Laurinda Gouveia é uma impressionante jovem que vive num pequeno quarto e sala em uma das favelas de Luanda, capital de Angola. Tem 26 anos. Está cursando o terceiro ano de Filosofia porque “queria ter um pensamento mais coerente sobre as coisas”. Desde 2011, ela é uma das pouquíssimas mulheres que frequentam as manifestações contra o presidente José Eduardo dos Santos, no poder há 36 anos, e na vibrante cena rap em Luanda, onde jovens inspirados por grupos brasileiros como Racionais MCs discutem os problemas do país, um dos mais desiguais da África. Os protestos chegaram a atrair dezenas de pessoas em 2012, mas minguaram diante da estratégia meticulosa de repressão e terror seletivo do governo, que afetou não somente os jovens, mas também suas famílias. Foi o que aconteceu com ela.
Até o ano passado, a jovem trabalhava com a tia no setor informal, vendendo churrasco, sopa e cerveja na rua. Mas, então, tudo mudou. Laurinda ganhou notoriedade nacional depois de ter sido brutalmente agredida pela polícia angolana quando participava de um protesto como “repórter cívica”. O episódio levou a família a expulsá-la de casa.
Espancada durante duas horas pelos agentes do governo, ela decidiu contar tudo para sites na internet e exibiu o corpo marcado. “Começaram a bater-me, ainda algemada, com porrete, com pau de vassoura, a dar-me mesmo na perna, em toda parte. Eu só estava a chorar, a pedir desculpa, a pedir perdão, todo tipo de palavra saiu da minha boca, a pedir mesmo perdão.” Na entrevista à Pública, em agosto último na capital angolana, Laurinda afastava os olhos da câmera quando se lembrava daquelas horas de tortura. “Não se mete nisso, você é mulher, se preocupe em casar, ter filhos… Depois dessa surra tu já não vais fazer filhos!”, diziam os policiais. “Da maneira que eles batiam, dava a entender que tinham mesmo raiva de mim”, conta.
Cinco dias depois de ter concedido essa entrevista e assumir em público ter participado do grupo de estudos do livro “Da Ditadura para a Democracia”, de Gene Sharp, com os outros 15 jovens detidos desde junho, Laurinda foi intimada para depor, proibida de falar sobre o seu interrogatório e oficialmente se tornou em ré no mesmo processo. Transformou-se em acusada de planejar uma rebelião contra o presidente e está “sob liberdade provisória”, segundo a Justiça angolana.
Laurinda entra hoje em julgamento no Tribunal Provincial de Luanda. Essa foi a sua última entrevista como uma mulher livre.
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Como você começou a participar das manifestações?
Eu faço ativismo desde 2011. Faço parte de um grupo da igreja, sou uma pessoa que gosta muito de orar e questionar as coisas. Quando ouvi a notícia da manifestação, disse: “Uau, então podemos mudar alguma coisa reclamando…”. A partir dali, comecei a seguir, né? Comecei a entusiasmar-me também. Então fui. Falei com meu primo. O meu primo, como gosta de rap, ele conhecia muito bem o Luaty, e ele até disse, a brincar: “Olha, nem vale a pena seguir o Luaty, porque ele já vem falando do presidente há bastante tempo”. E fui seguindo, só ia participar das manifestações, depois voltava pra casa. Comecei a participar normalmente, até a data de hoje.
Como foi sua primeira experiência com as forças de segurança?
Em 2012 foi a primeira vez que eu fui agredida por um agente da polícia secreta. Marcou-se uma manifestação e, como é normal, eles vêm sempre com paus, que é pra bater nos manifestantes. Quase todos fugiram e eu e me mantive lá, estava a andar normalmente como se não tivesse a fazer parte do grupo… Só que eles, depois, disseram: “Olha, pega ela também, pega ela também!”. E depois apareceu um senhor e deu-me uma galheta [tapa], e a chapada que ele me deu, assim mesmo, do nada… Porque eu tava um pouco renitente também, não quis sair do largo porque aquilo é público. Não tenho que sair porque simplesmente alguém que está a fazer o trabalho do Estado quer que eu saia. Até que, depois eles cansaram, outros moços vieram conversar comigo: “Mas por que tu estás a te meter nisso? Deixa disso. Estuda, arranja um bom marido, não te preocupes com isso, porque não és tu que vai mudar isso”. Foi a primeira agressão que eu sofri.
Isso te deu mais vontade de participar ou te assustou?
No momento eu pensei: “O dia em que chegarem com o porrete, não sei como é que eu vou ficar!”. Mas aquilo depois passou, consegui levar normalmente e continuei a fazer as atividades, comunicando-me com os manos quando havia manifestação. Penso que as coisas começaram a andar mais quando nós optamos pelas manifestações espontâneas. Os policiais mesmo chegavam e batiam, não viam se era menina, se era rapaz, batiam-nos. E ainda assim eu continuei.
Quando foi que você começou a se envolver mais, foi depois de 2012?
Continuei com as pessoas, conheci o Luaty pessoalmente, o Nito, o M’banza Hanza [os três estão presos desde junho] e outros manos, né?, e começamos a dar um outro rumo ao ativismo. Principalmente nas manifestações espontâneas, eu faço um papel de tipo repórter cívica: quando via uma ação policial contra os manifestantes, fazia fotos. E foi quando em 2014, isso no dia 23 de novembro, decidimos fazer uma manifestação que durava dois dias, na qual estávamos a exigir a demissão imediata do José Eduardo do cargo de presidente. No dia 22 não pude participar, então decidi participar no dia 23. Fui ao Largo da Independência, mas quando chegamos lá logo vimos o aparato policial. E como sempre o [partido] MPLA criou uma contramanifestação, encontramos jovens vestidos com t-shirts do MPLA e tudo mais… Quando era mais ou menos 16 horas, já não tinha tanto policiamento, nós decidimos entrar no largo, apesar dos empecilhos, porque o largo tava vedado. Normalmente, quando há manifestação, eles vedam o largo, que é pra nós não entrarmos e exercermos a dita liberdade de expressão. Éramos sete. Fiquei na retranca: “Vou fazer imagens pra mandar pros manos que estão no Facebook acompanharem”.
Logo que os ativistas tentam entrar, os policiais vieram logo com porrete e começaram a bater, e nós éramos sete pessoas. Eu peguei o telefone e comecei a retratar aquilo. Assim que eles se deram conta, os manos fugiram, e eles vieram todos contra mim: “Me dá o telefone!”, eu disse, “Não, não vou dar o telefone”. Apareceu uma senhora, vestida assim, me deu uma chapada na cara, eu fiquei totalmente descontrolada. Um dos policiais pegou-me na mão que era pra tirar-me o telefone, e eu sempre a fazer força pra não largar o telefone. Ele veio, deu uma galheta, eu disse: “Não, você não pode fazer isso!”. Os carros todos parados, a rua toda a olhar, mas ninguém se mete. O telefone eles levaram, e eu ia atravessando pro outro lado, foi assim quando veio um agente da Sinse [serviço secreto], pegou-me pelo braço e alguns comandantes vieram e começaram a puxar: “A senhora vai pra esquadra!” [delegacia]. Pegaram-me no cabelo, a puxarem no braço, na perna. E fomos, eu sempre a chorar e a pedir socorro, foi assim que eu vi que não estavam me levando à esquadra. Algemaram-me.
Quando dei por conta, tava na escola Primeiro de Maio. Ainda tava lúcida, vi que eram gente da polícia e gente da Sinse. Eles pegaram-me, começaram a bater-me ainda algemada, com porrete, com pau de vassoura, a dar-me mesmo na perna, em toda parte. Não tinha como falar alguma coisa, eu só estava a chorar, a pedir desculpa, a pedir perdão, todo tipo de palavra saiu da minha boca, a pedir mesmo perdão. Foi assim que apareceu um dos comandantes, falei: “Tio, por favor, desculpa!”, ele deu-me um soco nos olhos. Eu a pedir sempre desculpa, desculpa, mas ele a ofender-me. “Não, nós já avisamos, vocês não ouvem… E por isso hoje vais ter que se mijar nas nossas mãos!” Eu me mijei, ainda tava algemada, mijei-me. Depois eles disseram “Desça do carro!”, desalgemaram-me e meteram-me no chão. Eu só estava a dizer: “Pra sofrer assim, vale a pena tirar-me a vida! Não estou a aguentar a dor!”.
Foi assim que chegou um senhor de óculos e perguntou-me “Laurinda, tu me conhece?”, eu disse: “Não, não conheço o senhor”. Pegou um porrete diferente, um assim grosso, começou a bater-me, mesmo, a bater-me, disse: “Vira de costas!”. Começou a dar-me no rabo, a dar, a dar. Disse: “Você hoje vai se lembrar quem eu sou!”. Foi cerca de uma a duas horas mesmo só a bater-me, aquilo foi um sofrimento e tanto. Depois dali eles disseram: “Ok, agora vamos conversar”. Perguntaram qual é o partido que nós seguíamos. Eu disse: “Não temos partido nenhum”. “Quem é vosso líder?”, eu disse: “Não, nós não temos líder. O que nós estamos a reclamar é algo que nos é de direito”. Pegaram uma câmera e começaram a filmar, a fazer perguntas: onde que eu nasci, com quem vivia, onde estudo. Algumas coisas eles já sabiam porque me vinham a investigar. Da maneira que eles batiam, dava a entender que eles tinham mesmo raiva de mim, dessa minha persistência nas manifestações.
O que aconteceu depois disso?
Dali pra cá minha vida mudou tremendamente, porque depois os meus familiares não gostaram, acharam que a melhor solução seria eu sair de casa, já que vinham avisando-me e eu constantemente a fazer aquilo que eles não queriam. Até agora não aceitam. Então acharam que a melhor maneira de resolver esse problema era tirar-me de casa. Até o ano passado eu trabalhava com a minha tia. Ela vende churrasco, sopa e cerveja.
E você teve então que deixar de ajudar a sua tia e buscar outros trabalhos?
Comecei a me virar. Estou a viver um pouco mais próxima da universidade e as coisas estão mais calmas. A dificuldade foi… Estar com a família é outra coisa, viver só é algo difícil. Eu no momento vendo calçados. O lucro é o que eu tiro pra sustentar-me e pagar também a universidade. Mas penso que, quando estamos numa luta, devemos arcar com as consequências. Enquanto vivermos, teremos que nos sujeitar a tal coisa. E psicologicamente vou me arranjando também, porque afetou-me mesmo psicologicamente. Até agora, fisicamente, encontro-me com sinais desse espancamento. E, lógico, a maneira de olhar pra esses senhores não é como era antigamente, porque não tinha provado dessa experiência, de tanta maldade da parte deles.
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Quando aconteceu isso com você, chegou a ter notícia, teve repercussão?
Teve. A princípio eu também estava assim meio hesitante de mostrar, pois são nas partes mais íntimas, mas fui analisando e é uma forma de mostrar às pessoas que, quando nos fazem alguma coisa, devemos mesmo reivindicar de modo que mude a situação. Então, teve notícia [nos sites] Club-K, Maka Angola, entre outros. Penso que, de certa forma, também despertou a mente das outras pessoas.
Você falou que teve marca nas partes íntimas…?
Tive marcas nas partes íntimas, né?, no bumbum, nas pernas… Fiquei toda manchada nas costas, houve um constrangimento, mas depois vi aquilo como algo positivo, de modo que pude motivar as outras pessoas a denunciarem quando há alguma coisa mal.
O que você acha de tão errado nesse governo, pra sair à rua repetidamente pedindo a saída do presidente?
Primeiro temos que aceitar a realidade: as coisas estão mal. Um dos fatos mais candentes é o caso dos 15 [ativistas presos]. Muitas das vezes eu penso que enquanto pessoas nós devemos ser valorizadas, né?, as nossas liberdades devem ser conservadas, e, quando isso não acontece, estão matando uma parte de nós, como humanos. O caso da luz: nós não temos luz constantemente. E nós precisamos da energia pra poder estudar. A educação é precária, nas universidades, os preços são exorbitantes, e muitas das vezes nos esforçamos para trabalhar, vamos para o serviço pra trabalhar, o salário é baixíssimo, nem dá pra pagar a universidade. Então não tenho como me desenvolver intelectualmente. Então, é a luz, é as estradas, há muita, muita coisa mais, e o que temos visto é que o presidente não olha para essas necessidades. E isso é o básico. O que a gente vê é que os filhos dele vão estudar fora. Só estamos a pedir que nos respeitem como pessoas, queremos luz, queremos comida, e acreditamos que quem tem que criar essas condições tem que ser o Estado. Por isso é que nós achamos que o presidente não está capacitado para governar, já vai 40 anos. Se nós sairmos daqui pra irmos pra as províncias, minha irmã, é algo mesmo desumano, é um sofrimento! Nós [em Luanda] ainda temos um bocadinho, eles nem isso têm. E contentam-se. Por quê? Porque o próprio Estado criou isso em nós: que é normal viver da maneira que vivemos.
Você também frequentou esses debates que levaram à prisão dos 15? O que acontecia neles?
Nós criamos a ideia. Eu conversei com [o professor e ativista] Domingos da Cruz. Acredito que os outros manos que também estão presos fizeram a mesma coisa. Vimos que o Domingos da Cruz tem um pensamento coerente, as suas abordagens em relação à democracia e à cidadania, e há a dissertação que ele fez em que falava de Gene Sharp. Foi assim que nós decidimos falar com ele, de modo a ele nos passar essa experiência, e nós soubemos debatê-la.
Era um grupo de estudo, então?
Exatamente. Era um grupo de estudo, de debates, em que nos reunimos semanalmente, aos sábados. E o tempo de duração era de quatro horas. Apresentávamos um manual, levávamos o manual pra casa, líamos, e aquilo que a gente entendeu é que a gente partilhava lá. E mesmo assim – apesar de ser uma coisa inofensiva, porque nós não fazíamos nada de mau e porque a nossa opção foi mesmo a luta não violenta – acredita que, ainda assim, vieram nos prender?
Tem gente que acredita que Angola é uma democracia e tem gente que acredita que é uma ditadura. Qual é a sua opinião?
Nós vivemos uma ditadura, porque se fosse democracia, na verdadeira essência, os jovens não estariam presos. Há quem diga que se fosse uma ditadura nós não estaríamos mais aqui, mas nós sentimos essa dureza. É complicado, não tem como falar de democracia. Não tem como. Quando a gente organiza alguma manifestação, ou ainda, coisa mais grave, quando a gente tenta fazer alguma coisa pelo sítio em que a gente vive, criam artefatos para que a gente não desenvolva aquilo que a gente está a fazer. Então, não se fala de democracia. Não existe. O que existe é a Constituição, eles fizeram muito bem e eles privilegiam-se disso. Mesmo a Constituição eles que fizeram, até porque nós não participamos. Nem os próprios debates da Assembleia passaram na televisão. É que praticamente nós somos animais, não participamos em nada. Nós vivemos uma ditadura em todos os âmbitos: na família, nas universidades, na escola. Nas universidades os professores são autoritários. Você, quando expressa uma ideia, é exonerado. Mas acredito que cruzar os braços não é a solução. Nem que nós tenhamos que morrer por isso, pelo menos fizemos alguma coisa. E vamos fazer, e os nossos filhos, quando vierem, também vão dar continuidade disso, porque acreditamos. Por mais que nós não usufruamos de uma Angola melhor, as pessoas que virão têm que usufruir de uma Angola melhor. E o problema desse país não tá na população, tá no topo. É o presidente e o seu MPLA.
Você acha que sua família ficou com medo ou não aceitou que você pensasse diferente?
Eu acredito que as duas coisas, porque eles cresceram nesse ambiente. No entanto, tenho familiares que morreram no [massacre de] 27 de maio [de 1977, durante a guerra civil]. A minha tia conheceu muito bem, seu marido morreu. Isso tudo é fruto da experiência anterior. E, lógico, numa parte eu poderia dizer que é um excesso de zelo. Acreditas que, se tu só mesmo em falar da palavra “política”, ouves “é melhor tu não falares disso, se querer viver até muito tempo, convém comer, beber, estás a ir na escola, tens um emprego, casa e pronto!”. Os meus familiares viveram nesse ambiente. Apesar de eu ter um pensamento diferente deles, eles viveram aquilo e temem pela minha vida. Mas, como já disse, o próprio regime é que criou isso em nós. Nós vivemos amedrontados.
Como que é hoje a sua rotina?
A minha rotina está na faculdade, cadeia, encontro com os familiares [dos presos]. E tenho acompanhado serenamente a situação dos meus manos, o que complica a mim mesma, bastante. Infelizmente, para complicar mesmo as coisas, o governo separou os presos, pôs cada um em uma cadeia fora da cidade, só mesmo para separá-los, porque a lógica MPLA é separar para melhor governar.
A sua geração é a primeira em Angola que não viveu nem o colonialismo português nem a guerra civil…
Exato.
Você acha que essa geração tem menos medo?
Olha, eu penso que cada geração é uma geração. E nós, logicamente, por não termos vivido aquela realidade colonial, após a independência, aquilo que foram os conflitos, nós vemos as coisas, digamos, com uma pureza, né? Apesar de nos transmitirem, nós não vivemos aquilo. Nós agimos consoante o nosso tempo. Queremos fazer a nossa história, nós queremos mudar o país. Não só para nós, como angolanos, mas para o mundo inteiro. Então, é preciso que deixem que nós façamos a nossa história.
As manifestações têm dado algum resultado?
Precisamos de ser prudentes, porque muitas das vezes nós organizamos manifestações e quem aparece são sempre os mesmos. E a ação da polícia é sempre a mesma, né? Bater e levar pra [a cadeia de] Calomboloca, levar pras províncias. Então, eu penso que precisamos parar um bocadinho. Não quer dizer ficar indiferente com as coisas. Precisamos refletir o que a gente quer. Para mim, acho que nas eleições não vamos conseguir nada. Eu não acredito nas eleições pela máquina que é o MPLA. A exemplo disso, meu caso, eu vivo aqui em Luanda e muitas das vezes, quando é hora de votar, o meu nome sai nas províncias, onde eu nasci. Então, não tem como eu acreditar nas eleições… Eu acredito que, se há uma coisa que este governo tem medo, é das pessoas. Não tem medo dos partidos, porque brincam como se fossem bonecos. Brincam. Mas ele tem medo do povo. Tem medo da consciência do povo. Quando esse povo começar a despertar e descobrir que ele pode fazer alguma coisa por este país, então teremos um país melhor, né?
Você sente machismo em Angola por causa da sua atividade política?
Numa sociedade como a nossa, em que o machismo tá acentuado, muita das vezes o homem acha que, pronto, enquanto mulher, deve estar sujeita ao homem. O que me incomoda é o fato dos rapazes acharem, enquanto menina e enquanto ativista, que há coisas que eu é que tenho que fazer. Por exemplo, eu saio da minha casa, vou pra uma reunião na casa de um dos ativistas, e, por ser a única menina, acham que, enquanto eles estão a resolver lá os problemas, eu é que tenho que cozinhar pra eles. E realmente eu não aceito isso! Porque eu não saí da minha casa pra cozinhar pra vocês! E se eu vim pra reunião, eu primeiro tenho que cumprir aquilo que é o meu objetivo!
Você reclama?
Muitas das vezes eu tenho reclamado isso e tem surtido efeito. Digamos que os efeitos são paulatinos, e o estado da mulher aqui em Angola ainda está mesmo muito baixo, né?, e muitas das vezes eu, comigo, entro até em quase frustração, porque eu estou a lutar por uma Angola melhor, mas muitas das vezes vejo as minhas manas lá embaixo.
Você acha que teve um elemento de machismo pelo fato de os policiais terem selecionado você pra espancar?
Eu penso que sim, porque eles viram-me, né?, tipo “não, como ela é que está sempre a se meter?”. Mesmo depois do espancamento, um dos polícias disse: “Laurinda, você tem alguma doença?”. Eu disse “Não!”. “Mas por que que você fica assim com o cabelo natural?” Eu disse: “Porque eu gosto!”. “Mas não pode ser assim. Você até nem devia estar a fazer isso. Não se mete nisso, você é mulher e, como mulher, se preocupe em casar, em ter uma casa, ter teus filhos… Até olha, depois dessa surra que nós te demos, tu já não vais fazer filhos!” Me disseram isso.
Falaram isso?
Até disseram “Mas olha, Laurinda, deixa de se meter com esses jovens, olha você até não quis colaborar conosco, não quer começar a colaborar conosco…? Vamos te dar um serviço, até pode namorar com um de nós, tem pessoas aqui em condições, só que você vai se meter com aqueles miúdos, aqueles confusionistas!”. Então, houve, sim, machismo, e tem havido sempre.
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