Primeiro papa dos EUA, o cardeal Robert Francis Prevost, 69 anos, é o novo líder da Igreja Católica. O sumo pontífice, que será conhecido como Leão 14, foi nomeado cardeal pelo papa Francisco e é considerado um perfil entre o progressismo do antecessor e os conservadores. Citando casais LGBTQIAPN+, ele já declarou ser contra a “simpatia por crenças e práticas que estão em desacordo com o evangelho”.
Sobre a ordenação de mulheres, disse que a clericalização feminina não resolveria os problemas da Igreja. O fato é que uma maior participação feminina na Igreja Católica é uma reivindicação antiga. Uma das principais vozes da teologia no Brasil, Maria Clara Bingemer diz que a presença das mulheres na Igreja Católica sempre foi intensa, mas invisibilizada. “Elas carregam a Igreja nas costas”, afirma. Professora da PUC-Rio e doutora pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, ela defende mudanças práticas e simbólicas para que a instituição reflita a realidade das mulheres — que são mais da metade entre os 1,3 bilhão de fiéis no mundo.
Segundo o Anuário da Santa Sé, em 2022 havia cerca de 600 mil mulheres trabalhando para a Igreja Católica no mundo, enquanto os homens somavam menos de 50 mil. Apesar disso, cargos de alto poder, como de cardeais ou bispos, não podem ser exercidos por elas.

Na Antiguidade, mulheres chegaram a exercer o diaconato, mas, com a crescente aproximação da Igreja Católica ao poder político — e sua consequente masculinização —, esse papel foi sendo esvaziado e reduzido a funções subalternas. Apesar de ser o trabalho mais pesado e próximo das pessoas.
Bingemer defende que a Igreja deve começar a ouvir mais as mulheres, sobretudo as mais jovens, para que não continue “respondendo questões que já não são mais feitas”.
Como a senhora enxerga o papel da mulher na Igreja Católica hoje?
A alta hierarquia da Igreja é inteiramente masculina: padres, bispos, cardeais e o próprio papa. A mulher sempre esteve em posição secundária — mas isso não quer dizer que não trabalhe. Pelo contrário, a mulher sempre carregou a Igreja nas costas. Quem está nos lugares mais pobres, distantes e perigosos? As freiras. As mulheres.
Elas são maioria na Igreja, mas nunca receberam o devido reconhecimento, valorização ou visibilidade. As catequistas, por exemplo, que ensinam a doutrina e preparam os novos fieis, são mulheres em sua maioria esmagadora — eu diria mais de 80%.
Por que isso importa?
- Participação feminina na Igreja Católica sempre foi intensa, mas invisibilizada;
- Segundo o Anuário da Santa Sé, em 2022 havia cerca de 600 mil mulheres trabalhando para a Igreja Católica no mundo, enquanto os homens somavam menos de 50 mil.
O movimento de emancipação feminina chegou à Igreja com atraso, a partir do Concílio Vaticano II, nos anos 1960. Foi quando se abriu espaço para questões seculares, incluindo a presença feminina. O papa João Paulo II escreveu uma carta apostólica sobre a dignidade da mulher. Nela, está um ponto que considero central para entender a dificuldade de avanço das mulheres na Igreja: a associação entre mulher e pecado. Eva comeu a maçã, deu para Adão, e aí teria vindo o pecado original [na tradição católica, a origem do sofrimento humano]. Só que não é “pecado da mulher”, é o pecado da humanidade.
O pecado original não é culpa da mulher, certo?
O pecado original significa que o ser humano é dividido, com impulsos de vida e de morte. Os impulsos de morte levam para a violência, a crueldade, a morte, e isso é o pecado. Não é culpa da mulher. Todos nascemos assim.
Depois, ligaram o pecado à sexualidade, como se o erro fosse Adão e Eva terem feito sexo. Ora, Deus disse “multiplicai-vos”. Sem sexo, isso seria impossível. Mas criou-se a ideia da mulher como sedutora, tentadora, aquela que desvia o homem do caminho.
Também existe a noção de que a mulher atrapalharia a castidade do clero. Mas o celibato obrigatório só foi instituído no século 11. São ideias que entraram no inconsciente coletivo e se tornaram barreiras à igualdade de gênero na Igreja.
O psicanalista Contardo Calligaris dizia que nossa civilização foi fundada sobre o ódio à mulher. Segundo ele: “A mulher sempre foi vista como aquela que fala com o diabo. A serpente tenta Eva, Eva tenta Adão, Adão cai. A culpa é dela”. Ao longo da história, mulheres foram chamadas de bruxas e queimadas.
Foi só em 1974 que a teóloga norte-americana Mary Daly publicou Beyond God the Father, um manifesto de teologia feminista que reivindicava igualdade na Igreja e no estudo da fé. Ela desmontava leituras machistas da Bíblia.
A senhora defende a ordenação de mulheres ao diaconato ou ao sacerdócio? Por quê?
Hoje, as mulheres não podem receber o sacramento da ordem. Não podem ser diaconisas nem presbíteras. A justificativa? Jesus era homem e não ordenou mulheres. Mas, na verdade, ele também não ordenou ninguém formalmente. O sacramento da ordem ainda não existia em sua época. Ele apenas reuniu discípulos. Mas também era seguido por mulheres, como Maria Madalena, Joana, Suzana, como está no Evangelho de Lucas, capítulo 8. Havia discípulas no grupo de Jesus, o que era inédito. Nenhum rabi judaico aceitava discípulos mulheres.
O evangelho narra inúmeros encontros de Jesus com mulheres que são importantíssimos, em que ele nunca é grosseiro ou as rebaixam. Ao contrário, ele até aponta mulheres como exemplo para os discípulos. Maria Madalena, por exemplo, teve papel importante no grupo, foi a primeira testemunha da ressurreição e quem comunicou a todos.
Tem também a cena em que Jesus está num banquete oferecido a ele por um fariseu, quando entra uma prostituta e começa a lavar seus pés, chorando. As pessoas da festa ficaram pensando: “Esse homem não é profeta, senão ele saberia que não pode ser tocado por uma prostituta, porque ficará impuro”. E aí Jesus diz: “Eu entrei aqui, o anfitrião não me deu nem água para lavar os pés, nem um beijo de boas-vindas. Essa mulher fez tudo isso. Então, muitos pecados ela tem, mas muito lhe será perdoado porque ela amou muito. E a quem pouco se perdoa, pouco ama.” Era uma crítica aos fariseus que são rígidos, se regem pela lei que não humaniza. E a mulher fez todos os gestos do amor, da humanização.
Tem o caso da mulher adúltera que ia ser apedrejada. Chamam Jesus, ele começa a escrever na areia e diz: “Quem não tem pecados, que atire a primeira pedra”. As pessoas foram se retirando. Quando ele levanta os olhos, vê que só sobrou a mulher. E diz: “Ninguém te condenou? Eu também não te condeno. Vá e não peques mais.”
No fundo, o evangelho é revolucionário no sentido de valorizar a mulher.
Quais são os principais obstáculos para que mulheres ocupem posições de liderança na Igreja hoje?
Nos primeiros séculos, a Igreja reconhecia diaconisas, que tinham funções relevantes e autoridade nas comunidades. Presbíteras, não. A presença feminina foi se perdendo, especialmente após o século IV, quando o imperador Constantino adotou o cristianismo como religião oficial do Império Romano. A estrutura eclesial ficou mais próxima do poder imperial e mais masculina.
A formação do apóstolo Paulo, por exemplo, foi feita por um casal: Priscila e Áquila. E Priscila é sempre citada primeiro. Paulo confiou a missão de levar o Evangelho à Europa a uma mulher: Lídia.
Ainda assim, a questão está fechada. João Paulo II afirmou que a ordenação feminina jamais poderá ser feita. Disse que, mesmo sem argumentos bíblicos suficientes, a tradição impede. O papa Francisco foi questionado e disse que o caminho está fechado por causa da instrução de João Paulo II. O que existe, e que foi criado na época de Bento 16, é um grupo de estudo sobre o diaconato feminino. A esperança é que por aí venha uma abertura.
Mas isso é a doutrina oficial. O que eu penso? Eu sou católica e acompanho a minha igreja. Acho que as rupturas nunca levaram nada muito longe. Não acho que seja producente uma cultura que pode levar a uma igreja paralela. Quase todas as outras denominações cristãs ordenam mulheres, inclusive bispas, como Mariann Budde, da Catedral de Washington, que recentemente enfrentou Donald Trump. Apenas a Igreja Católica e a Ortodoxa seguem impedindo.
Acho que não verei isso em vida, não sei nem se minhas netas verão. Mas eu acho que a mulher tem que ir preenchendo os espaços. No Brasil, por exemplo, tem lugares distantes que só recebem um padre a cada três meses. Nesse tempo, quem faz a celebração dominical são as mulheres, com hóstias consagradas que o padre deixou. Elas fazem a liturgia da palavra e, o que é mais importante, são reconhecidas pelo povo.
Já ouvi muitos líderes de pastoral popular dizerem: “A gente prefere a missa da irmã do que a missa do padre”. Então eu acho que, se houver mudança, virá de baixo para cima, da base da igreja para cima. Os espaços vão se abrindo, o importante é ocupá-los. Ocupá-los com competência, de forma positiva. E aí o rosto da igreja vai lentamente mudando.
O Papa Francisco fez coisas importantes, a meu ver, que foi nomear mulheres para cargos importantes dentro do Vaticano. A pessoa que cuida do do dinheiro do Vaticano é uma mulher, a que faz a governança do Estado do Vaticano é uma mulher. Fazendo isso, ele vai colocando o rosto feminino dentro do rosto geral oficial da igreja. Cabe agora ao sucessor continuar esse caminho. Mas acho que não se deve só esperar por isso. As mulheres devem ir se juntando, fazendo rede de apoio. É assim que acontecem as mudanças na igreja.
A sua trajetória como mulher teóloga foi impactada por esse cenário de exclusão feminina?
As mulheres estão entrando mais em faculdades de teologia. Eu tenho alunas brilhantes, que fazem mestrado, doutorado, e depois vão ter dificuldade de encontrar trabalho. Nas faculdades eclesiásticas, às vezes, há dificuldade de admitir mulheres. Alguns padres podem ter se sentido ameaçados quando eu fiz doutorado na mesma universidade que eles, em Roma, e tirei a nota máxima. Isso deve ter gerado um estranhamento, como se não fosse o meu lugar. Eu tinha 40 anos, mas era casada, acho que isso me ajudou. Uma mulher solteira, independente, teria mais dificuldade, sofreria mais preconceito.
A gente também vê que certos programas de teologia que tinham um grupo expressivo de mulheres, quando elas se aposentam, vão entrando homens no lugar, não outras mulheres. É uma luta meio permanente.
Às vezes o bloqueio não é tanto por parte dos colegas, mas por parte da base. Uma vez o Leonardo Boff, que é meu amigo, me convidou para dar um retiro para freiras. Eu ainda era uma jovem teóloga, mas aceitei. Ele foi falar com elas, que não quiseram. Para elas, tinha que ser um padre. Mas em outros momentos deu certo. Minha trajetória foi assim, procurando ocupar os espaços que apareceram.
Existem outros temas que a igreja trata e que impactam a vida real das mulheres, mesmo para quem não é católica, como aborto e divórcio. O que a senhora pensa sobre isso?
O papa Francisco trouxe luz para o acolhimento dentro da igreja. Ele abriu a questão de receber dentro da igreja e abençoar casais em segunda união, casais homoafetivos, gays. Ele disse: “Quem sou eu para julgar?”. Era de uma posição que nunca se deve excluir ninguém.
Quanto ao aborto é questão fechada. A igreja não aceita o aborto, de forma alguma. Mas Francisco também teve uma posição que eu acho maravilhosa. Ele disse: “Eu acho que a gente deve lutar com todas as forças pela vida do nascituro, mas deve lutar também pelas vidas dos que já nasceram e que foram condenados a morrer de fome e pobreza”. Quer dizer, você também tem que olhar para as mulheres que vivem em situação de vulnerabilidade. E outra coisa, não colocar todo o peso sobre elas, porque para fazer um filho precisa de duas pessoas. Tudo na igreja é um processo lento, mas eu acho que hoje há mais abertura e mais diálogo do que havia antes.

Se a senhora pudesse propor uma reforma prática e imediata para ampliar a presença das mulheres na igreja, o que seria?
A gente espera que o novo papa leve adiante o legado de Francisco. Seria trágico para a igreja se fechar outra vez e interromper o processo de diálogo com a sociedade. Francisco dizia que a gente tem que parar de responder a perguntas que não são mais feitas. Tem que ouvir as perguntas de hoje. A gente não está ouvindo, continua a dar respostas a perguntas lá de trás e que hoje não são mais feitas. É preciso radicalizar a atitude da escuta. Escutar o que as pessoas dizem. O que os jovens, as novas gerações dizem. Ouvi-los com todo respeito e dialogar, não interromper o diálogo com anátemas e máximas fortes e tal.
Acho que as novas gerações é que poderão mudar a situação da mulher dentro da igreja. Vamos ouvir as jovens mulheres, que são as maiores vítimas de feminicídio no Brasil. Vamos ouvir o que é a vida delas, as situações que vivem. Muitas vezes a igreja aconselha para elas voltarem para maridos violentos. A igreja tinha que se aliar a mecanismos de defesa da mulher. Acolher mulheres que, muitas vezes, são iniciadas sexualmente dentro da própria família. É trágico, mas é verdade.
Também defendo que a mulher cristã tem que estudar. Tem que citar mulheres em seus trabalhos, estimular as alunas, serem solidárias entre si, porque aí a gente vai ser mais visível dentro do corpo da igreja.