Buscar

Tataravô do ex-presidente teria usado negros e indígenas para produção de algodão

Reportagem
19 de novembro de 2024
10:00

A investigação foi feita com apoio do Pulitzer Center

Se existe um termo que pode ser usado para a família Collor de Mello é: política. O ex-presidente brasileiro Fernando Affonso Collor de Mello e seus parentes formam um emaranhado de linhagens tradicionais do estado de Alagoas, que marcaram a história política do país, incluindo episódios que envolvem corrupção e assassinato. E agora, segundo a Agência Pública apurou, esse passado familiar também está relacionado à escravidão e às terras que restaram da destruição do quilombo mais conhecido da história do Brasil, Palmares.

O membro mais notório da família é, provavelmente, o próprio Collor, atualmente condenado a oito anos e dez meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por receber uma propina de R$ 20 milhões para influenciar contratos na BR Distribuidora com a empresa UTC Engenharia, entre 2010 e 2014. A defesa do político nega o crime. Um recurso apresentado pelo ex-presidente foi negado no dia 14 de novembro. O primeiro presidente brasileiro que perdeu o cargo por um processo de impeachment após o fim da ditadura de 1964, Collor foi o responsável por impulsionar o neoliberalismo e as privatizações e confiscar poupanças. A despeito disso, ele foi eleito senador por Alagoas duas vezes depois de ter sido retirado da Presidência.

Senador foi também o cargo que seu pai, Arnon Afonso de Farias Mello, alcançou. Nascido em 1911 na capital de Alagoas, Maceió, ele foi eleito ao Senado três vezes, entre 1963 e 1983. Na primeira delas, quando estava no extinto Partido Democrata Cristão (PDC), ele protagonizou uma das cenas mais esdrúxulas e trágicas da história da Casa.

Durante uma discussão com o senador Silvestre Péricles (PTB-AL), Arnon disparou e acabou acertando – e matando – outro colega, que nada tinha a ver com a querela: José Kairala (PSD-AC), um suplente que estava no seu último dia de substituição do senador eleito nas urnas. O crime aconteceu em 4 de dezembro de 1963 e Arnon, apesar de brevemente detido, não foi condenado pelo Tribunal do Júri de Brasília após ter alegado legítima defesa e a Justiça entender que se tratou de “crime acidental”. Arnon se filiaria à Arena, partido de apoio à ditadura, em 1966.

Collor, Mello e Bittencourt: famílias que se perpetuam na política

A família de Collor se divide em dois ramos de políticos a partir de Arnon, seu pai.

Do lado materno, de onde vem o sobrenome Collor, está o avô Lindolfo Leopoldo Boeckel Collor, que viveu entre 1890 e 1942. Ex-deputado estadual e federal pelo Rio Grande do Sul e ex-ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, ele era descendente de alemães que migraram para o Sul do país. É dessa imigração que surge o sobrenome pelo qual ficou conhecido o ex-presidente: Collor é uma versão brasileira de Köhler. 

Já do lado paterno, dos Mello, está a linhagem de políticos alagoanos da qual descende o avô Manoel Afonso de Mello Filho, usineiro que viveu entre 1904 e 1995. Ele era dono de uma propriedade chamada Cachoeirinha, em Rio Largo, próximo a Maceió, onde Arnon nasceu. A informação foi confirmada pelo Instituto Arnon de Mello, entidade ligada a um grupo empresarial que controla diversos veículos de comunicação e que tem como um dos sócios o próprio ex-presidente.

Manoel foi casado com Lúcia de Farias Cardoso, que, por sua vez, também vem de uma linhagem tradicional do estado, a família Bittencourt. É nesse tronco que documentos apontam um histórico relacionado à escravidão.

Mãos negras e indígenas na colheita do algodão

O bisavô de Lúcia e tataravô de Collor foi o coronel João de Farias Bittencourt, que viveu entre 1788 e 1886. A Pública encontrou um registro do jornal A Actualidade, de 16 de janeiro de 1864, no qual ele teria chegado ao posto de chefe do estado-maior do comando superior da guarda nacional dos municípios de Pilar e Atalaia, próximos de Maceió.

O coronel foi dono também do engenho São Miguel, em Atalaia. Segundo o livro O Banguê nas Alagoas, de Manuel Diegues Júnior – cientista social que escreveu diversas obras sobre o passado econômico da produção de açúcar no estado -, o engenho teria funcionado com mão de obra de pessoas escravizadas de origem africana e indígenas de aldeias locais. A relação foi apontada também pela dissertação de mestrado de Eric Nilson da Costa Oliveira, na pós-graduação em História da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

Essas pessoas seriam usadas para um trabalho de manufatura de algodão. Segundo a obra de Diegues, o coronel Bittencourt teria conseguido com o ouvidor José de Mendonça Matos Moreira – que comandou a comarca de Alagoas entre 1779 e 1798, que na época já havia se separado de Pernambuco – a construção de uma feitoria no engenho para comercializar a produção”.

“Nessa feitoria trabalhavam escravos africanos e ‘índios’ das aldeias de Santo Amaro e Cabeça do Cavalo; sua instalação data dos começos do século 19. São informações que se podem colher na valiosa memória do professor Joaquim Inácio Loureiro sobre o algodão nas Alagoas. Também na feitoria plantavam-se café, jaqueiras e outras fruteiras”, diz trecho do livro.

A identidade das pessoas escravizadas, como em tantos outros documentos históricos, ficou anônima no registro sobre o engenho do coronel Bittencourt.

De acordo com as pesquisas de Diegues, o algodão, junto à cana de açúcar, eram as principais fontes da economia de Alagoas nessa época, sendo que o algodão chegou a superar o açúcar em meados do século 19. A mão de obra dos escravizados, por sua vez, fazia girar a economia que beneficiava os senhores de engenho de tal forma que a abolição do tráfico no Atlântico, em 1850, deixou os escravizadores preocupados com seus negócios.

Diversos presidentes da província de Alagoas chegaram a falar sobre os “problemas” que o fim do tráfico trouxe à mão de obra para as plantações. Em 1860, o então presidente provincial Pedro Leão Veloso “acentuou a crise advinda com a repentina cessação do tráfico de africanos”, acrescentando que “fora da indústria agrícola nenhuma outra fonte de riqueza temos”, como relatou Diegues em seu livro. O presidente seguinte, Souza Carvalho, também teria apontado, em 1861, a progressiva “falta de braços escravos como a questão que mais deve preocupar”.

A reportagem procurou o ex-presidente para esclarecer os achados sobre sua árvore genealógica e a relação do antepassado com a escravidão, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto Escravizadores. O político não respondeu à Pública até a publicação.

O município erguido ao lado dos escombros de Palmares

Atalaia, onde o antepassado de Collor tinha engenho, não é um município qualquer. A cidade, que hoje tem cerca de 48 mil habitantes, foi erguida próximo à área onde antes ficava o quilombo mais famoso da história do Brasil, o de Palmares.

registros de que Palmares já existiria desde o fim do século 16, a partir da fuga de pessoas escravizadas por senhores de engenho na capitania de Pernambuco. Elas encontraram um refúgio nas terras ao longo da serra da Barriga. O apogeu de Palmares teria ocorrido por volta do final do século seguinte, após a invasão holandesa no Nordeste ter desarticulado os engenhos de açúcar e intensificado a fuga de escravizados.

Após a expulsão dos holandeses, o governo pernambucano intensificou os ataques contra Palmares. Foi sob as armas do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho e do capitão-mor Bernardo Vieira de Melo que o estado autônomo de Palmares cairia. Em 20 de novembro de 1695, Zumbi, então líder do quilombo, foi emboscado e morto. A data marca o feriado da Consciência Negra, que se tornaria lei nacional apenas em 2003, mais de 300 anos após o assasinato de Zumbi.

O próprio bandeirante paulista foi um dos beneficiados com a repartição das terras onde antes ficava o quilombo. De acordo com a Secretaria da Cultura de Alagoas, Domingos Velho fundou o arraial dos Palmares, onde mandaria construir a capela de Nossa Senhora das Brotas, que daria nome ao arraial. Quase 70 anos após a morte de Zumbi, em 1764, o local seria promovido a vila e rebatizado de vila de Atalaia.

A vila de Atalaia seria, no futuro, governada por outro antepassado do ex-presidente Collor. Segundo livro “Atalaia, último reduto dos palmarinos”, de Vandete Pacheco Cavalcante, o capitão Francisco Guilherme Bittencourt, filho do coronel João de Farias (que teria usado mão de obra escrava no seu engenho), foi nomeado o primeiro intendente (espécie de prefeito) de Atalaia, em 1890, após o fim do Império do Brasil, na época da Primeira República. O capitão foi o trisavô de Collor e faleceu em 1914.

O município de União dos Palmares, onde hoje se localiza o Parque Memorial Quilombo dos Palmares, foi criado a partir do desmembramento de Atalaia em 1831.

Edição:
Jean-Baptiste Debret/Domínio Público/Matheus Pigozzi/Agência Pública
Wikimedia commons/Senado Federal/Matheus Pigozzi/Agência Pública
wikimedia commons/ Wellington Da Costa Gomez/Matheus Pigozzi/Agência Pública

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Quer entender melhor? A Pública te ajuda.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes