Susan Meiselas tenta reconhecer o território. Repassa com o olhar todo o entorno da rua principal do vilarejo de El Mozote, no estado de Morazán, nordeste de El Salvador. Afinal, diz: “Não me lembro de ter entrado por aqui”. Então retira do seu bolso as folhas de contato e os rolos com as fotografias que tirou em janeiro de 1982, durante sua primeira e decisiva viagem a este lugar. Quadros em preto e branco dos corpos de alguns dos colonos que moravam em El Mozote e casebres próximos; restos humanos apodrecendo nestes mesmos caminhos, tal como ela os encontrou duas semanas depois que o Batalhão Atlacatl, do Exército de El Salvador, assassinara aqui quase mil pessoas, em dezembro de 1981. Susan Meiselas voltou à cena do crime.
Ela se embrenha com um pequeno grupo pelos caminhos de terra que começam atrás da igreja e levam a casas que já não existem. No grupo estão Edgar Romero, fotógrafo e curador salvadorenho, que é o anfitrião; e dois membros da Associação Promotora dos Direitos Humanos de El Mozote, que representa legalmente vários familiares das vítimas. É o último domingo de novembro de 2016. São 7 da manhã e alguns camponeses já estão reunidos por ali. Estão à espera dela, ao lado de uma escavação delimitada pelo que alguma vez foram as paredes de uma casa.
Há alguns anos, uma equipe de antropólogos forenses argentinos exumou aqui dois corpos: de uma menina e sua mãe. “Vieram com uns aparelhos que passavam por cima da terra até que apitavam, e então começavam a escavar”, explica Orlando Márquez. “São detectores de metal. Você sabe, caso alguém tivesse uma pulseirinha, um colar de metal… O aparelho tocava. E assim apareceram os corpos.”
Márquez, um homem forte que está por fazer 60 anos, perdeu seu pai, sua mãe e três irmãos durante aquelas jornadas holocáusticas. Ele só se salvou porque estudava na capital, São Salvador. Ele nos leva até sua casa e ali mostra o vestidinho que conseguiu recuperar da irmã mais nova, Yesenia Márquez García, assassinada quando tinha só 18 meses. “Dali o retiramos”, diz e mostra o chão de terra do lado de fora.
Os nomes escondidos nos retratos
Susan, que fala espanhol fluentemente, escuta em silêncio. Márquez vai contando a ela sobre a vida dos rostos das fotos que ela tirou há 35 anos. Está identificando-os. Somente neste lugar foram exumados os restos de 15 pessoas. Elas têm nome e sobrenome. Pertenceram às famílias Márquez Guevara. Como as outras centenas, viveram aqui; viveram, até duas semanas antes que Susan as fotografasse como cadáveres, sem saber quem eram. Tiveram o destino torto de viver em um território em constante disputa entre os dois lados que lutavam a guerra. A poucos quilômetros dali ficava a base de operações da clandestina Rádio Venceremos, operada pelos guerrilheiros da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) – guerrilha socialista que se tornou um partido político depois do fim da guerra. A rádio era a obsessão do coronel do exército Domingo Monterrosa, comandante do Batalhão Atlacatl e máximo responsável – ao menos no terreno – pelo massacre.
Muitas das suas vítimas permanecem ainda debaixo do solo deste lugar. Algumas foram enterradas informalmente pelos moradores que voltaram; outras simplesmente acabaram sepultadas ali mesmo onde morreram. Mas agora estão sendo desenterradas – não somente as vítimas, mas também as responsabilidades pela tragédia.
Lei de Anistia anulada
No último dia 30 de setembro, a Justiça de San Francisco Gotera ordenou a reabertura das investigações criminais sobre o massacre, baseando-se na anulação da Lei de Anistia decretada pela Corte Suprema de El Salvador alguns meses antes. A decisão veio quatro anos depois de o governo reconhecer perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, durante as audiências sobre o caso El Mozote, “sua obrigação de investigar os fatos denunciados, processar mediante julgamento justo e sancionar os responsáveis”. A corte responsabilizou o Estado salvadorenho pelo massacre e o condenou por impedir o acesso das vítimas à justiça. E estabeleceu, com base nos informes da Comissão da Verdade e em depoimentos, que entre mil e 2 mil soldados do exército participaram do massacre – que começou em 10 de dezembro de 1981, quando várias companhias de Atlacatl se encontraram em El Mozote após o lançamento de uma enorme operação militar.
Uma nota no jornal La Prensa Gráfica de 14 de dezembro daquele ano cita o então ministro da Defesa Guillermo García, qualificando a operação como bem-sucedida, “pois se destruíram vários redutos subversivos”. O objetivo de tal operação era “eliminar de una vez por todos os focos terroristas para levar paz e tranquilidade àquela população”. Quando o jornal chegava às bancas, o maior massacre contemporâneo da América Latina estava sendo perpetrado fazia três dias pelas tropas do general García.
Em 1981, Susan era uma jovem e reconhecida fotógrafa. Levava três anos vivendo entre Nova York Manágua, capital da Nicarágua, retratando a revolução sandinista naquele país. De vez em quando, viajava a El Salvador para cobrir a guerra. Um ano antes havia estado ali para fotografar os corpos de quatro religiosas norte-americanas da ordem Maryknoll, violadas e assassinadas por membros da Guarda Nacional, subordinada ao Ministério da Defesa.
No final de 1981, Susan recebeu uma ligação do jornalista Ray Bonner, do New York Times. Algo terrível havia ocorrido em El Salvador e deviam entrar no país por terra, a partir de Honduras, para confirmar. Bonner avisou também Alma Guillermoprieto, correspondente do Washington Post, o jornal concorrente. Era assim tão grave a notícia.
Uma só foto
Susan empacotou seu equipamento e se encontrou com Bonner em Tegucigalpa, capital de Honduras. Um contato guerrilheiro os levou até Colomoncagua, cidadezinha próxima à fronteira. Dali, outro grupo os encaminhou pelo território salvadorenho. Em 6 de janeiro chegaram a El Mozote e às localidades vizinhas; numa delas, El Zapotal, conheceram Rufina Amaya, uma mulher de 38 anos e até então a única sobrevivente conhecida do massacre no qual perdeu o marido e quatro filhos. Escondida atrás de alguns arbustos, Rufina viu como foram mortos. Bonner a entrevistou. Alma Guillermoprieto também. Foi a principal fonte das suas reportagens. Susan a retratou.
Aquela foto – que mostra Rufina Amaya sentada em um campo, com uma mão sobre a grama e outra sobre a perna esquerda, com um avental branco sobre a saia, cabisbaixa, com o cabelo preso, a cara limpa, de expressão franzida e olhar perdido em pensamentos inescrutáveis – confirmou a existência de uma sobrevivente. Evidenciou, portanto, que houvera um massacre. O retrato da mulher que sobreviveu se converteu na imagem representativa de mil mortos. Hoje, 25 anos depois do fim da guerra, essa fotografia de Rufina Amaya é o retrato universal da mãe salvadorenha: aquela que, desde séculos, vê seus filhos morrerem, engolidos pela violência. Até hoje.
As folhas de contato fotográfico que Susan trouxe mostram um só quadro daquela foto. Ela mesma se surpreende: “Só fiz uma foto de Rufina! Por quê? Não sei. Ela era a única que tinha a história. Não me lembro, mas sei como eu fotografo. Foi por respeito a ela, para não interromper o seu momento”. Esse momento em que Rufina Amaya está com o olhar em outra dimensão. Perdida. Tendo de dar o depoimento sobre a obscuridade, sobre o inenarrável. Apenas duas semanas depois de ter visto como matavam a seus filhos. Uma só foto.
Graças a Rufina Amaya, soubemos que os soldados entraram em El Mozote e reuniram todos os moradores. Depois os separaram: homens de um lado, mulheres e crianças do outro. Enquanto faziam isso, foram puxando meninas em direção às colinas; meninas adolescentes, para violá-las antes de assassiná-las. Rufina Amaya conseguiu escapar do grupo de mulheres que eram levadas a uma casa onde foram mortas. Ela se escondeu atrás de um arbusto e dali, sem se mover, escutou os filhos implorando por ajuda. Chamando-a. E morrendo.
Uma só foto. Uma. “Uma foto pode transcender através do tempo”, diz Susan. A de Rufina Amaya fez isso.
Seu testemunho, confirmado depois por outros sobreviventes, revelou que as Forças Armadas mandaram os moradores se trancarem em casa porque estava por começar uma forte operação militar. E garantiram que nada aconteceria com eles.
No dia 11 de dezembro de 1981, às 5 da manhã, os soldados conduzirem os homens para a capela; depois de levarem algumas adolescentes e jovens para morros próximos, como descreveu Rufina, as demais mulheres foram divididas em grupos de 20 e levadas para outras casas, onde foram massacradas. Depois, as tropas de Atlacatl atearam fogo nas construções. As crianças foram as últimas. A maioria foi assassinada em um lugar conhecido como “o convento”, uma casinha contígua à capela.
Nos dias seguintes, as tropas continuaram com o massacre em outros povoados: La Joya, Ranchería, Los Toriles, Jocote Amarillo, Cerro Pando e Cerro Ortiz, nos municípios de Meanguera e Arambala. A Associação Promotora dos Direitos de El Mozote contabiliza mil vítimas; a metade eram menores de idade.
Poucos dias depois, guerrilheiros da FMLN encontraram Amaya, e a Radio Venceremos denunciou o massacre. O governo acusou a FMLN de inventar aquilo tudo com fins de propaganda política.
Em 27 de janeiro, quando as fotos de Susan Meiselas foram publicadas na capa do New York Times e do Washington Post, os governos de Estados Unidos e de El Salvador acusaram a guerrilha de matar os camponeses, com o intuito de responsabilizar o Exército. A embaixada estadunidense relatou a Washington que nem sequer havia aquilo tudo de habitantes na região.
“Minhas fotos fizeram com que esses mortos fossem inegáveis. Mas não foram capazes de dimensionar a escala do massacre”, conta Susan.
A busca por corpos
Em 1992, depois de assinado o Acordo de Paz, a equipe argentina de antropologia forense iniciou as exumações no local. Da primeira fossa em que trabalharam recuperaram 136 ossadas de meninos e meninas que, segundo calcularam, tinham em média 6 anos. Nessa mesma fossa resgataram os restos de uma mulher grávida de três meses.
O jornalista estadunidense Mark Danner testemunhou a recuperação daquelas centenas de ossadas. Em uma reportagem publicada em 1993 na revista New Yorker, contou como tanto o Exército de El Salvador como o governo dos Estados Unidos haviam conspirado para encobrir o ocorrido. A guerra global contra o comunismo era mais importante para Washington do que mil camponeses assassinados. Além disso, os assassinos haviam sido treinados pelos próprios Estados Unidos.
A Lei de Anistia de El Salvador, promulgada em 1993, impediu – como a Lei de Anistia brasileira – a abertura de um processo criminal sobre o caso.
Em 2015 as exumações foram retomadas. Equipes de medicina legal e de antropólogos canadenses encontraram 36 ossadas, entre as quais conseguiram identificar 24 e devolvê-las às famílias. Entre novembro e dezembro de 2016, a equipe de antropólogos forenses voltou ao lugar e encontrou outras 46 ossadas. No total, se recuperaram os restos mortais de cerca de 400 pessoas – embora nem todas tenham sido identificadas. Mais da metade das vítimas permanece sob a terra. No momento, as exumações estão dadas como encerradas.
À medida que mais ossadas eram identificadas, os familiares reencontraram as próprias histórias. Susan Meiselas também está reencontrando a sua. “Naquele momento, em El Mozote, pensei em denunciar o massacre, mas sabia muito pouco. Por que me custa tanto hoje mapear essa comunidade? Será porque tinha medo de ir embora logo?”, pergunta-se. Ela sobrepõe as fotos ampliadas à paisagem que tem diante de si. Está desafiando a memória com documentos. Edgar Romero, seu anfitrião salvadorenho, segura uma das fotos, que mostra uma rua com paralelepípedos. Ambos comparam a foto com o terreno. Duvidam. “Não – diz ele. Isso não foi aqui. Isso deve ser em Arambala”.
Edgar Romero dedicou muitos anos a compilar e difundir a memória fotográfica de El Salvador. Há anos organiza anualmente a ESfoto, uma exposição que reúne os melhores trabalhos de fotojornalismo da América Central. A viagem de Susan, que ele organizou, incluiu um workshop para fotojornalistas e uma palestra aberta ao público. Edgar foi buscar a fotógrafa no aeroporto, e dali foram diretamente para Morazán. Ela queria voltar a El Mozote antes de qualquer coisa.
É sua quarta visita ao lugar, para continuar um diálogo permanente que mantém com sua própria memória do horror. Susan vê os alicerces ainda cinzentos de casas onde dezenas de pessoas morreram queimadas, e outras fuziladas; surpreende-se com construções das quais não se lembra. “Essas casas não estavam aqui”, diz Orlando Márquez. “Aqui não sobrou nada.”
A história de Dorila
Chegamos a um terreno baldio. O mato e plantas que cresceram sem poda cobrem o piso. Afastando ramos, chegamos a um lugar onde a vegetação foi cortada a facão e a terra do solo, revolvida. Dorila Márquez, uma mulher idosa, aponta para o chão. Diz que ali ainda estão os corpos de seu pai, sua mãe, sua irmã, seu irmão e quatro sobrinhos. A terra foi remexida pela equipe argentina, que não os encontrou. “Não cavaram onde eu disse. E eu não quis que eles continuassem escavando”, diz Dorila. “Não quis mais.”
Vários anos antes de irritar-se com os antropólogos forenses, Dorila viajou ao Equador para dar seu depoimento à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A resolução da corte a cita como uma das principais testemunhas. Agora ela parece cansada de tantos anos em busca por justiça. Quem sabe por isso, depois de anunciar que ali ainda estão os restos dos seus familiares, ficou um pouco para trás do grupo, à sombra de uma árvore que cresceu onde antes havia uma sala de jantar. Nesse momento, a camponesa me conta sua história em voz baixa.
Nos dias do massacre, ela estava em La Ranchería, uma das comunidades vizinhas, mas o Batalhão Atlacatl nunca viu a sua casa. Por isso ela sobreviveu. “[Várias semanas] depois nos expulsaram para umas barracas da Cruz Vermelha em Arambala, por ali passavam o Batalhão Atlacatl e o coronel Monterrosa. Eu fazia tortilhas para os soldados.” Pergunto a Dorila Márquez por que ela alimentava os assassinos da sua família. Ela responde com a lógica da pobreza: “Eles andavam buscando quem vendesse tortilhas.”
Cristã devota, ela conta isso enquanto está de pé sobre a terra que ainda esconde os corpos. Os assassinos, diz, iam ter com ela todas as vezes que patrulhavam a área. “Os soldados me cantavam. Mas eu sempre os evitava. Uma vez não aguentei mais e disse a eles que eu era de El Mozote e que eles haviam matado a minha família. Eram dois soldados. Disseram que sim, era verdade. ‘Por isso’, disseram, ‘quando perguntamos sobre a sua família, você range os dentes: você nos odeia’. ‘Não’, disse, ‘eu não os odeio. Vocês receberam ordens’. E essa é a verdade, eu não os odeio. Nem a Monterrosa. Essa ordem veio de cima.”
Voltamos à praça central. Susan trouxe consigo algumas impressões de duas fotos para doar à pequena exposição que os camponeses montaram em um quiosque na praça. As primeiras fotos do massacre, nas quais se veem alguns corpos em decomposição e um triciclo caído na rua principal, já estão coladas no quiosque.
A viagem da fotógrafa em 1982 foi tão rápida e intensa que não deu tempo de ela registrar muito na memória. Não se lembra, por exemplo, quem foi seu guia, mas continua buscando-o, como se desejasse reconstruir tudo o que não pôde deixar gravado. “Hoje, 35 anos depois, soube quem me levou de Tegucigalpa a Colomoncagua”, conta. Depois de perguntar a todo mundo que pôde, uma ex-combatente da guerrilha Exército Revolucionário do Povo (ERP) soube dizer: quem guiou os jornalistas estadunidenses foi um guerrilheiro que morreu um ano depois.
As fotos da esperança
Susan se mudou para a Nicarágua em 1978, depois de ler em um jornal sobre o assassinato do político e escritor Pedro Joaquín Chamorro, que se opunha à ditadura, o que foi um marco na guerra civil daquele país. Logo suas fotos sobre a revolução sandinista se converteram no melhor canal para saber o que acontecia na época. Sua foto mais conhecida é chamada “O homem molotov” e capta um jovem combatente sandinista, em meio a uma rua larga, no momento em que lança um coquetel molotov com a mão direita, enquanto com a esquerda ergue um fuzil; ele tem uma expressão de tremendo esforço no rosto, debaixo de uma boina negra à Che Guevara. De seu peito sai um crucifixo prateado, impulsionado pelo movimento, que permanece preso somente por uma corrente, sobre o casaco verde-oliva. Atrás dele, outro combatente o observa atrás de uma barricada; e ainda outro mais perto o observa agachado. Ao fundo da cena há um tanque. É considerada como uma das cem fotografias mais influentes da história.
Susan ficou na Nicarágua depois da entrada dos guerrilheiros sandinistas na capital, Manágua, retratando a nova vida em um pequeno país centro-americano onde a revolução havia triunfado em plena Guerra Fria.
Seu portfólio nicaraguense é uma celebração das cores da revolução. Inclui combatentes mascarados, quase teatrais, avançando sob o aplauso do seu povo, rumo à construção da utopia. Homens gordos de meia-idade brandindo rifles, participando da luta popular. Heróis como o “o homem molotov”. Crianças nos mercados observando coloridos soldadinhos de plástico. Mulheres comandando as tropas com aprumo. Também há o horror da morte, mas sempre ao lado de pessoas que parecem se oferecer como peças na luta. Até suas fotos mais cruas parecem iluminadas pela esperança.
Já as fotos de El Salvador são a iconografia do macabro, em preto e branco. Barreiras militares. Helicópteros armados. Religiosas orando diante dos corpos de suas companheiras violadas e assassinadas. Os corpos em decomposição de El Mozote. Cadáveres arrastados ou caindo de caminhões militares. Crianças vendo os cadáveres. “A Nicarágua parecia um lugar de esperanças, mesmo durante a guerra. Já El Salvador, sempre me pareceu um lugar perigoso. Tétrico”, diz.
Em 1979, durante uma viagem a El Salvador, Susan retratou outra de suas imagens mais conhecidas e uma das poucas coloridas: as impressões brancas de duas mãos sobre uma porta de madeira vermelha de uma casa na vila Arcatao. Era a assinatura do esquadrão da morte conhecido como “Mano Blanca”, o sinal de que neste lugar vivia um “comunista”. Uma advertência que costumava terminar com o assassinato ou o desaparecimento de quem vivia na casa.
Em 2016, com a ajuda de Edgar Romero, ela soube por fim quem fora a vítima: Ernesto Menjívar, irmão da atual ministra de Saúde, Violeta Menjívar. As mãos brancas apareceram na porta da casa em agosto de 1979. A família decidiu ir embora, mas Ernesto não quis. Foi assassinado em 14 de outubro. Foi provavelmente a última vítima da ditadura do general Carlos Humberto Romero, que terminou no dia seguinte com um golpe de Estado. “Tem toda uma história por trás dessa foto que eu desconhecia”, diz a fotógrafa. E continua buscando.
“Há outra foto que eu ando tratando de encontrar, em Cuscatancingo. Nessa viagem não pude voltar ao lugar onde a tirei, porque hoje a violência vem das gangues”, diz. A foto, em preto e branco, mostra homens de uniforme parados diante de um caminhão militar, do qual pende uma vítima, possivelmente um guerrilheiro. Homens, mulheres e crianças observam a cena.
Tanto ela como Edgar Romero falam em montar um quebra-cabeça. Como se aquelas fotos escondessem as peças. Um quebra-cabeça cujo desenho final não se conhece. “É a nossa história”, diz ele. Eu pergunto a Edgar o que ele busca ao fazer isso. “Creio que ando buscando meu próprio passado. Buscando meu pai e meu tio.” Seu pai, que também se chamava Edgar, era professor. Foi assassinado em Chinameca, em 23 de março de 1980. Um mês depois, nas cercanias da Universidade de El Salvador, mataram o seu tio, Wilfredo Menjívar. “Quando chegamos para recolher o corpo, já o tinham levado. Nunca o encontramos.”
Susan, por sua vez, não tem tanta clareza sobre sua busca pessoal. “Sei que tenho ainda um envolvimento pessoal com essa história. Voltar não responde a uma curiosidade intelectual, mas a uma espécie de necessidade”, diz. “Você tira uma foto e ela permanece fixa, mas a vida continua e para os sobreviventes a memória vai se transformando. Não sei como fazer com que as fotos também reflitam isso.”
O que nenhuma de suas fotos pode explicar é como, hoje, as Forças Armadas de El Salvador sigam prestando homenagens ao coronel Domingo Monterrosa, e como os estudantes concluam o segundo grau sem que lhes seja ensinado o que aconteceu em El Mozote. O pior massacre da Guerra Fria na América Latina.
Depois de seus compromissos na capital, Susan voltou à zona de El Mozote para ver as exumações feitas pelos forenses argentinos. O campo de trabalho, no Cerro Pando, estava delimitado por uma faixa amarela. Lá dentro, policiais, promotores, forenses. Lá fora, fotógrafos, repórteres e cameramen. “Acabaram de retirar uma caveira e todos estavam em volta dela”, lembra. “Os trabalhadores me chamaram para tirar uma foto com eles. Era a última coisa que eu esperava.” Ela posou com eles. Agora é a fotografada. “A família estava dividida: alguns não queriam abrir a sepultura. Todos continuam tentando responder a perguntas, juntar as peças.”
El Salvador, digo a ela, ainda não terminou de solucionar esse massacre. “Nem os Estados Unidos”, responde Susan. Nem ela própria.
Reportagem originalmente publicada no site El Faro. Leia aqui o texto original em espanhol. Traduzido por Natalia Viana.