviço público, são defasados e incompletos, mas, ainda assim, permitem acesso ao nome da empresa, endereço, CNPJ e relação de sócios. O interessado também pode pesquisar o contrato social das concessionárias arquivado no Senado por ocasião da aprovação e da renovação das concessões.
Cerca de dois terços das retransmissoras da Amazônia Legal estão em nome de empresas concessionárias de rádio e televisão, de governos estaduais e de prefeituras. Ou seja, há informações públicas sobre os proprietários. Mas, em relação às demais, faltam visibilidade e transparência.
Os dados divulgados pela Anatel sobre as retransmissoras estão no Sistema de Informações dos Serviços de Comunicação de Massa (Siscom): número do canal outorgado e o município, nome e endereço da empresa que obteve a outorga, data de emissão do ato de outorga, do direito de uso de radiofrequência e da emissão do licenciamento definitivo. Não há no Siscom informação sobre os proprietários das empresas.
Pouco mais de 40% dos canais de retransmissão da Amazônia Legal estão em mãos de empresários, o que reforça a ideia de que a radiodifusão não é vista na região como atividade lucrativa. A maior participação empresarial se dá no Amazonas (53%), enquanto a menor acontece no Maranhão (7%).
As empresas que exploram o serviço se dividem nas seguintes categorias: as concessionárias de televisão, que reivindicam as retransmissoras para ampliar sua área de cobertura; investidores e especuladores que obtêm os canais para arrendar as outorgas ou revender o negócio mais adiante; e profissionais de rádio e televisão que sonham ter sua própria TV. Estes últimos são pequenos empreendedores que apostam na viabilidade do projeto e ficam à frente do negócio.
O pequeno empreendedor
O pequeno empreendedor é o personagem mais surpreendente da radiodifusão na Amazônia Legal. Muitos deles montam as retransmissoras com outorgas de terceiros e sobrevivem com grande dificuldade financeira. Essas microtelevisões são encontradas, sobretudo, no interior de Mato Grosso, Maranhão, Pará e Rondônia. São frequentes os relatos de emissoras com faturamento mensal de R$ 10 mil a R$ 15 mil.
O paranaense Ademir Júnior tem formação de contador. Ele administra a Sociedade Guarantã de Televisão, canal 8, que retransmite a Record em Guarantã do Norte, no Mato Grosso. Ele e a mulher se revezam na apuração das notícias que vão ao ar no Jornal da Cidade, de 12h às 12h40. Aos sábados, a pequena emissora tem um programa de entrevistas e apresentação de cantores da região.
Em Pontes de Lacerda, uma cidade de 43 mil habitantes de Mato Grosso, três emissoras locais disputam a audiência e os anunciantes. Elas retransmitem SBT, Record e RedeTV. A afiliada da Globo não gera conteúdo local.
Gilmar Pereira de Souza, de 47 anos, é acionista minoritário da TV Centro Oeste, canal 6, afiliada do SBT. Segundo ele, a emissora tem 16 funcionários – “com carteira assinada”, enfatiza – e pertenceu a um deputado, que a revendeu a empresários locais. Gilmar trabalha na empresa desde os 22 anos e conhece bem o perfil do jornalista daquela região.
“Televisão aqui é igual farmácia. Cada uma tem um jornalista formado que responde pela emissora. Os outros se formam na prática. É preciso falar bem, ser ligeiro e ativo. Alguns viram jornalistas por sonho. Mas jornalismo não é sonho que dê dinheiro. Quando aparece uma oportunidade melhor de salário, eles vão embora”, disse ele.
O acumulador de outorgas
Outro tipo de proprietário de retransmissoras é o investidor ou especulador que, graças a contatos políticos, conseguiu acumular outorgas. Há empresas com retransmissoras em vários estados e outras com mais de uma outorga na mesma localidade, que arrendam os canais a políticos, igrejas ou a pequenos empresários locais que queiram tocar o negócio. Nenhum deles admite praticar o arrendamento, que é proibido pela legislação.
Em dezembro de 2010, o Ministério das Comunicações aprovou nove outorgas de retransmissão de TV para duas empresas de Sebastião Miranda, de Marabá, no Pará. Miranda é o principal acionista do Sistema Veneza de Comunicação e da SM Comunicação. Foram dois canais outorgados para São Luís, no Maranhão – 33 e 59 –, dois para Belém (42 e 40) e ainda canais em Palmas, Manaus, Santana, no Amapá, Parauapebas, no Pará, e Araguaína, no Tocantins.
Miranda, de 36 anos, nega ser especulador, sustenta que já investiu mais de R$ 10 milhões e afirma que seu objetivo é construir uma rede de televisão com retransmissoras em cidades com mais de 100 mil habitantes. Ele é provedor de acesso à internet em várias cidades do Pará e já possuía retransmissoras em Marabá e Santarém. Sobrinho do deputado estadual e ex-prefeito de Marabá Tião Miranda, do PTB, ele diz que não tem padrinho nem objetivo politico, e que seu crescimento provoca “inveja”. Defende a mudança na legislação para que as retransmissoras possam gerar conteúdo em todo o país.
No Pará, um grupo acumula 22 retransmissoras distribuídas entre três empresas: RTP – Rede de Televisão Paraense, Servisat Radiodifusão e Sistema Vale do Tocantins. Um dos acionistas é o radialista José Adão Costa. O outro é especialista em elaboração de projetos e instalação de emissoras, Antônio Nazareno Costa.
O engenheiro Rogério Costa, filho de Nazareno, explicou como o grupo conseguiu acumular tantas outorgas: “Ao mesmo tempo em que atendíamos nossos clientes, solicitamos algumas emissoras e tivemos sucesso”. Ele diz que o grupo não tem vinculação política e que explora a atividade apenas como negócio.
O grande empresário
O modelo de negócios implantado pelas organizações Globo, que proíbe as emissoras afiliadas de terceirizarem as operações, explica a maior presença empresarial em alguns estados.
No Tocantins, o grupo Anhanguera, da família Câmara – que também representa a Globo em Goiás – soma 64 retransmissoras, o equivalente a 39,5% do total do estado. Em Mato Grosso, a Televisão Centro América, do grupo Zahram, detém 61 outorgas, 32,4% do total.
A Rede Amazônica (Empresa Rádio e TV do Amazonas), fundada por Phelippe Daou, é afiliada da Globo no Amazonas, Acre, Rondônia, Roraima e Amapá. A família possui uma segunda rede de televisão, Amazonsat, com programação própria voltada para assuntos da Amazônia.
A Rede Amazônica é a maior afiliada da Globo em extensão de cobertura e está entre as dez maiores em faturamento. Possui 194 retransmissoras e seis emissoras geradoras em toda a Amazônia Legal e responde por 34,7% do total de retransmissoras no Amazonas, onde fica a sede do grupo.
“As pessoas querem se ver na televisão”
Phelippe Daou Júnior defende a legislação que permite a produção local pelas retransmissoras na Amazônia Legal. Em uma entrevista por telefone, em 17 de julho de 2015, o filho do fundador da Rede Amazônica falou de dois dos temas relevantes: o poder dos políticos na mídia e a dificuldade dos afiliados da Globo de enfrentar a concorrência dos pequenos produtores locais de conteúdo.
Pequenos empresários locais retransmitem SBT, Record, Bandeirantes e RedeTV na Amazônia Legal. Por que isso não acontece com a Globo?
No caso da Rede Amazônica, é uma decisão nossa que coincide com o modelo de negócios da Rede Globo. Nunca permitiríamos a terceirização de uma operação. No modelo de gestão da Globo, isso também não é permitido.Em que cidades vocês produzem conteúdo local?
No Amazonas, temos programação local em Manaus, Itacoatiara e Parintins. No Acre, em Rio Branco e Cruzeiro do Sul. Em Roraima e Amapá, só nas capitais. Em Rondônia há jornal local em Porto Velho, Guajará-Mirim, Ariquemes, Ji-Paraná, Cacoal e Vilhena.Por que vocês não produzem em mais cidades, uma vez que a legislação permite?
É um princípio nosso estar presente em todos os municípios. Se tiver uma comunidade com meia dúzia de casas, nós vamos buscar uma outorga de canal lá. Isso independe da situação econômica da região. Mas, para montar uma estrutura de jornalismo local, tem de ser economicamente sustentável.Vocês lançaram o Amazonsat por não ter mais espaço para programação própria na Globo?
Um pouco por isso. Meu pai se preocupa em ter espaço para falar da região, que ele adora. A tendência da Globo é aumentar o espaço do afiliado, mas não consegue cobrir toda a gama de assuntos que a região amazônica tem. Há um vácuo muito grande de cobertura da Amazônia.Alguns afiliados da Rede Globo implantaram uma segunda rede e tiveram de recuar. A criação do Amazonsat foi negociada com a Globo?
Existe uma negociação com a Globo para respeitar a área de cobertura de cada afiliada. Eu nunca poderei entrar no Estado do Pará com TV aberta, por exemplo. Mato Grosso e Tocantins são parte da Amazônia Legal, área de interesse do Amazonsat, mas jamais vamos criar desconforto. A RBS [Rede Brasil Sul de Comunicação] vendeu o Canal Rural porque conflitava com os interesses das organizações Globo. A TV Diário, do Ceará, tinha se expandido pelo Brasil inteiro e recuou. Hoje só está no Ceará. Nós respeitamos a divisão geográfica. O sinal do Amazonsat não é aberto, mas estávamos em canais de TV paga fora da Amazônia. No ultimo semestre de 2014 rescindimos esses contratos. Nunca vamos colocar o Amazonsat em sinal aberto. É um respeito tácito ao modelo da Globo.É verdade que a Globo perde em audiência para programas locais?
É verdade. Daí estarmos regionalizando a programação. Em qualquer lugar do Brasil a programação local prejudica a audiência da programação nacional da Globo, da Record, da Band e do SBT. Em Manaus, a gente tem muita dificuldade de audiência no período da tarde, quando o concorrente tem programação local. Se no interior do Acre a emissora local fizer um jornal da comunidade, é muito provável que ela supere a audiência das redes nacionais naquele momento. As pessoas querem se ver na televisão, querem saber dos vizinhos, da vida no bairro e participar das discussões. A TV nacional não consegue satisfazer isso.Qual sua opinião sobre as retransmissoras da Amazônia Legal? São positivas ou viraram instrumentos em mãos de políticos?
São muito úteis. A possibilidade legal de produzir conteúdo local é uma vantagem estratégica enorme para uma região como a Amazônia. Em relação ao uso indevido desses canais, infelizmente isso ocorre e prejudica as operações privadas de credibilidade. Mas, na medida em que as pessoas ficam melhor informadas, esses guetos, essas organizações vão caindo por terra. A Amazônia mais do que nunca precisa de meios de comunicação para se libertar. O problema das retransmissoras da Amazônia não é a legislação. O problema são os grupos que se aproveitam da facilidade. É preciso uma fiscalização mais eficiente. As grandes redes têm que fazer escolhas mais criteriosas de seus afiliados. Tem grandes redes fazendo escolhas complicadíssimas.A terceirização da outorga é ilegal?
Totalmente ilegal, mas infelizmente nossa região está cheia de contratos de gaveta. A situação ainda é pior nas rádios. A quantidade de rádios de políticos com administração terceirizada é absurda.Vocês reivindicam mais espaço para programas locais?
Aproveitamos todo o espaço que a Globo nos permite usar. A RBS é o nosso modelo em termos de gestão e de profissionalismo. São fanáticos por colocar produções próprias no ar. Temos quatro programas de entretenimento exibidos nos finais de semana – Paneiro, sobre ritmos musicais da região, Amazônia Rural, Zapeando, para o público mais jovem, e Amazônia em Revista. A gente gostaria de ter mais espaço durante a semana, mas não adianta pleitear espaço se não tivermos qualidade.