Na tarde de 24 de maio de 1997, a redação do Diário Popular, no centro de São Paulo, foi sacudida com a chegada do repórter Josmar Jozino, que trazia na mão um pedaço de papel amarrotado e soltava gritos de “consegui!”, consegui!”, acompanhado de palavrões os mais variados, como se tivesse lutado por aquilo durante meses.
Ele só parou quando chegou ao chefe da editoria de Polícia, Gilberto Lobato, o Giba, que fez a pergunta de sempre:
“A história é boa?”.
“Consegui o Estatuto do PCC”, respondeu Josmar, entregando o papel amarfanhado com 16 itens e regras da fundação do Primeiro Comando da Capital, o PCC, obtido na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, no interior do estado, que ficaria conhecido posteriormente como berço da organização criminosa.
“Um agente da Casa de Detenção conseguiu e me passou”.
O estatuto começava falando de “Luta pela liberdade, justiça e paz”, mas já deixava claro os métodos violentos da organização: “Aquele que estiver em liberdade ‘bem estruturado’, mas esquecer de contribuir com irmãos que estão na cadeia, será condenado à morte sem perdão”, dizia.
Aquele documento, conseguido quase 30 anos atrás pelo repórter, já trazia revelações aterradoras sobre aquela que se tornaria a maior organização criminosa do país. Revelava que o PCC, naquela altura, já estava estruturado o infiltrado, “em todo o sistema penitenciário do estado”, e que, a médio e longo prazo, alcançaria todos os estados brasileiros e até fora do país, com operações na Europa e na África, por exemplo. O trunfo era uma “coligação” com o temido Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro.
“Iremos revolucionar o país de dentro das prisões e o nosso braço armado será o ‘terror dos poderosos’”, afirmava o estatuto.
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No dia seguinte, o Diário publicou o documento na íntegra, com a manchete “Partido do crime agita cadeias”. Era a primeira vez que um jornal impresso publicava o estatuto, que já circulava entre as celas desde 31 de agosto de 1993, data da fundação do PCC, de modo sigiloso. No dia 26, a Folha de S. Paulo também publicou o documento.
Pressionado, o então secretário da Administração Penitenciária, João Benedicto de Azevedo Marques, convocou uma entrevista coletiva e brigou com a realidade: “Tudo isso não passa de ficção. Em São Paulo não existe crime organizado”, disse na época. A fala é registrada no primeiro livro de Josmar, chamado “Cobras e Lagartos”.
Por que isso importa?
- O perfil do jornalista Josmar Jozino, o primeiro a revelar o estatuto do PCC, traça um histórico da maior organização criminosa do Brasil e reflete sobre os desafios da cobertura noticiosa policial no país.
Organização criminosa cobrava mensalidades em troca de proteção
Nas reportagens que foi escrevendo ao longo dos anos, Josmar foi descobrindo as características de funcionamento do PCC. A organização cobrava mensalidades aos seus filiados para oferecer algum direito ou proteção nas cadeias e fora delas.
Segundo Josmar, “cada soldado do comando em liberdade era obrigado a contribuir com R$ 500 por mês. Quem estivesse fora da cadeia, que se virasse para arrumar o dinheiro, roubando, traficando ou pedindo emprestado”.
“O PCC precisava de muito dinheiro em caixa para contratar advogados, montar centrais telefônicas, financiar fugas, patrocinar resgates, corromper policiais e funcionários do sistema prisional, adquirir armas, comprar drogas e proporcionar algum conforto para as primeiras-damas, que eram as mulheres de fundadores do Partido”, diz.
Josmar também descobriu que os negócios da organização prosperavam muito fora das cadeias. Atualmente, estima-se que a organização tenha cerca de 40 mil integrantes, e atue em 24 países, enviando drogas, especialmente cocaína.
“Já está atuando como máfia. Tem conexões com a Camorra, na Itália”, diz Josmar, que continuou cobrindo a atuação do PCC ao longo de sua vida.
Aos 67 anos, Josmar já acompanhou duas megarrebeliãos em cadeias lideradas pelo PCC e publicou três livros sobre a organização. Ele avalia que o PCC é “hoje uma organização muito mais poderosa, porque se enraizou no sistema, evoluiu na criminalidade, e atua no Brasil e no exterior”.“Executaram um ex-aliado em pleno Aeroporto Internacional de Guarulhos, com o apoio de vários policiais, entre civis e militares”, diz, mensurando a força criminosa da organização.
Um furo de reportagem nas férias
Josmar Jozino estava de férias com a família, em Ilhéus, litoral sul da Bahia, próximo à piscina, quando o celular tocou. Era quase hora do almoço, do dia 18 de fevereiro de 2001.
“E aí, meu. Aqui é o Lucien. Firmeza? O Partido vai tomar a cadeia aqui na Penitenciária e na Detenção, tá ligado? Então avisa aê pra tua redação, mano, e avisa que outras cadeias vão virar também, entendeu?”, disse a fonte do PCC.
Meia hora depois, já no quarto do hotel, a vinheta do plantão da Rede Globo interrompia a “programação normal” para informar que 16 presídios de São Paulo estavam nas mãos de integrantes do PCC, que tomaram funcionários e visitas como reféns.
Até o final do dia, outros 25 presídios e quatro cadeias públicas também foram tomadas pelos presos. O motim foi notícia internacional, em vários países da Europa e Estados Unidos.
“O PCC decidiu mostrar a cara”, diz Josmar. “Foi uma demonstração de força. Os presos fizeram pichações, pintaram o nome da organização nos pátios, exibiram bandeiras. Tudo isso foi filmado e exibido ao vivo, e saiu em todos os jornais”, lembra.
Dois dias depois, o PCC ganhou mais de 500 adeptos, só na Penitenciária do Estado, e outros 700 na Casa de Detenção, de acordo com Josmar.
Segundo o jornalista, em Franco da Rocha, Piraju, Campinas, Araraquara, e no Centro de Detenção Provisória, novos batismos também aconteceram. Muitos detentos exibiam camisetas com o slogan PJL (Paz, Justiça e Liberdade).
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Nos anos seguintes, num trabalho sem alarde e persistente, Josmar continuou fazendo reportagens de fôlego, aumentando as fontes, mostrando como o PCC se transformou em uma poderosa, violenta e milionária organização criminosa, infiltrada em vários setores da sociedade, inclusive no Judiciário.
No dia 12 de maio de 2006, após a remoção de 756 presos ligados à facção para à penitenciária de segurança máxima Presidente Venceslau, o PCC partiu para seu ataque mais brutal, começando uma onda de motins, ataques contra policiais, delegacias, tudo o que representasse segurança pública. Nos dias seguintes, foram assassinados 59 agentes públicos. A Polícia também saiu matando: 505 civis perderam a vida, e 110 ficaram feridos. Mais da metade eram negros e pardos, e apenas 6% tinham algum antecedente criminal.
São Paulo viveu dias de terror. Comércio e escolas fechados, 60% da frota de ônibus não saiu das garagens, e 300 reféns nos presídios.
A rebelião terminou subitamente, dia 17, após uma negociação do Governo do Estado, com a cúpula do PCC.
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Josmar era repórter do Jornal da Tarde, do Grupo Folha. Ele assinou a manchete do dia: “‘São Paulo sob o domínio do terror”.
“Após a segunda megarrebelião, eles criaram novas células, descentralizaram o poder, e passaram a exercer o tráfico de drogas como principal atividade. Hoje, o PCC é o maior exportador de cocaína para a Europa. Para as autoridades, já é uma máfia, que já se infiltrou no transporte público, administrações municipais, postos de combustíveis, hotéis, até banco digital, em Fintechs [empresas de tecnologia que atuam no mercado financeiro], lavando dinheiro no Brasil e no exterior”, disse Josmar à Agência Pública.
Em sua pequena redação, em casa, sem aquele tumulto das redações que tanto gostava, Josmar Jozino segue a todo vapor, fazendo o que mais gosta: escrever reportagens.
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“Não falo mais com presos ou bandidos. Antes, eles ligavam dos presídios para as redações. Hoje, os celulares são bloqueados. Eu falo com fontes. Promotores, juízes, delegados, advogados, pessoas das mais diversas. Eu falo com deus e o diabo. Agora, é preciso saber quem é deus e quem é o diabo. Às vezes, deus é o diabo, e o diabo é deus.”
Ameaçado de morte
Em 23 de junho de 2003, Josmar estava no Diário de São Paulo (ex-Diário Popular), na editoria de Polícia, quando foi informado que o jornal recebera uma carta com ameaças a nove pessoas que eram consideradas “inimigas” do PCC. Uma delas era “o repórter caveirinha”.
Ele estranhou, porque o crime organizado não faz ameaça. “Vai lá e executa”, diz. O diretor de redação, Orivaldo Perin, não quis conversa. “O jornal já contratou escolta para acompanhá-lo dia e noite, em serviço e fora do horário de trabalho”, disse.
Para piorar, o jornalista José Luiz Datena, que tinha um programa de grande audiência, na TV Bandeirantes, divulgou com destaque a carta, dando todos os nomes, dizendo que o repórter caveirinha já teria até saído do Brasil.
“Minha vida mudou completamente. Um segurança armado acompanhava quase todos os meus passos, dia e noite. Isso durou cinco meses “, lembra. Em resposta, o PCC divulgou um manifesto, de duas páginas, “deixando bem claro que a referida carta não partiu de nenhum componente do partido”.
Passados quatro longos dias sem ir à redação do jornal, e já não suportando o tédio por não trabalhar, Josmar ligou o computador e resolveu retomar a escrita do livro “Cobras e Lagartos”, sobre o PCC, que vinha tocando nas poucas horas de folga. Ele foi em busca das mulheres de líderes e ex-líderes do PCC, para escrever um livro sobre o partido do crime.
“Cobras e lagartos – A vida íntima e perversa nas prisões brasileiras”, foi publicado em 2005, pela prestigiada Editora Objetiva. “A história do crime não se contará sem referência a este livro”, disse, na época do lançamento, o cientista e ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares.
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Em 2008, Josmar publicou “Casadas com o crime”. O livro é baseado em histórias reais de mulheres que passaram suas vidas atrás das grades ou na fila de visitas de maridos, filhos e filhas presos, em penitenciárias do Estado de São Paulo, mostrando as condições do sistema carcerário brasileiro. Seu último livro, “Xeque-Mate”, publicado em 2012, revela o cotidiano da violência policial, e o poder sem fronteiras do crime organizado.
Vida de repórter
Josmar Jozino segue a todo vapor no jornalismo, no arejado escritório, instalado no primeiro andar de sua casa, em Itaquera, Zona Leste de São Paulo.
“É minha redação”, diz. É ali que continua recebendo telefonemas, ligações, mensagens pelo WhatsApp com denúncias, documentos, além de convites para mesas, debates jornalísticos, participação em podcasts e entrevistas sobre o PCC. Ele recusa quase todos.
“O que gosto mesmo é de escrever minhas reportagens”, diz.
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Há cinco anos, ele é colunista do portal UOL. O tema do PCC é recorrente em seus textos. Em 24 de janeiro, o título da da coluna parecia resumir o que ele vem apurando e escrevendo, ao longo dos anos: “Câncer do PCC assola sociedade e sofre metástase na PM”.
A frase poderia ser de Josmar, mas é da tenente da Polícia Militar de São Paulo, Maria Carolina de Brito Lima.
Quando começou a cobrir o PCC, Josmar era chamado, pelos amigos do Diário Popular, de “caveirinha”. O apelido se referia à sua figura magra, mantida graças a uma alimentação desregrada e três maços de cigarro por dia. Ele trabalhou dois anos no Diário, entre 1998 e 1990, e saiu para uma nova experiência em rádio, como redator-editor. Mas sua obsessão sempre foi o jornal. Tanto que voltou à redação do Diário, em 1995.
As redações daquele tempo ainda eram ambientes movidos a cigarro e café, com os telefones tocando ininterruptamente. A região metropolitana de São Paulo tinha, na época, 93 Distritos Policiais, quase todos com carceragens entupidas de presos, em condições precárias, e graves violações de direitos. Ao final do ano de 1995, 7.320 pessoas foram assassinadas, na Região Metropolitana, um novo recorde, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.
“Jozino sabia a linguagem das ruas. Sabia suas demandas. Respeitava seus interlocutores com humildade. E por isso tornou-se um dos grandes”, diz o jornalista Plínio Delfino, atualmente chefe de reportagem da TV Cultura, que entrou no Diário Popular em 1996, como estagiário, na época como 25 anos.
“Acredito que esse perfil me ajudou a conquistar a confiança de dezenas de mulheres de presos e agentes penitenciários, principalmente aqueles preocupados com a falência e as mazelas do sistema penal paulista. Sem essas fontes importantes, jamais teria iniciado as reportagens policiais investigativas, sobretudo as ligadas ao PCC”, diz Josmar.
Xico Sá, depois de muitos anos na Folha de S. Paulo, chegou ao Diário Popular em 2000, quando Josmar já era reconhecido e admirado. É um dos maiores repórteres que vi, em atuação e apuração”, diz.