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Segundo fonte, tropas brasileiras foram contatadas pelo Comando Sul americano antes da queda de Aristide; estratégia de pacificação nas favelas haitianas serviram de base para as UPPs

Reportagem
27 de setembro de 2011
10:03
Este artigo tem mais de 12 ano

Em 19 de março de 2004, um telegrama da embaixada de Brasília mostrava que o Brasil havia superado as nebulosas circunstâncias da renúncia de Aristide e estava decidido a  aceitar o comando da missão de paz da ONU. Nele, a embaixadora Donna Hrinak começa por saudar o país por já ter enviado sua primeira missão militar de reconhecimento ao Haiti. A essa altura, a aprovação da participação brasileira no Haiti nem havia passado pelo Congresso.

De acordo com uma fonte próxima ao comando do Exército, antes mesmo da partida do presidente haitiano, os militares brasileiros já haviam sido contatados pelos militares americanos do Comando do Sul.  “O chefe do Comando Sul dos EUA, general Hill, ligou para o  comandante do Exército brasileiro (Francisco) Albuquerque perguntando se o Brasil estaria interessado em enviar um contingente mais numeroso de uma possível missão de paz no Haiti e fornecer o comando. Não sei garantir se foi final de 2003 ou início de 2004. Aristide ainda não tinha saído, não. Aí, depois, houve um contato do presidente Chirac com o Lula, esse, público, todo mundo sabe…”, diz a mesma fonte sob garantia de sigilo de sua identidade.

O telegrama da embaixadora Donna Hrinak também mostra que o Brasil estava disposto a mudar a interpretação da Constituição que  prevalecia até então sobre a participação do país em missões militares transnacionais. Ela conta que ouviu da subsecretária de assuntos políticos do Ministério de Relações Exteriores, Vera Pedrosa, que o Brasil engajava-se apenas em missões de “manutenção de paz”, contidas no capítulo VI da Carta das Nações Unidas, por considerá-la dentro dos limites constitucionais. Desde o início, a operação da ONU no Haiti, fora enquadrada no Capítulo VII da Carta das Nações, como missão de “imposição de paz”.

Mas, segundo o telegrama, Pedrosa disse à embaixadora americana que uma exceção seria “negociável” diante do grande interesse do país em participar da Minustah.

A questão era séria tanto que, embora tivesse votado pelo envio de forças de paz ao Haiti como membro provisório do Conselho de Segurança, o Brasil não havia assinado a resolução que criou a Força Multinacional Provisória (MIF) da ONU por se tratar de uma missão de imposição de paz. Mas, como havia dito Pedrosa, depois de muitas negociações que envolveram os Amigos do Haiti (Brasil, Chile, França, Estados Unidos e Canadá) o Brasil conseguiu contornar os obstáculos legais e aprovou no Congresso, em maio de 2004, sua participação no comando da Minustah, apesar do receio que os custos da missão – que depois seriam ressarcidos pela ONU – impactassem a curto prazo o orçamento do país.

A visão que prevaleceu foi a de que o comando da Minustah poderia ajudar a conquistar o respeito que habilitaria o país a reivindicar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. E proporcionaria uma valiosa experiência às Forças Armadas do país, inquietas com a falta de investimento do governo na área militar.

“Nós já tínhamos participado de muitas operações de paz, mas o posto de comando era uma novidade”, diz a fonte militar que preferiu não se identificar. “Para nós era uma oportunidade de termos uma experiência diferente, melhorar o orçamento e adestrar o nosso pessoal”.

“Quem passou pelo Haiti se conhece”, diz o mesmo militar, referindo-se aos 13.323 soldados brasileiros que serviram voluntariamente na missão até agora – o contigente se reveza a cada seis meses. “Nossos líderes foram treinados intensamente, principalmente os tenentes, capitães. E as operações logísticas foram treinadas na prática; no papel é outra coisa. A gente não estava habituado a fazer uma linha de suprimento de milhares de quilômetros. É muito diferente de apoiar uma tropa no seu território”.

Ele resume: “Íamos melhorar não só a doutrina de emprego em missões de paz, mas em operações de garantia da lei e da ordem, uma das missões das Forças Armadas escritas na Constituição”.

Na linha de fogo

Em dezembro de 2004, os brasileiros enfrentaram pela primeira vez uma operação militar real em país estrangeiro, embora o cenário não fosse tão diferente da realidade que conheciam em seu país. A missão: invadir a favela de Cité Soleil, habitada por 250 mil pessoas, com a missão de recapturar dois comissariados de polícia, ocupados por gangues, e prender um de seus principais líderes, Dread Wilme.

Os jordanianos compunham o segundo contigente da operação que conseguiu ocupar os comissariados depois de grande profusão de tiros disparados por ambos os lados. Wilme escapou.

Os americanos criticaram mais de uma vez a operação, como mostram os telegramas do Wikileaks, não apenas por não ter resultado na prisão do líder procurado, mas porque os comissariados foram retomados pelas gangues, depois que as tropas brasileiras se retiraram, entregando-os aos policiais da PNH (Polícia Nacional Haitiana), e deixando o patrulhamento de Cité Soleil a cargo dos jordanianos, considerado o contingente menos preparado das tropas de paz.

O comando brasileiro, porém, considerou um sucesso a operação, que resultou em pequena apreensão de armas e nenhuma morte, segundo a ONU (é provável que os mortos e feridos fossem recolhidos pelos próprios moradores, assim com as armas sumiam da favela entre as roupas das mulheres, como os militares descobririam depois).

A retomada dos comissariados depois que as tropas brasileiras saíram foi entendida como lição e apontou uma estratégia de “pacificação” que seria aplicada com sucesso em Bel Air, a maior favela de Porto Príncipe com 400 mil habitantes: a partir da ocupação de um ponto estratégico da favela, (em Bel Air, um antigo Forte Nacional) as tropas passavam a percorrer os arredores a pé e aumentando a área de patrulhamento conforme consolidavam sua presença na favela, que aos poucos se tornou permanente.

Os brasileiros também evitavam a violência gratuita, procurando seguir as regras da ONU e promoviam ações cívico-sociais (distribuição de alimentos, atendimento de saúde) para ganhar a confiança da população. Em uma das operações em Bel Air, em fevereiro de 2005, as tropas brasileiras chegaram a se colocar entre a PNH e os moradores para evitar a violência da polícia do governo provisório.

Em outro episódio, um importante líder do Lavalas, Samba Boukman, foi detido em um check point de Bel Air, e libertado assim que os militares foram informados de sua identidade. Boukman passou a simpatizar com os brasileiros e, depois de muitos encontros, chegou a um acordo com o comando, comprometendo-se a avisar e negociar os roteiros, alcance e a pacificação dos protestos feitos em Bel Air, que pipocavam a todo momento, quase sempre terminando com mortos e feridos pela ação da PNH.

Em 20 de maio de 2005, um perplexo embaixador americano, em geral crítico dos métodos pouco “efetivos” do comando brasileiro, escrevia a Washington, sobre uma manifestação de 5 mil apoiadores do ex-presidente Aristide nas ruas de Porto Príncipe, organizada pelas células do Fanmi Lavalas em Cité Soleil e Bel Air para celebrar o “Dia da Bandeira” haitiano e pedir o retorno de Aristide. “As palavras de ordem e os discursos foram os mesmos”, observa, “mas essa passeata trouxe mudanças significativas: os organizadores da marcha mandaram um itinerário completo negociado previamente com o Minustah, tinha mais gente do que o habitual nesse feriado, e não houve nenhum incidente, ao contrário, os militares da Minustah pareciam bastante relaxados”.

Um militar de alta patente, que esteve no Haiti, explica o segredo do “sucesso” em Bel Air. “A gente entrava e saía. Aí achamos que tínhamos que permanecer na favela. Íamos gastar recursos, empregar gente, mas tínhamos que ficar lá dentro. Mudou totalmente a feição da pacificação de Bel Air quando a população percebeu que estávamos lá dentro, que alguém podia garantir a segurança deles. Passamos a fazer patrulha a pé, olho no olho, e eles passaram a dar dicas quentes, primeiro escondido, e depois mais abertamente”, conta.

E o Brasil ganhou as UPPs…

Somada à expansão das ações cívico-sociais com a ajuda das ONGs – marcadamente a Viva Rio – a estratégia de ocupação contínua utilizada em Bel Air foi considerada uma grande vitória militar e desde logo observada como laboratório de futuras operações militares “de garantia da lei e da ordem” entre a população dos morros do Rio de Janeiro.

“Mesmo que as operações realizadas no Haiti sejam específicas, elas têm conceitos estratégicos semelhantes aos visualizados para o Rio de Janeiro, particularmente a integração das ações e dos órgãos envolvidos, em todos os níveis. Isso é o que se buscou aqui na capital haitiana e por isso deu certo. Tudo o que fizemos aqui foi planejado para lá”, afirmou, em 2007, o coronel Cláudio Barroso Magno Filho, então comandante das tropas brasileiras no Haiti, à repórter Tahiana Stochero, do Estadão.

Na época, o serviço de comunicação do Exército complementou: “Do ponto de vista operativo, o Haiti tem sido uma escola, sim. A experiência operativa indica que a presença ostensiva e permanente das forças de segurança deve ser acompanhada de ações em benefício da população, como as desenvolvidas pela tropa brasileira em Porto Príncipe”.

Em dezembro do ano passado, o general Enzo Peri, comandante do Exército, anunciou que o Rio de Janeiro teria uma força pacificadora “nos mesmos moldes da do Haiti” para fazer a “pacificação” no Conjunto de Favelas do Alemão, abrindo espaço para as UPP – Unidade de Polícia Pacificadora.

Depois de um sucesso inicial, amplamente divulgado pela mídia, um grupo de 50 traficantes voltou a invadir o Complexo do Alemão e uma jovem de 15 anos foi morta com um tiro na cabeça depois que militares e policiais do Bope entraram na área. A ação dos criminosos ocorreu depois de uma série de conflitos entre a população e os militares, que continuam a ocupar a favela. Os militares são acusados de abusos pelos moradores. Em entrevista, o governador Sérgio Cabral chegou a admitir “fragilidade”, na política de segurança adotada pelas UPPs.

A mesma fonte militar que não quis se identificar confirma a relação entre as operações no Haiti e as UPPs, mas chama atenção para “diferenças consideráveis”, como o fato de que os militares no Haiti “não estavam incluídos na vida social – podiam
fazer a ação e voltar para o quartel”.

Além disso, o comando militar da Minustah “tinha uma legitimidade e respaldo jurídico maior do que as tropas que atuam em qualquer estado brasileiro. Não tinha limitação política, ninguém preocupado em sofrer desgaste, (o comando militar) era a autoridade para fazer as coisas. Tinha um embaixador e as Nações Unidas, só. Isso é uma grande facilidade em termos operacionais”, explicita o militar.

A falta de “limitação política” característica da atuação da Minustah colaborou também para que até hoje muitos incidentes envolvendo a Minustah no Haiti continuem desconhecidos da opinião pública – no Brasil e no Haiti, como veremos a seguir.

Apesar dos recentes protestos, o balanço da missão feito pelos militares brasileiros é bastante positivo, como mostra a resposta oficial da Assessoria de Comunicação do Exército às indagações da Pública:

“Os resultados são excelentes. Já houve grande ganho nos lados profissional, operacional e doutrinário. Todos encerram a missão muito mais experientes, tanto na área pessoal, quanto na  profissional. O Exército Brasileiro tem obtido conquistas na doutrina militar terrestre, na logística e na administração. Um grande ganho está no moral dos homens, sempre em alta, pois comprovam seu enorme valor profissional e a capacidade de operar fora do Brasil, se destacando pelo seu preparo, conduta e resultados obtidos”.

Leia a Parte III: Mais abusos, menos punições

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