Um dos casos emblemáticos sobre como a visão ideológica de um promotor pode se sobrepor à vontade das instituições e às evidências ocorreu em 2000, em Porto Velho. Precisamente cinco anos após o episódio conhecido como “massacre de Corumbiara”, dois sem-terra e 12 policiais foram levados a julgamento pela morte de 12 pessoas – nove posseiros, dois PMs e uma pessoa não identificada, vítimas de um conflito ocorrido em 1995 na fazenda Santa Elina, em Corumbiara, no sul de Rondônia. A linha geral de raciocínio do Ministério Público era de que os oficiais presentes à operação permitiram uma série de abusos. Entre os oito soldados levados a júri, o caso principal dizia respeito a execuções cometidas num barraco em que ficavam os seguranças do acampamento. Contra os líderes dos camponeses as acusações foram de que praticaram cárcere privado por não permitir a saída de quem assim desejasse e de que deveriam responder por todos os homicídios, uma vez que assumiram o risco de um desfecho trágico ao desobedecer a ordem judicial de reintegração de posse – uma tese que foi parcialmente rejeitada pelo Judiciário.
O promotor que atua perante o júri tem independência quase absoluta para operar: se quiser, pode contrariar a orientação defendida por colegas no processo de instrução do caso e pedir que os jurados tomem a decisão que lhe parece mais adequada. Isso acontece. Mas é raro. A segunda sessão de julgamento do caso Corumbiara assistiu a um desses momentos pouco comuns no mundo jurídico.
O promotor Tarcísio Leite Mattos sempre foi conhecido localmente por uma conduta peculiar. “Aí dentro só tem merda”, disse, apontando para os processos relativos aos fatos ocorridos na fazenda Santa Elina. Seu colega de Colorado do Oeste, Elício de Almeida e Silva, tomou como base em sua acusação os inquéritos feitos pelas polícias Civil e Militar. “É um monte de merda esse processo. O promotor de Colorado é um bundão porque não teve coragem de arquivar essa merda e mandou a júri esses dois inocentes.” Naquele dia, estavam sendo julgados dois policiais da Companhia de Operações Especiais (COE), de Porto Velho, que foi ao local do conflito auxiliar as forças locais.
Sem o lado da acusação, aquela sessão se transformou num ato de desagravo para os inimigos de movimentos sociais. “Eu não vou defender comunistas. Nossa bandeira é verde-amarela, não é vermelha, não, não é uma porcaria comunista”, continuou. “Tem que matar mesmo. Se entrar na minha casa, eu mato. Eu mato.” Mattos fez questão de contar a história de um jurado do Rio de Janeiro que votou pela condenação de policiais e sofreu um “castigo divino”. Ele garantiu que a absolvição dos sem-terra Claudemir Gilberto Ramos e Cícero Pereira Leite Neto daria aos militantes confiança para invadir casas, roubar e estuprar. “Sexta-feira, o pau vai cantar aqui neste plenário. Eles vão roubar suas casas se forem absolvidos. Não tem como fugir desses cachorros serem condenados. Pode vir pra cá até o papa que ninguém vai salvar esses cachorros.” Nenhuma dessas frases tornaria Mattos mais famoso que uma máxima proferida em seguida, não livre de referência literária e tom filosófico: “Ou o Brasil acaba com os sem-terra ou os sem-terra acabam com o Brasil.”
O promotor foi afastado do caso, mas o estrago estava feito: além da absolvição dos dois policiais, nas sessões seguintes se livraram da prisão cinco soldados e um oficial. O advogado Alexandre Lopes de Oliveira estava horrorizado com o que via: vindo do Rio de Janeiro na companhia do experiente George Tavares, o jovem nutria a expectativa de que o promotor se valesse da autonomia para pedir a absolvição dos sem-terra, considerando que não havia provas nos autos que pudessem atribuir a Claudemir e a Cícero as mortes ocorridas no conflito. Porém a atuação de Mattos deixou a situação muito mais complicada.
“Quando pede a absolvição dos PMs, num confronto com os camponeses, onde alegam que estariam em legítima defesa, e o próprio Ministério Público, que é o Estado se pronunciando, pede a absolvição dos policiais, fica muito mais difícil”, lembra. “A verdade é que a classe média das cidades não simpatiza com os sem-terra porque ela acha que seu próprio bem está ameaçado por eles. O jurado, em geral, é de classe média. Ou é universitário, ou é funcionário público.”
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Outras iniquidades apontam para a falha do júri. Embora as acusações fossem idênticas, os dois sem-terra acabaram condenados a penas diferentes, por motivos diferentes. Coisa parecida se deu com os policiais condenados na sessão ocorrida antes da explosão retórica de Mattos. Entre os três soldados, aquele contra quem não havia prova pericial alguma foi quem recebeu a maior pena, de 18 anos. Um que tinha contra si o exame de balística, comprovador de que uma bala saída de seu revólver estava no corpo de um sem-terra, acabou absolvido. Os advogados envolvidos no caso tentam até hoje entender o que ocorreu. “A única coisa que podemos entender que houve é que os dois policiais que foram condenados, ao sentar ali, meio relaxados, meio risonhos, os jurados não foram com a cara deles. Por incrível que pareça, só conseguimos pensar nisso”, arrisca Lídio Luís Chaves Barbosa. Um de seus colegas dá explicação parecida: o soldado que recebeu a maior pena, um rapaz alto e forte, não cabia na cadeira e, ao ficar com as pernas esticadas, transmitiu aos jurados um sinal de deboche.
Em outra frente de discussão, a antipatia pelos sem-terra num estado como Rondônia poderia ser comparada à ojeriza de alguns segmentos da sociedade dos grandes centros por criminosos, supostos criminosos e pobres automaticamente vistos como criminosos. “O problema é que a própria mentalidade segundo a qual bandidos devem ser mortos é que contribui para esse tipo de construção de prova. Muito curiosa, por sinal. O mais estranho é que delegados aceitem este tipo de argumentação e coloquem no seu relatório. Eles, que são bacharéis em Direito, deveriam entender isso. E, pior ainda, que o MP acate esse tipo de interpretação”, afirma Michel Misse. Assim como a Polícia Militar, o Ministério Público e o Judiciário, o Conselho de Sentença reflete nossa sociedade em pré e pós-conceitos.
Carandiru não é passado
O Massacre do Carandiru é mais um caso singular da atuação do sistema de justiça frente aos crimes perpetrados pela polícia paulista. Nenhum dos envolvidos direta ou indiretamente com o assassinato de 111 presos em 1992 foi condenado penalmente em decisão definitiva e o único coronel condenado pelo júri popular foi absolvido em decisão inédita do Tribunal de Justiça de São Paulo.
No final do ano passado, o último réu acusado de participar do massacre, o ex-policial militar Cirineu Carlos Letang Silva, foi sentenciado a 624 anos de prisão. É o único dos PMs que está preso em regime fechado, mas não pelas mortes do Carandiru – ele é apontado como matador em série de travestis; teria assassinado seis transexuais entre os anos de 1990 e 2011.
O processo criminal que tramitou perante o Tribunal do Júri em nenhum momento alcançou as pessoas que ocupavam as mais altas posições hierárquicas envolvidas na ordem de invasão da penitenciária. Somente um dos dois únicos coronéis que figuraram como réus no processo criminal, o coronel Ubiratan Guimarães, já falecido, foi julgado. Condenado a 632 anos de prisão pelo júri em junho de 2001, foi, no entanto, absolvido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, cinco anos depois. “O que aconteceu com o Ubiratan é algo que nunca se viu. A absolvição feita diretamente pelo Tribunal de Justiça é totalmente inédita. Deveria ser mandado para novo júri”, explica Maira Rocha Machado, que, junto com Marta Rodriguez Machado, conduz uma pesquisa sobre os mecanismos de responsabilização iniciados por diferentes atores sociais após o Massacre do Carandiru. “O que aconteceu no Brasil depois de a gente ter vivido o Carandiru? Não mudou o paradigma de respeito aos direitos humanos dos presos, não mudou o paradigma de violência policial. É um caso escandaloso e a gente tirou muito pouco de lição”, argumenta Marta, do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.
Além delas, o defensor público do núcleo carcerário de São Paulo, Bruno Shimizu, e a pesquisadora em Direito Penal e criminologia, Ana Gabriela Mendes Braga, justificam que a mudança de competência da Justiça Militar para a comum com a Lei Bicudo pouco ou nada contribuiu para a responsabilização jurídica dos envolvidos no massacre. “Pensaram que a mudança legislativa teria o condão de poder mudar toda uma cultura institucional militar”, argumenta Ana. “Mesmo quando o júri condena [no caso Ubiratan], a Justiça, de forma mais ampla, legitima a violência policial”, diz.
Shimizu explica que o Código do Processo Penal é claro, mas não foi respeitado nesse caso por uma decisão política. “Se uma condenação é manifestamente contrária à prova dos autos deve ser submetida a novo júri, mas, no caso Ubiratan, o Tribunal de Justiça declarou a nulidade parcial de um dos quesitos da votação. Na verdade, eles não queriam ter condenado, mas absolvido o Ubiratan, e os jurados não entenderam. Todos os jurados foram entrevistados depois e falaram que queriam mesmo era condená-lo.” No diagnóstico do defensor público, o problema geral não diz respeito ao júri popular, mas, sim, aos juízes togados. “Os mesmos juízes que acobertavam os crimes da ditadura, são os mesmos que depois viraram desembargadores, presidentes de tribunal, ou seja, gente que continuou mandando no Poder Judiciário.”
Para as pesquisadoras da FGV, que acompanharam todos os júris do caso Carandiru, chamou a atenção o discurso recorrente em plenário de defender o bem contra o mal, independentemente das várias questões técnicas envolvidas no processo. Além disso, elas contam que muitos policiais militares assistiam ao julgamento. “Eles ficavam parados, em pé, junto às portas. A gente percebia que os jurados olhavam. Eles se cumprimentavam e cumprimentavam os familiares. Depois, o juiz determinou que quem quisesse assistir não poderia usar farda. A gente não sabe se isso partiu da sensibilidade dele ou se foi pedido do Ministério Público”, relembra Maira.
Por conta do número de réus, a Justiça paulista desmembrou o caso em quatro partes ou júris diferentes, correspondentes aos andares invadidos na casa de detenção. Foram julgados os grupos de policiais militares que estiveram em cada um dos pavimentos nos quais ocorreram as mortes. Ao todo, ao longo dos quatro júris, houve 73 condenações de policiais por 77 mortes. Eles receberam penas que variam de 96 a 624 anos de prisão. A diferença de 34 homicídios em relação ao total de 111 mortos é explicada pelas exclusões ou absolvições pedidas pelo Ministério Público, a maioria em decorrência da suspeita de que detentos feridos com armas brancas tenham sido mortos por companheiros.
Mesmo com as condenações expressivas, ninguém está preso. “Para muitas pessoas é irrelevante o que se decidiu na sentença: se não está preso, não está condenado”, pontua Marta. A explicação jurídica é de que a prisão antes do trânsito em julgado é provisória, mesmo no caso de existir uma sentença condenatória. Portanto, como todos os réus responderam ao processo em liberdade, tiveram o direito de também recorrer em liberdade. Em abril do ano passado, nos dois últimos júris do caso, o promotor Márcio Friggi falou que esse direito não poderia ser suprimido porque a causa tinha clamor popular. “Agora, o sistema está certo? O sistema legal pode ser mudado e deve ser mudado? Aí me parece que sim”, justificou.
Ao longo de todo esse tempo, alguns dos réus foram promovidos e se tornaram oficiais mesmo com a acusação de assassinatos. Em 2011, por exemplo, o então secretário de Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto, promoveu o tenente-coronel Salvador Modesto Madia, que figura como réu no processo, a comandante da Rota. Questionado, respondeu: “O massacre é coisa do passado. Não podemos julgar alguém por algo que aconteceu há quase 20 anos e ainda depende de decisão da Justiça. Isso não tem nada a ver com a realidade hoje.”
No livro Justiça, Luiz Eduardo Soares sugere que, no julgamento de policiais acusados de brutalidade letal não amparada legalmente, ou seja, de assassinato, não basta focalizar apenas as situações dos crimes e dos agentes diretamente envolvidos. “Sem negar sua cota de responsabilidade, sugiro que sejam responsabilizados todos os envolvidos na cadeia de comando, até a esfera superior de governo. Não para que o governador seja condenado e preso, mas para que seja instado a aceitar um termo de ajuste de conduta, por meio do qual se comprometa a efetuar mudanças profundas que impeçam a sequência dos crimes cometidos por policiais”, defende.
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