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Dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação mostram que em 5 anos o IBAMA emitiu cerca de R$ 630 milhões em multas por crimes contra animais silvestres. Mas só recebeu 2% disso

Reportagem
14 de janeiro de 2013
08:00
Este artigo tem mais de 11 ano

Por William Finn Bennett

O dia amanhece na cidade nordestina de Feira de Santana, Bahia, e o mercado de rua traz cores brilhantes e a cacofonia do canto dos pássaros. Ao longo da estrada poeirenta, nos barracos de compensado, centenas de pássaros silvestres, muitos considerados raros e de espécies ameaçadas, estão em exibição, aprisionados e prontos para a venda. Os vendedores se gabam das suas últimas capturas enquanto negociam os preços com os clientes.

Alguns meses antes, nessa mesma feira, a polícia local havia apreendido mais de 200 pássaros silvestres e prendido dois homens. Agora, o mercado está de novo a pleno vapor.

A cultura de impunidade no país em relação a esses crimes joga no mercado milhões de animais por ano, enquanto os criminosos lucram centenas de milhões de dólares, segundo os cálculos de funcionários de organizações governamentais e não-governamentais.

Arquivos do governo obtidos pela recém-aprovada Lei de Acesso à Informação mostram que entre 2005 e 2010 o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA – emitiu cerca de R$ 630 milhões em multas para crimes contra a fauna.

O que significaria muito– se os infratores pagassem o que devem. Durante o mesmo período, o IBAMA recebeu o equivalente a menos de 2% do total em multas.

Essa realidade provoca comentários como o do procurador federal Renato de Freitas Souza Machado, alocado no Rio de Janeiro, um ponto forte do comércio ilegal de espécies raras e protegidas: “Os traficantes sabem que nada vai acontecer com eles”.

As multas não-pagas – que um porta-voz do Ibama diz que serão cobradas – não são o único problema. Uma combinação de sentenças leves e apelações que parecem não ter fim resultam em poucas prisões para traficantes, mesmo para os grandes. Poucas horas após serem presos, eles estão de volta às ruas e, em muitos casos, de volta aos negócios.

A leniência serve de incentivo para os traficantes manipularem seus comércios ilegais, criando um clima de impunidade, segundo vários funcionários do governo.

Menos proteção para os animais selvagens do que para uma bolsa roubada

“Realmente, chama atenção alguém trabalhar como traficante há 20 anos e nunca ter ido para a cadeia,” diz Machado, o procurador federal. “Os animais têm menos proteção do que um telefone celular ou uma bolsa roubada.”

Até 1998, o tráfico de animais no Brasil era crime punível por uma sentença de dois a cinco anos. Naquele ano, o Congresso brasileiro aprovou uma lei ambiental que reduziu a pena para seis meses a um ano.

Mas uma brecha na lei federal permite que mesmo essas sentenças mais leves nunca sejam aplicadas, já que infratores que recebem a pena mínima conseguem cumpri-la fora das celas.

Esse vale-tudo ambiental tem um efeito corrosivo, diz Roberto Cabral Borges, ex-coordenador de operações e inspeções do IBAMA, que é responsável por proteger espécies ameaçadas. Equivale a dizer aos traficantes que podem continuar com seus crimes, e à sociedade que infringir as leis não significa nada, o que desmoraliza os policiais.

“Por que se importar? A primeira coisa que precisa ser mudada é a lei”, ele acrescenta.

Muitos dos caçadores são pobres, camponeses sem escolaridade que tentam ganhar a vida nos rincões do país. Eles vendem os animais que capturam por valores irrisórios para sobreviver.

João Alves Mateus dos Santos já foi um desses. O trabalhador rural de 45 anos mora na pequena cidade de Canudos, no meio do árido sertão baiano, onde a vida é difícil e as pessoas, fortes.

Para ele a pobreza é a causa do envolvimento da população local com o tráfico: “Esse é o sertão. Se você não tem o que é preciso, não sobrevive”.

Mateus diz que no início dos anos 90, ele passou por grandes dificuldades para dar sustento a sua esposa e dois filhos. Desempregado, durante algum tempo ganhou dinheiro capturando e vendendo animais silvestres. Hoje, não precisa mais fazer isso.

“Ave Maria, foi um tempo difícil! Eu até pedi dinheiro,” lembra Mateus.

Leis para punir os grandes traficantes de animais

Mas são os grandes traficantes que fazem com que os policiais e fiscais clamem por uma lei que endureça as penas.

Um projeto de lei que tramita no Congresso poderia aumentar novamente as penas – para de dois a cinco anos – no caso de traficantes de larga escala. Mas o autor do projeto, o deputado federal Sarney Filho, diz que devido ao atual cenário em Brasília, não está otimista com o futuro do projeto.

O líder do Partido Verde explica que membros do Congresso, alinhados ao que ele descreveu como o “pensamento conservador” do agronegócio e dos interesses ligados à pecuária, são extremamente poderosos. Usando sua influência, os legisladores “ruralistas” têm pouca chance de deixar o projeto de lei passar na Câmara. “Qualquer coisa que envolva o meio ambiente eles colocam no mesmo saco”, ele diz, o que estaria causando uma mobilização para bloquear qualquer lei pró-ambiente.

Em agosto do ano passado, uma comissão no Senado continuava a debater outro projeto de lei que aumentaria a sentença por venda de animais silvestres para dois a cinco anos, e para dois a seis anos, em caso de exportação.

Semelhante ao tráfico de drogas, a natureza clandestina do tráfico de animais silvestres faz com que seja impossível obter números sólidos sobre a quantidade de animais roubados de seus habitats naturais a cada ano.

Mas a organização não-governamental RENCTAS, Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres, estima que pelo menos 38 milhões de animais são capturados anualmente.

O tráfico de vida silvestre gera entre US$ 5 e US$ 20 bilhões anuais ao redor do mundo, fazendo com que essa seja a terceira atividade ilegal mais lucrativa depois do tráfico de drogas e armas, de acordo com um relatório do Congresso dos Estados Unidos de 2008.

A RENCTAS estimativa que o Brasil responde por 5% a 15% desse total.

Outro dia, outro flagrante

No início do ano passado, munida de mandados de busca, a polícia ambiental de São Paulo invadiu a casa e a loja de Almir Evaristo da Silva, perto de Barueri, região metropolitana da capital paulista. Mas o homem de 53 anos não demonstrou perturbação, enquanto assistia aos policiais encherem duas picapes com gaiolas contendo 47 pássaros silvestres não licenciados.

Os policiais afirmaram que 13 desses pássaros eram de espécies ameaçadas de extinção. A polícia também apreendeu notebooks que mostrariam a lista de clientes, com anotações de pagamentos que ele teria recebido pela venda dos pássaros.

Na delegacia, um policial disse a Silva que não tinha certeza se ele iria responder a acusações criminais, mas que ele teria que pagar uma multa de cerca de 100 mil dólares somente pela posse dos animais. Silva sorriu e em tom de brincadeira disse que voltaria andando para seu estado natal, a Bahia, já que não poderia pagar pelo ônibus.

Mesmo antes de a polícia terminar de completar a papelada, ele foi liberado sem ter que pagar fiança e foi para casa.

Esperança está em nova tendência jurídica

Promotores dizem que uma maneira de contornar as penas leves por tráfico – ou a ausência delas –  é processar os traficantes por outros crimes relacionados que tenham penas mais pesadas.

O procurador federal Machado cita um caso recente de grande repercussão que poderia servir de guia para essa mudança. A organização criminosa incluía pessoas da República Tcheca, Portugal, Alemanha, Suíça e do Brasil.

Diferentes membros da quadrilha trabalhavam em coordenação desde a captura ou da compra de animais dos grupos de caçadores, até o transporte e, finalmente, a venda dos animais no Brasil e em outros países. Funcionários públicos corruptos também estavam envolvidos no esquema, assim como criadores que falsificavam documentos atribuindo a origem dos animais capturados à criação em cativeiro.

Muitos dos estrangeiros que faziam parte da quadrilha conseguiram escapar, mas o homem tcheco – que os promotores dizem ser o líder – não teve tanta sorte. Em agosto de 2011, um juiz federal sentenciou Tomas Novotny a dez anos de prisão por receptação ilegal, contrabando e formação de quadrilha. Outro homem, um policial militar brasileiro, foi sentenciado a cinco anos e três meses de prisão. Muitos outros membros da quadrilha receberam penas mais leves.

Machado diz que a diferença, nesse caso, é que ele conseguiu atingir figuras-chave na organização com acusações como contrabando, formação de quadrilha, receptação e falsificação de documentos.

Foram essas outras acusações que levaram a sentenças bem mais longas do que aquelas destinadas ao crime de tráfico animal. E aí, segundo Machado, mora a esperança de um futuro no qual os traficantes de animais recebam o tipo de punição que poderia servir para a prevenção.

Crueldade com animais comercializados

Perguntado sobre o que chamou atenção nos crimes cometidos pela quadrilha, Machado diz que foi a crueldade com a qual os animais eram tratados.

“Existem ligações telefônicas em que A orienta B, que está viajando com um carregamento de pássaros em um ônibus, a, caso aviste um bloqueio da polícia na estrada, ir ao banheiro do ônibus, arrancar as asas das aves e atirá-las na descarga,” conta Machado.

O porta-voz de Renctas, Raulff Lima, reconhece que a falta de punição aos traficantes serve de incentivo para que se “continue a cometer crimes contra a fauna.”

Ele também defende que, além da responsabilização criminal, essas ações sejam mais divulgadas para reduzir seriamente tais crimes. A maior esperança que realmente temos de minimizar este tipo de atividade reside em programas educativos que ensinam as pessoas a zelar pela vida silvestre, diz Lima.

Reportagem publicada pela organização 100 ReportersClique aqui para o texto  original, em inglês.  

William Finn Bennett é membro do 100Reporters, um site de jornalismo investigativo sem fins lucrativos. Mora em Belo Horizonte, Minas Gerais. Ele pode ser contatado pelo e-mail: upstream.williambennett@gmail.com. Este artigo foi possível graças a uma doação da George Polk Reportagem Investigativa, financiada pela Ford Foundation.

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