Pequenas retransmissoras de televisão que funcionam sem outorga do governo multiplicam-se pelo interior do Maranhão à medida que se aproximam as eleições municipais de 2016. Elas aproveitam uma brecha criada por decisão do Ministério das Comunicações.
O fenômeno acontece com retransmissoras de diferentes redes de televisão. Engenheiros que atuam no setor dizem que a onda pode se alastrar para os demais estados da Amazônia Legal como um rastilho de pólvora.
O governo federal abriu as portas para a implantação de novas retransmissoras, mesmo sem a outorga, em novembro de 2012. Foi quando o Ministério das Comunicações assinou um acordo de cooperação técnica com a Agência Nacional de Telecomunicações, a Anatel, para adequar a fiscalização a uma política pública de garantia de acesso da população à programação da TV aberta.
Nesse acordo, ficou estabelecido que cada município deve ter ao menos três canais de televisão (ou retransmissoras) outorgadas e licenciadas. O que isso significa?
O processo de outorga compreende três fases até sua aprovação final pelo Ministério das Comunicações: a outorga do canal, emissão de portaria do ministro autorizando o canal para determinada empresa, órgão público ou instituição; a liberação do uso da radiofrequência, que permite que o canal inicie a operação em caráter provisório; e a terceira fase é a emissão da licença de funcionamento em caráter definitivo, após a aprovação do laudo de vistoria da estação pela Anatel. Por causa da morosidade do serviço público e também da demora das empresas em atender as exigências do governo, o processo chega a demorar mais de dez anos.
Por causa do acordo, enquanto esse número (três emissoras licenciadas) não for atingido, os fiscais não podem lacrar os canais sem outorga. De início, o governo estabeleceu que seria dado um prazo de nove meses às retransmissoras para se regularizarem. No final de 2014, como o ministério não deu conta de concluir os processos acumulados, o prazo de regularização subiu para 30 meses.
Ou seja, se um fiscal da Anatel chega a uma pequena cidade e constata que existem ali três retransmissoras de TV funcionando sem licença, é lavrado um auto de infração e elas ganham um prazo de dois anos e meio para se legalizar, contados a partir do momento em que recebem a notificação da Anatel.
A mudança de posição do governo pôs em cheque o rótulo de TV pirata e criou uma nova categoria de empresa, ainda não tipificada: a da autorizada sem outorga.
O aditivo ao acordo de cooperação assinado em novembro de 2014 tem prazo de validade de quatro anos. Ou seja, a convivência com as “semipiratas” pode continuar até novembro de 2018, quando ocorrerá nova eleição para deputados, governadores, senadores e presidente da República.
Rolinha e jacu
Causa surpresa o fato de o governo ter definido uma política pública, por um acordo técnico entre o Ministério das Comunicações e a Anatel, com tal potencial de impacto no mercado. No documento – assinado pelo ex-ministro Paulo Bernardo, pelo presidente da Anatel, João Rezende, e pelo ex-conselheiro da agência Jarbas Valente –, o governo justifica a liberalização com o argumento de que a TV aberta é relevante para a população de baixa renda.
Ex-dirigentes da Anatel contam que a decisão foi tomada diante do quadro constatado no interior de Minas Gerais. Em 2012, o Ministério das Comunicações criou uma força-tarefa para regularizar todas as retransmissoras de TV com pendências de documentação.
O processo começou por Minas Gerais e se estendeu a São Paulo, Bahia, Pernambuco e aos Estados do Sul. Com maior número de municípios, Minas tinha a situação mais caótica. Se a Anatel fechasse todas as retransmissoras de TV sem outorga, centenas de pequenos municípios de Minas ficariam sem acesso à televisão aberta.
Ao liberar o funcionamento das retransmissoras sem outorga, para preservar as repetidoras de sinal de TV em grande parte do país, o governo acabou beneficiando especialmente as retransmissoras da Amazônia Legal – que, como têm status diferenciado e geram programação local, são mais cobiçadas por políticos e empresários. Na expressão de um radiodifusor da Amazônia, “o governo atirou numa rolinha e acertou num jacu”.
Rede Meio Norte
A cidade maranhense de Bacabal é um exemplo do fenômeno descrito acima. Duas retransmissoras sem outorga foram inauguradas na cidade em 2015: o canal 47, repetidor da RedeTV, e o canal 9, que tem programação da Rede Meio Norte. A segunda entrou no ar em agosto e pertence ao empresário e deputado estadual José Carlos Nobre Florêncio, do Partido Humanista da Solidariedade. O filho dele, Florêncio Neto, é pré-candidato a prefeito de Bacabal nas eleições deste ano.
Bacabal já possui cinco canais de retransmissão com outorga emitida pelo Ministério das Comunicações, mas apenas um deles – a TV Mearim, canal 4 – tem a licença definitiva.
Segundo os engenheiros que atuam no setor, enquanto não houver três canais na cidade com o licenciamento definitivo da Anatel, outras retransmissoras podem entrar no ar em Bacabal sem o risco de serem lacradas. Porém, no momento em que três atingirem o estágio final, as demais ficarão sujeitas a serem fechadas pela Anatel até obterem o licenciamento.
A Rede Meio Norte, geradora do Piauí, pertencente ao empresário Paulo Guimarães, quer implantar 184 retransmissoras de TV no Maranhão aproveitando as regras criadas pelo acordo entre o Ministério das Comunicações e a Anatel. A rede também já planeja implantar o mesmo modelo em Roraima.
A Meio Norte não é afiliada a nenhuma rede nacional de televisão. Tem programação própria, com noticiários locais de forte apelo popular, programas de auditório e humorísticos. A expansão da Meio Norte está a cargo da Semfio Telecomunicações, também do Piauí. Manoel Quirino, proprietário da empresa, disse que a implantação das retransmissoras fica a cargo dos interessados nos municípios.
A Semfio faz o projeto de engenharia e entra com a solicitação do canal no Ministério das Comunicações. A retransmissora, segundo Quirino, pode entrar no ar a partir do momento em que o pedido é protocolado no ministério. “Estamos agindo dentro das regras do governo”, disse ele.
Lago Verde
Lago Verde, a 34 Km de Bacabal, tem cerca de 15 mil habitantes. Em julho de 2015, entrou no ar a TV Lago Verde, canal 24, afiliada à Meio Norte. No vídeo de inauguração, a emissora disse que até este ano se expandiria para as cidades de Bacabal, Olho D’Água dos Cunhãs, Vitorino Freire, Igarapé do Meio e Pio XII.
A TV Lago Verde é dirigida por Ribamar Santos, o Ribinha, dono de uma produtora de vídeo em Codó, cujo forte é fazer campanhas políticas. A televisão tem três equipes de reportagem e dois estúdios, o que é considerado uma grande estrutura para a região. Sobre os equipamentos de última geração citados no vídeo inaugural, Ribinha disse que a emissora recebeu aparelhagem usada da TV Meio Norte. “Para eles, é sucata, mas para nós é Primeiro Mundo. São equipamentos analógicos seminovos, que a Meio Norte substituiu por sistemas de alta definição quando migrou para a tecnologia digital”, afirmou.
A TV pertence ao Sistema de Comunicação Lago Verde. A empresa foi registrada em 2011 por Romulo e Alex Almeida, filhos do prefeito da cidade, Raimundo Almeida. Alex é secretário de Fazenda do município. Em 2014, Alex e o pai foram denunciados pelo Ministério Público Federal por suposto desvio de R$ 936 mil das contas do município.
Blogs da região noticiaram que a TV era do prefeito. Pouco depois da inauguração do canal, a empresa mudou de dono.
Lição de jornalismo
Dizem os bons jornalistas que a profissão é um aprendizado que nunca termina, e que é preciso estar de olhos sempre atentos para o novo e para o desconhecido, pois a informação valiosa muitas vezes vem de onde não se espera.
Devo ao apresentador de TV Luiz Carlos Lobo, o Bronca, de Santa Inês, no Maranhão, a principal informação obtida na visita aos municípios da Amazônia Legal para este estudo. “Na Amazônia proliferam emissoras ilegais. Esqueça a lista de canais outorgados da Anatel e vá atrás das televisões sem outorga”, aconselhou Luiz Lobo, apresentador do Programa do Bronca, na TV Remanso, afiliada da Record.
Ele teve uma emissora sem outorga graças às regras do acordo entre o ministério e a Anatel – que chama de “plano de cegueira da Anatel” –, e me apontou cidades da região onde tal fenômeno poderia ser constatado.