Aos olhos do serviço diplomático americano, em especial durante a era George W. Bush (2001-2009), a posição mais independente do Ministério das Relações Exteriores (MRE) capitaneado por Celso Amorim parecia uma constante provocação.
Nos telegramas vazados pelo parceiro da Pública, o WikiLeaks, o MRE é visto “com inclinações antiamericanas” que impedem a melhoria das relações com o governo brasileiro e que tem, além de um “acadêmico esquerdista” (Marco Aurélio Garcia) que aconselha o presidente Lula, um ministro “nacionalista” (Celso Amorim) e um secretário-geral “antiamericano virulento” (Samuel Pinheiro Guimarães).
“Manter a relação político-militar com o Brasil requer atenção permanente e, talvez, mais esforço do que qualquer outra relação bilateral no hemisfério”, desabafava em novembro de 2004, o embaixador do partido republicano John Danilovich, um dos dois diplomatas que receberam a embaixada em Brasília como “recompensa” por levantar centenas de milhares de dólares para a campanha presidencial de Bush.
Foi ele que, numa reunião em março de 2005, tentou catequizar Celso Amorim sobre a ameaça “cada vez maior” que a Venezuela representava a toda a América do Sul. A resposta foi “clara” e “seca” na descrição do americano. “Nós não vemos Chávez como uma ameaça”, respondeu Amorim. “Não queremos fazer nada que prejudique nossa relação com ele”, afirmou. O embaixador finaliza o documento em tom desapontado: o Itamaraty não “comprou” a ideia americana.
Sobel, o sucessor
Sai Danilovich entra Clifford Sobel, também republicano e ligado aos Bush. Sobel soube escolher melhor de quem se aproximar: do então ministro da Defesa, Nelson Jobim, que virou interlocutor contumaz do embaixador, a ponto de confidenciar sua irritação com o MRE – compartilhada pelos EUA – em especial com o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.
Jobim tornou-se peça vital em uma estratégia diplomática americana que explorava a divisão dentro do governo em benefício próprio. Em fevereiro de 2009, com Barack Obama presidente dos Estados Unidos, Sobel enviou uma série de três telegramas com o significativo título de “Compreendendo o Ministério de Relações Exteriores do Brasil”.
Neles, pensava uma estratégia para contornar o triunvirato “esquerdista” que já incomodava os planos do seu antecessor. “Juntos com o presidente Lula, eles (Amorim, Guimarães e Garcia) têm puxado o MRE para direções inabituais e, às vezes, diferentes entre si”, pontua Sobel.
“Enquanto tentamos aprofundar nossas relações, a dinâmica ideológica faz com que o Itamaraty seja, às vezes, um parceiro frustrante”, assinala o embaixador, esperançoso com a aposentadoria próxima de Pinheiro Guimarães e com a possibilidade de influenciar os diplomatas mais jovens que ocupariam os futuros postos de comando.
O primeiro telegrama ainda trata da proximidade entre Amorim, “um esquerdista mais afeito às delicadezas diplomáticas”, e Guimarães “adepto de posições radicais como a de que o Brasil precisa de armas nucleares para se impor no cenário internacional”.
A indicação de Amorim para o cargo teria sido obra de Pinheiro Guimarães, ao contrário do que sugeriam suas posições hierárquicas. “Um diplomata aposentado contou a nossos conselheiros políticos que a influência e independência de Guimarães deve-se ao fato de ter sido o primeiro escolhido pelo PT para o MRE. Como ele achava que seu nome não seria aprovado pelo Congresso, indicou Amorim para o cargo e escolheu para si o posto de secretário-geral. Além de ligações familiares, a filha de Guimarães é casada com o filho de Amorim. Essa história explica sua autoridade desmedida e substancial autonomia”, fofocou o embaixador.
Escanteando o Itamaraty
O certo é que Sobel via o MRE como “um desafio” para os EUA. O jeito, sugeriu, seria fazer aliança com os setores privados, que têm “habilidade para conseguir aprovar iniciativas junto ao governo”, além de tentar uma aproximação direta com o presidente Lula e outros ministros que poderiam defender a causa americana.
Essa é uma “estratégia testada”, afirma Sobel, citando entre outros exemplos o caso da transferência dos agentes da Drug Enforcement Administration (DEA), a agência americana de combate às drogas, que foram expulsos da Bolívia no final de 2008.
As conversas com setores do governo brasileiro começaram em seguida do presidente boliviano Evo Morales expulsar cerca de 30 oficiais da agência, que centralizava a guerra contra as drogas, acusando-os de espionagem.
A DEA, de fato, faz parte do aparato de inteligência americano. Para realocá-los, Sobel evitou o caminho protocolar, que seria dialogar com Virginia Toniatti, diretora de crimes transnacionais do Itamaraty (COCIT), figura “geralmente resistente à cooperação com os EUA”.
Um relatório escrito pela conselheira da embaixada dos EUA, Lisa Kubiske, no final de dezembro de 2008, conta que Sobel discutiu o aumento do pessoal da DEA com Tarso Genro, então Ministro da Justiça e com o Ministro-chefe de Segurança Institucional, general Jorge Félix, além de debater de maneira “extensiva” com a Polícia Federal, que apoiou “completamente” a transferência.
“A embaixada evitou propositalmente pedir permissão formal para aumentar (o número) de escritórios (da DEA), já que (um pedido) não é estritamente necessário para aumentar a equipe em escritórios já existentes, e somente o MRE poderia garantir isso”, escreve Kubiske.
Isso porque esse tipo de requerimento teria que passar por uma nota diplomática por meio da diretora de crimes transacionais e, de novo, pelo secretário-geral do MRE e “ambos provavelmente atrasariam o pedido”.
Sobel explica que o Itamaraty, ao saber da estratégia, tentou evitar a vinda dos presumidos espiões da DEA. “Apesar da recusa do MRE de conceder vistos aos agentes americanos, conseguimos realizar a transferência com a ajuda da Polícia Federal, da Presidência da República e de nossas excelentes relações com o Ministro da Justiça”, explica, orgulhoso do feito. Segundo ele, a transferência também teve o apoio do governo boliviano.
De olho nos novatos
O segundo dos três telegramas da série sobre o MRE é dedicado à falta de recursos humanos e financeiros do Itamaraty que, diante do crescimento do papel internacional do Brasil, se expandiu entre 2003 e 2009, com a abertura, por exemplo, de 44 novas unidades administrativas em Brasília e 17 novas embaixadas brasileiras na África.
Para a diplomacia dos EUA o emprego de “trainees e terceiros-secretários” sem condições de acompanhar os movimentos de Lula no cenário internacional era vista com bons olhos.
“É crucial influenciar essa nova geração de diplomatas que, embora nacionalistas, estão mais abertos a considerar que a cooperação entre EUA e Brasil pode coincidir com os interesses de seu país”, assinala o embaixador.
“Os franceses instituíram um programa de intercâmbio diplomático com o Itamaraty em 2008, semelhante ao nosso Transatlantic Diplomatic Fellowship. Acreditamos que uma proposta similar seria válida tanto para conseguir um posto que nos permita observar de dentro o funcionamento desse ministério-chave, como para fazer os diplomatas brasileiros entenderem como os EUA executam sua política externa”.
Seguindo a estratégia de contornar Amorim, o terceiro telegrama trata da “concorrência entre agências do governo”. De acordo com a análise de Sobel, embora o MRE continuasse a ser o líder da política externa brasileira, o crescimento internacional do país tendia a erodir seu controle à medida que os temas se expandissem.
A oportunidade americana seria facilitada diante da falta de hábito das instituições brasileiras em lidar diretamente com governos estrangeiros. “Muitos ministros se autocensuram, impedindo-se de estabelecer relações com outros governos sem a luz verde do Itamaraty”, lamenta, citando como exemplo o Ministério do Trabalho e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
No entanto, alguns ministérios como o do Meio-Ambiente (à época chefiado por Carlos Minc) e, principalmente, o da Defesa “estabeleceram relações diretas” com a embaixada brasileira, comenta Sobel.
Um telegrama enviado em 31 de março de 2009, depois da visita do presidente Obama ao Brasil, dá um exemplo prático. Pedindo sigilo absoluto de fonte, o embaixador conta que Jobim estava ciente da oferta de Lula a Obama de buscar caminhos para contribuir com o combate ao narcotráfico na região, possivelmente por meio do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) criado em dezembro de 2008 pela União Sul-Americana de Nações (UNASUL).
“Ele disse que o CDS poderia ser o canal perfeito para conseguir o engajamento dos militares dos outros países diretamente com a presidência do Brasil (sem passar pelo MRE) e que planejava falar com o presidente nas próximas semanas”, escreve Sobel.
Jobim também informou a disposição em envolver os militares na luta contra o tráfico de drogas nas fronteiras brasileiras. E contou que o presidente Lula teria lhe pedido que fosse ao México, a pedido do presidente Calderón, para discutir a colaboração entre os governos nesse tema.
“O Brasil hesita em empregar os militares no combate ao narcotráfico tanto por sua história como pela possibilidade de corrupção. O plano de Jobim sinaliza um grande passo, uma vez que o assunto é altamente sensível internamente, no governo, e para o público brasileiro. A intenção de Jobim de trabalhar sem o Ministério das Relações Exteriores traz uma susceptibilidade burocrática adicional a complicada tarefa de conquistar o apoio das outras nações da América do Sul”, comenta Sobel
A compra dos caças
Tudo indica que no episódio das tratativas frustradas de compra dos caças F-X, Jobim e os líderes militares agiram também bem longe dos olhos do Itamaraty.
Os informes diplomáticos sobre a negociação se iniciam em 2004 e estão entre os mais reveladores e numerosos – cerca de 50 telegramas. A comparação entre o que dizem os representantes brasileiros em público e o que cochicham em particular é gritante.
A exceção, nesse caso, foi Amorim, que se posicionou abertamente pela compra dos caças Rafale, da França, tanto pela garantia de transferência de tecnologia feita pelo presidente Nicolas Sarkozy como pelo interesse estratégico na aliança com àquele país o que, para Sobel, se configura como disposição para “desafiar os americanos”.
Jobim, por sua vez, se comportava de maneira dúbia e confundia a diplomacia estrangeira. Em um telegrama intitulado “Brasil e França: amor verdadeiro ou casamento de conveniência”, o embaixador relata a visita da comitiva presidencial à França e à Rússia cujos objetivos “cada vez com mais detalhes” haviam sido confidenciados por Jobim antes da viagem.
“O encontro entre os presidentes Lula e Sarkozy e a visita do ministro Jobim à França desencadearam uma onda de francofilia na política externa brasileira, particularmente em relação a uma parceria estratégica”, escreve Sobel em maio de 2008. “Talvez seja mais um ‘marriage blanc’ do que ‘amour veritable’”. Numa tradução livre, um “casamento de fachada e não amor verdadeiro”.
Sobel continua: “Nos encontros privados, Jobim minimizou a relação com a França e manifestou um claro desejo de ter acesso à tecnologia americana. O obstáculo é a resistência do MRE. Ele diz que o governo brasileiro acha a aliança com a França mais conveniente politicamente e considera que o país tem mais a ganhar com a tecnologia americana”.
Em um telegrama de janeiro de 2009, pouco depois da eleição de Obama, Sobel conta ter sido convidado a ir à casa do então ministro da Defesa para um encontro privado. Jobim teria dito que as relações de defesa entre Brasil e França prosperaram por causa da relação pessoal entre os presidentes Sarkozy e Lula, mas que o presidente brasileiro estaria interessado em conversar sobre assuntos estratégicos com o novo governo americano.
Disse ainda que “Jobim acrescentou que Lula ‘usa’ o ministro Amorim, mas não tem uma relação forte com ele, e que o presidente não gosta de Samuel Pinheiro Guimarães”.
Sobel também se reuniu diversas vezes com os comandantes das Forças Armadas para pedir “conselhos” e ouvir sua opinião sobre as chances dos caças da Boeing vencerem a concorrência de quase 10 bilhões de reais. “Os apoiadores mais fortes do Super Hornet (o F-18 americano) são as lideranças militares, em particular o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, que considera a oferta da Boeing o melhor negócio e vê as Forças Armadas americanas como a melhor escolha para uma parceria com o seu país”, escreve em telegrama de janeiro de 2009.
Saito então pediu que o governo americano enviasse uma carta ao governo brasileiro se comprometendo a transferir tecnologia além de reiterar a importância da aproximação de Lula e Obama para o negócio.
Em outro telegrama, o embaixador conta ter obtido “uma cópia não oficial” de uma Requisição de Informações da Aeronáutica (passada eletronicamente para Washington) que “permite planejar os próximos passos para os EUA vencerem a negociação”.
Além de classificar o F-18 como uma aeronave testada em combate “com incomparável segurança e durabilidade”, e de garantir que o preço não seria o principal critério da escolha da Aeronáutica, a informação mais importante obtida pelo documento é de que a Embraer, “principal beneficiária de qualquer transferência de tecnologia”, consideraria “desejável a oportunidade de estabelecer uma parceria com a Boeing”, principalmente se a companhia americana “tivesse a intenção de oferecer uma cooperação adicional na área da aviação comercial”.
Se os telegramas tivessem vazado anteriormente, seria embaraçoso para a Aeronáutica sustentar o relatório apresentado em janeiro de 2010 pela Força Área Brasileira (FAB) ao ministro Jobim que colocava o caça sueco em primeiro lugar na preferência, exatamente por causa do preço e custo de manutenção.
Naquele momento, o documento foi interpretado pela imprensa brasileira como uma “derrota” do governo, nitidamente favorável ao caça francês, classificado em terceiro lugar, atrás dos americanos.
O relatório teria sido modificado dias depois por “pressão do Planalto”, de acordo com a imprensa, para melhorar a posição do caça francês, afirmando que, apesar dos suecos serem mais baratos, o Rafale e o F-18 têm tecnologia superior.
Haiti, exceção a regra
Pouco depois do lançamento dos documentos do WikiLeaks, Amorim minimizou as revelações, dizendo que “ou são irrelevantes, ou eu já sabia, ou tem um valor às vezes de fofoca”.
Quanto às críticas ao Itamaraty, disse que a instituição sempre foi vista com reservas pelos diplomatas estrangeiros, por ser “a primeira linha de defesa da soberania”. “Eles não gostam de tratar diretamente com o Itamaraty. Não são só os americanos, não. É qualquer diplomata estrangeiro”.
Durante sua gestão, no entanto, a exceção a regra que aproximou o Itamaraty dos EUA foi o Haiti. Amorim foi favorável ao envio das tropas brasileiras – e da subsecretária para assuntos políticos do Itamaraty, Vera Pedrosa, que ajudou a assegurar à embaixada americana que o Brasil iria agir, mesmo que tivesse que “dar um jeitinho”.
Segundo um telegrama de março de 2004, Vera explicou que tradicionalmente a interpretação é de que a Constituição brasileira só permite enviar tropas em casos previstos no capítulo VI do Estatuto da ONU, ou seja, em operações de manutenção de paz – enquanto o caso do Haiti se encaixava no capítulo VII, que significa uma missão de imposição de paz. Por conta do grande interesse político do governo brasileiro em participar, Vera teria dito que a situação é “manejável”.
Um ano depois, outro comunicado diplomático indica que Amorim insistiu, pessoalmente, junto a Danilovich, para que os EUA enviassem verbas para projetos humanitários que deveriam se seguir aos ataques “robustos” da Minustah (a força de paz da ONU) contra as gangues na capital do país.
Amorim teria dito ser necessário “contrabalancear reações negativas com uma mensagem forte que focasse na assistência e estabilidade que a Minustah e a comunidade internacional estão tentando trazer ao Haiti”.
Sob forte pressão americana, que chegou a pedir a cabeça do comandante das tropas brasileiras, Augusto Heleno Pereira, o Brasil engajava-se cada vez mais em ações contra rebeldes e gangues haitianas.
Em março de 2007, em reunião com o sub-secretário de Estado norteamericano William Burns, Amotim teria dito que o Barsil estava no Haiti em um “compromisso de longo prazo” e que “a experiência no Haiti tem sido um exemplo positivo de cooperação Brasil-EUA, apesar dos dois governos terem divergido em alguns aspectos específicos da missão”.
Depois do terremoto que devastou o Haiti, em janeiro de 2010, o ex-chanceler reclamou da presença de milhares de marines americanos, enviados para conter a situação de emergência. “A Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), liderada pelo Brasil, deve ser a única força estrangeira no país caribenho, assim que for superada a crise”, disse em entrevista ao diário espanhol El País.
Agora, como o novo ministro da Defesa, Amorim parece ter mudado de opinião. No dia 1 de agosto deste ano, defendeu a retirada das tropas brasileiras do Haiti. “Claro que não pode ser uma saída irresponsável”, disse, “mas não faz sentido (permanecer)”. E repetiu o discurso, já como ministro, na sua primeira reunião com os comandantes das Forças Armadas.
Atualmente, 2.160 soldados brasileiros homens trabalham em segurança interna no Haiti, atingindo um custo total de 1 bilhão de reais desde 2004.
Se o ministro Amorim cumprir seu desígnio é provável que uma das suas primeiras ações no Ministério da Defesa entre em choque com os intentos do governo americano, que sempre insistiram na permanência da ONU. Uma estreia e tanto.