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Jornalista, que pesquisou o histórico de despejos das comunidades no Rio, vê agravamento da situação com a proximidade dos megaeventos

Entrevista
23 de abril de 2013
08:50
Este artigo tem mais de 11 ano

Com a chegada da família real ao Brasil, em 1808, 10 mil casas foram pintadas com as letras “PR”, de Príncipe Regente, abreviatura que significava na prática que o morador teria que sair de sua casa para dar lugar à realeza. Logo, a sigla “PR” ficou popularmente conhecida como “Ponha-se na Rua”. Hoje, as casas removidas no Rio de Janeiro são marcadas com as letras “SMH”, de Secretaria Municipal de Habitação. A população também criou um apelido para a sigla: “Sai do Morro Hoje”.

Essa associação entre as duas eras de despejo – que afetam sempre a mesma população – é feita em “Do ‘Ponha-se na Rua’ ao ‘Sai do Morro Hoje’: das raízes históricas das remoções à construção da “cidade olímpica”, trabalho de conclusão de curso da jornalista Paula Paiva Paulo. Em entrevista à Pública, ela fala pela primeira vez sobre o estudo que revê as transformações no espaço público carioca e as remoções compulsórias que preparam o cenário. E afirma: Os despejos não acontecem por  “falta de planejamento” urbano. “É simplesmente privilegiar a especulação imobiliária ao invés do direito a moradia”, explicita.

Por que você escolheu esse tema para o trabalho de conclusão?

Quando comecei a pensar sobre o tema da minha monografia, não foi difícil, o tema da habitação sempre me atraiu. A minha ideia inicial era abordar tudo: um histórico de políticas públicas para habitação, o que diz a Constituição sobre direito à moradia, qual o déficit do país, o que esse déficit causa, o descaso do governo, o sonho da casa própria, e as histórias de pessoas afetadas – pelo menos um relato de um morador de rua, um de ocupação urbana e um de área de risco.

Em março de 2012 comecei a participar do Grupo de Trabalho (GT) Remoções do Comitê Popular Rio para Copa e Olimpíadas, organização civil que reúne representantes de ONGs, de movimentos sociais, estudantes e qualquer pessoa que queira discutir e pesquisar sobre as violações de direitos humanos na preparação para os megaeventos no Rio de Janeiro. Ao entrar em contato com os moradores de comunidades ameaçadas, como Arroio Pavuna e Vila Autódromo, achei o meu gancho. O meu trabalho seria uma grande reportagem sobre as remoções que estavam acontecendo em razão da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas em 2016.

Das comunidades removidas para os megaeventos, qual ou quais você acredita serem as mais emblemáticas desta época?

Considero duas bem emblemáticas: a Restinga, no Recreio dos Bandeirantes, e o Metrô-Mangueira, na Mangueira. Na Restinga aconteceu todo o processo que tem sido padrão de reclamação dos moradores das comunidades removidas: falta de informação relativa ao projeto, falta de participação durante as remoções, oferecimento de alternativas desinteressantes para as famílias e truculência policial no ato da remoção. Essa última queixa é que torna a Restinga emblemática. O dia da remoção, dia 17 de dezembro de 2010, uma sexta-feira, foi considerado muitíssimo traumático pelos moradores. Sem aviso prévio, com forte aparato policial, remoções acontecendo madrugada adentro, sem as famílias terem sido indenizadas. Para o defensor público que atendeu a comunidade na época, Alexandre Mendes, foi a comunidade que mais sofreu nesse processo.

Já o caso do Metrô-Mangueira, que fica a 500 metros do Maracanã é emblemático pela situação que alguns moradores ficaram durante um ano e meio. Após as primeiras remoções, as casas eram demolidas, e quem ficava tinha que viver entre os entulhos, que não eram retirados, e acumulavam lixo, água parada, ratos.Como me disse um ex- morador, Eomar Freitas: “Se você conseguir entrar em alguma casa que ainda está de pé, vai ver o odor de merda que tem, e a gente tinha de almoçar, a gente tinha de jantar, a gente tinha de conviver com esse cheiro”.

O que mais te chocou ou entristeceu durante a pesquisa?

O que mais me entristeceu foi o tratamento recebido pelas famílias removidas. É tudo feito com muita brutalidade, desde o anúncio da remoção. É pressão o tempo inteiro, e os moradores são tratados como “ilegais”, independente de sua situação fundiária, mesmo com os direitos adquiridos que nossas leis nos reservam.

A moradia vai muito além de quatro paredes, ela está ligada ao direito ao trabalho, ao lazer, à saúde. É um processo muito traumático, e no qual não se faz nada para que ele seja menos traumático, muito pelo contrário. O ideal seria que esses processos fossem acompanhados de assistência psicológica aos moradores. Na verdade, ideal mesmo é que se buscassem outras soluções em vez da remoção forçada.

Apesar de não ser novidade na história do Rio de Janeiro, agora vivemos situação específica inaugurada por dois megaeventos esportivos e pelas transformações urbanísticas que eles impõem à cidade. E há um grande agravante: as remoções estão acontecendo de forma sistêmica e integrada nas 12 cidades-sede da Copa no Brasil, com a justificativa da urgência e com uma paixão nacional como bandeira. É praticamente um herege quem vai de encontro a um projeto desses.

Em seu estudo você fala de várias outras transformações no espaço público carioca. Quais foram as principais? Elas também removeram muita gente?

Acredito que a principal tenha sido a reforma realizada pelo engenheiro Francisco Pereira Passos, nomeado prefeito do Rio de Janeiro pelo então presidente Rodrigues Alves, em 1904. Inspirado em Haussmann, o prefeito de Paris responsável pela sua reforma urbana no final do século XIX, a reforma de Pereira Passos teve como principais características o alargamento das principais artérias do Centro, a criação da Avenida Beira Mar para melhorar o acesso da Zona Sul ao Centro; a construção do Teatro Municipal; a ligação da Lapa com o Estácio; guerra aos quiosques e ambulantes; inauguração de estátuas imponentes e arborização no centro. Na maioria dos casos, a prefeitura desapropriou mais prédios do que eram necessários para depois vender o que ficou valorizado. Em paralelo às obras da prefeitura, a União também realizou grandes obras, como a construção da Avenida Central, atual Rio Branco, que demoliu de duas a três mil casas, o novo porto do Rio de Janeiro, e a abertura das avenidas que lhe davam acesso, a Francisco Bicalho e a Rodrigues Alves. É a partir daí que os morros do Centro (Providência, Santo Antônio, Castelo e outros) até então pouco habitados, passam a ser rapidamente ocupados. Ainda assim, a maior parte das pessoas que perderam suas casas não foi para as favelas centrais, e sim para o subúrbio, principalmente Engenho Novo e Inhaúma.

O que você chama de era das remoções?

Esse termo foi retirado do excelente livro do historiador Mário Brum, “Cidade Alta – História, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro”.

Ele se refere ao período de 1963 a 1975, no qual foram removidas mais de 175 mil pessoas somente no Rio de Janeiro. O então governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, trabalhou com as duas perspectivas, primeiro, com o criado Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (Serfha), com a perspectiva da urbanização. Depois, com a extinção do Serfha e a subordinação dos órgãos habitacionais à Secretaria de Serviços Sociais, criada em 1963, a política habitacional passou a trabalhar com muito empenho com a perspectiva remocionista, já que, com a especulação imobiliária, políticos e construtoras tinham interesse na “desfavelização” da Zona Sul.

De acordo com Mário Brum, as primeiras remoções foram em áreas de obras, como as favelas da Avenida Brasil, removidas para a construção do Mercado de São Sebastião, e a favela do Esqueleto, retirada para a construção da UERJ, no Maracanã. Em um segundo momento, as remoções visaram favelas em terrenos de alto valor imobiliário, como o caso da Favela do Pasmado, em Botafogo.

Com o financiamento americano (Usaid), entre 1962 e 1965, foram construídas a Cidade de Deus e as Vilas Kennedy, Aliança e Esperança. Por outro lado, algumas favelas foram urbanizadas. Em 1964, com o golpe militar e o início da ditadura no Brasil, o fechamento dos canais democráticos criou as condições necessárias para as remoções arbitrárias. Além disso, na conjuntura da Guerra Fria, o favelado era um revolucionário em potencial aos olhos do governo.

Nesse mesmo ano foi criado o Banco Nacional de Habitação (BNH), órgão financiador e responsável por programas habitacionais. As construções dos conjuntos habitacionais acompanhavam a remoção de favelas. Em 1964, 2273 famílias perderiam suas casas com a remoção completa de comunidades em Botafogo, Leblon, Ramos, Duque de Caxias; e despejos parciais no Humaitá, na Gávea, no Caju.

E as remoções continuaram no ano seguinte, sendo a maior delas a da comunidade do Esqueleto, no Maracanã. Segundo dados da Cohab, no governo Lacerda foram removidas 6.290 famílias, sendo 4.800 de janeiro de 64 a julho de 65. Até 1965, 30 mil pessoas foram removidas, o que foi pouco perto do que estava por vir.

Em 1968, a Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg) ainda realizou seu 2º Congresso. No entanto, com traumáticas remoções na região da Lagoa Rodrigo de Freitas, a resistência perdeu espaço para o receio: a resistência dos moradores da Praia do Pinto, por exemplo, terminou com um misterioso incêndio na favela. Nese mesmo ano, o governo federal criou a Coordenação da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam), com o objetivo de criar uma política única de favela para o Rio. A Chisam definia a favela como um “espaço urbano deformado” e sua missão declarada era erradicá-las. Na ditadura, a Chisam virou a “autoridade” do programa remocionista. Era ela quem decidia quais favelas a serem removidas e onde ficariam os conjuntos, pois muitos terrenos eram do governo federal. E, na prática, quem executava as coisas era o governo do Estado.

A Chisam, extinta em 1973, removeu mais de 175 mil moradores de 62 favelas (remoção total ou parcial), transferindo-os para novas 35.517 unidades habitacionais em conjuntos nas zonas Norte e Oeste. A construção desses conjuntos habitacionais nem de longe resolveu o problema da habitação popular, mas modificou substancialmente a forma-aparência dos subúrbios, além de levar uma demanda grande de pessoas para onde não havia a infraestrutura necessária.

Após esse período, houve o esvaziamento do programa de remoções que tinha um alto custo político pela resistência dos moradores e que já tinha cumprido sua função de desocupar áreas de grande valor imobiliário e desmantelar a organização política dos favelados. Com a redemocratização do país, houve a revalorização da “moeda voto”.

O que você vê de diferente entre este histórico de remoções no Rio e o que está acontecendo agora? Há diferença de abordagem?

Antes era imperativa a ideia de remoção total das favelas como solução para a cidade. Isso foi superado depois da grande força dos movimentos sociais dos anos 80 e da nossa Constituição de 88. No Plano Diretor do Rio de Janeiro de 1992 se consolida o pensamento de integração das favelas à cidade; o Plano prevê a urbanização e a regularização fundiária, e a favela é definida por características técnicas de sua estrutura, e não mais por características morais dos moradores. Sem dúvida isso é uma evolução e deu partida a projetos como o Favela-Bairro.

No entanto, os movimentos que lutam pelos direitos humanos, sendo o direito à moradia um deles, não conseguir garantir esse direito na prática. E esse é um grande passo para trás. Outro passo para trás: apesar de não haver mais a justificativa da remoção como solução urbanística, ela está mais mascarada. E há um grande agravante, que são as remoções acontecendo de forma sistêmica e integrada nas 12 cidades-sede da Copa no Brasil, com a justificativa da urgência e com uma paixão nacional como bandeira. As obras para mobilidade urbana e construção de equipamentos esportivos não são consideradas questionáveis, e quem questiona é chamado de “do contra, baderneiro”.

A que você acha que se deve este histórico?

A primeira coisa que me vem à cabeça é “falta de planejamento urbano”. Mas na verdade o que não faltou foi planejamento. Acho que esse histórico se deve a predominância do interesse do capital na construção e ocupação da cidade. Preferiu-se e ainda se prefere privilegiar a especulação imobiliária ao direito à moradia.

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