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“Só vejo uma imagem escura”, disse promotor do MPSP se referindo à imagem em vídeo de Gabriel Jesus durante audiência

Reportagem
15 de abril de 2025
04:00

Gabriel Jesus foi preso após ser acusado injustamente de ter furtado uma corrente na praia Cidade Ocian, em Praia Grande, no litoral paulista, em 17 de novembro de 2024. Na ocasião, o jovem de 18 anos afirmou que viu uma correria no calçadão e pensou que fosse um arrastão, mas acabou sendo preso ao tentar se proteger no mar.

Um vídeo obtido com exclusividade pela Agência Pública mostra a audiência que deu a liberdade a Gabriel Jesus, que é pintor. Ele foi absolvido depois que a vítima do furto pelo qual era acusado não o reconheceu na audiência de instrução, em fevereiro deste ano. No entanto, o jovem já havia cumprido três meses de prisão provisória, em virtude de um reconhecimento equivocado que ocorreu na delegacia, no dia da prisão.

Por que isso importa?

  • Jovem foi preso injustamente por um crime que não cometeu. O racismo marca vários capítulos da história.
  • Defesa de Gabriel Jesus diz que tanto a prisão como o reconhecimento errôneo do jovem como autor do furto foram atos racistas.

“O senhor consegue ver nitidamente quem está na tela? Eu não consigo, só vejo uma imagem escura”, questionou Caio Adriano Lépore Santos, promotor de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), à vítima do furto na Praia Grande. A pessoa a quem o magistrado se referia era Gabriel.

A vítima respondeu ao promotor: “No meu aparelho, está aparecendo nítida a imagem”. Santos, na sequência, retrucou se a imagem do jovem negro era vista. “Com essa imagem, você consegue ver o rosto dele? […] Eu não consigo ver absolutamente nada”, disse Santos. “Sim, dá para eu ver perfeitamente aqui na imagem […] Eu afirmo que não é a pessoa”, respondeu a vítima.

Para o advogado de defesa do jovem, Renan Lima, o questionamento do promotor teve um “cunho racial absurdo”. “Para Gabriel, que já havia tido sua liberdade arrancada injustamente, ouvir uma fala que reduzia sua existência a algo insignificante, um ‘ponto’ sem identidade, sem rosto, sem história, foi mais um golpe”, avaliou Lima.

Quando ouviu o promotor descrevendo o vídeo dele, dizendo que via apenas uma “imagem escura”, Jesus reagiu: “Quis até mudar minha cor. Não é a primeira vez que alguém faz isso, eu não aguento mais não, passar por isso”, em referência aos episódios racistas que sofreu desde a prisão.

“Isso aí é desumano, não pode acontecer com ninguém […] E tratou o meu filho de uma forma diferente, falando que não está enxergando ele por quê? Porque ele é preto, ele [promotor] não tá me enxergando? Isso é racismo”, disse a mãe de Jesus, a auxiliar de cozinha Sabrina Oliveira, 39 anos.

O MPSP negou que a afirmação do promotor tivesse cunho racial. Por nota, o órgão afirmou que “no caso em tela, dada à falta de nitidez da imagem, já que se tratava de uma audiência virtual, o promotor tomou todas as cautelas com o propósito de evitar que ocorresse o reconhecimento de alguém que não havia cometido o delito ou a liberação de um suspeito que de fato fosse o autor do crime, duas situações que o Ministério Público tem o dever constitucional de repelir”.

No texto, o MPSP também informou que “o promotor de Justiça Caio Lepore agiu no estrito cumprimento de seu dever funcional na audiência de instrução mencionada, envidando todos os seus esforços para esclarecer os fatos, nada além disso. Qualquer suposição em contrário expressa desconhecimento sobre a trajetória do promotor, que sempre pautou sua atuação pela defesa dos Direitos Humanos, uma marca do Ministério Público de São Paulo.”

Preso injustamente

O racismo marca vários capítulos da história da prisão de Gabriel Jesus. No dia em que foi preso, ele tentava se proteger de uma confusão na praia, que pensou ser um arrastão, quando foi abordado por um policial. “Fiquei junto das famílias, aí veio o policial e falou: ‘tá roubando, né?’ Aí, eles [PMs] me algemaram e me levaram”, contou Jesus à reportagem. “Eu acho que eles [policiais] se confundiram por causa da minha cor”, disse.

A confusão na praia tinha sido causada por um furto no calçadão. De acordo com depoimento da vítima do furto na audiência de instrução, assim que ele estacionou o carro e dirigiu-se para a faixa de areia, teve o seu cordão, banhado a ouro, furtado por um suspeito de bicicleta, na companhia de outros garotos. No mesmo instante em que o seu colar foi levado, ele voltou ao seu automóvel e tentou realizar uma perseguição por conta própria, quando colidiu em um poste.

Policiais militares, do 45º Batalhão de Polícia Militar do Interior (BPM/I), passavam pela avenida presidente Castelo Branco, local onde o furto ocorreu, quando se depararam com o acidente e foram informados pela vítima do crime que tinha acabado de acontecer.

Incumbidos de localizar o autor do crime, os policiais passaram a procurar por suspeitos. À Polícia Civil, os PMs disseram que Gabriel Jesus e outro suspeito tentaram fugir ao esconderem-se no mar, mas sem apontar o motivo deles serem os principais suspeitos. Jesus nega esta versão.

A perseguição a Jesus foi cinematográfica. Contou com a atuação do helicóptero Águia, do Comando de Aviação da Polícia Militar (CAvPM), que é uma aeronave utilizada em situações de extrema periculosidade ou salvamento, além de um cerco policial com motos e viaturas. Gabriel Jesus foi preso dentro do mar pelos policiais militares, que contaram, em depoimento à Polícia Civil, que o jovem teria se entregado e confessado “haver furtado uma corrente de ouro momentos atrás, alegando, no entanto, haver entregado o produto da infração para o seu comparsa após desconfiar que o objeto não fosse realmente de ouro”. Jesus nega que tenha confessado o crime.

“Pelo que eu me lembro, [os policiais falaram] ‘coloca a mão na cabeça, senão, eu vou atirar’. Aí eles me deram um ‘rodo’ [uma rasteira]”, relembrou Jesus. “Depois veio um senhor, da população, e me deu um tapa na cara […] A pessoa não sabia nem o que era, se era verdade, foi lá e me agrediu”, concluiu.

Assim que a prisão ocorreu, o jovem pintor foi retirado do mar. Ele se deparou com banhistas que comemoravam, aplaudiam e gravavam a ação da PM.

Jesus foi colocado no porta-malas da viatura e levado ao 1º Distrito Policial (DP) da Praia Grande, onde o Boletim de Ocorrência (B.O) foi registrado. No entanto, segundo o jovem, ele não teve a oportunidade de se defender diante do delegado Marcello Costa Leme Walther, embora o B.O registre que o pintor “se reserva o direito de permanecer em silêncio, não respondendo às perguntas que lhe forem formuladas”. A versão do B.O é contestada por Jesus, que afirmou que “eles [policiais civis] não deixaram eu falar”.

Atos racistas na prisão e no reconhecimento

No 1º DP da Praia Grande, a vítima do furto foi apresentada a Gabriel Jesus para que fizesse o reconhecimento. “Na delegacia, perguntaram: ‘é esse o menino? ele que pegou a sua corrente?’ Aí eu, no nervosismo, achando que era, respondi que sim”, disse a vítima do furto, na audiência de instrução.

Para justificar a suposta confusão e acusação de Jesus como o autor do crime, a vítima respondeu ao promotor Caio Santos que “quem aqui já foi na Praia Grande sabe que todos os meninos que andam de bicicleta tem o mesmo porte físico, o mesmo visual, corte de cabelo e eu acabei me enganando [no reconhecimento]”.

O advogado de defesa de Jesus diz que tanto a prisão como o reconhecimento errôneo do jovem como autor do furto foram atos racistas. “O caso do Gabriel é um caso típico e não à parte. Existe uma série de pessoas que, infelizmente, sofrem esses falsos reconhecimentos, principalmente pela cor de pele”, avaliou Renan Lima. 

A audiência de custódia ocorreu no mesmo dia. O juiz Vinícius de Toledo Piza Peluso, da Comarca de Santos, optou pela manutenção da prisão preventiva, em virtude do suposto furto de uma corrente, em que foi necessário “o uso de helicóptero policial, tendo praticado o crime em plena praia durante a luz do dia, durante feriado nacional com grande movimentação turística na cidade” e que “por si já demonstra a periculosidade e ousadia do agente e a inobservância das regras elementares de convivência social”. 

O advogado de defesa critica o “argumento de ter utilizado o apetrecho público, o suposto Águia, não é fundamento por si só para manter alguém preso, mas, pelo contrário, isso faz parte do ofício da Polícia Militar.”

Exposto na mídia

Quando chegou ao Centro de Detenção Provisória (CDP) da Praia Grande, o jovem disse que os carcereiros o reconheceram e disseram: “foi tu, né? Tu que fugiu pra água lá, né?”. Segundo Jesus, eles já tinham conhecimento do caso, porque as imagens gravadas por quem estava na praia já haviam chegado à imprensa.

Um vídeo da atuação do helicóptero Águia, que fazia um voo rasante, na tentativa de ajudar na captura de Jesus, foi publicado pelos veículos de imprensa locais e reproduzido pela Rede Bandeirantes de Televisão. “A Polícia Militar prendeu um ladrão que tentou fugir pelo mar […] Esse [tipo de] bandido é comum, viu?”, narrou o apresentador da Band.

“Por ora, eu mandei um e-mail para que eles se retratem. Eles denominaram o Gabriel como bandido no dia dos fatos e eles não podem fazer isso.” ponderou o advogado Renan Lima, que também entrou com uma ação por danos morais contra o Estado de São Paulo.

A rotina do jovem pintor foi afetada após a repercussão do caso na mídia. “Eu vou de bicicleta [para o trabalho] e um monte de gente fica olhando, acho que eles pensam que eu roubei mesmo, pela reportagem que eles viram”, disse.

Desde que deixou o CDP da Praia Grande, o pintor tem evitado sair de casa até mesmo para se divertir. “Eu ando com um olho atrás e outro na frente, vai saber se o cara está na maldade”.

O tom de preocupação é manifestado até mesmo pela mãe dele, que disse ter procurado os agentes comunitários de saúde do bairro onde vivem, em uma favela da Praia Grande, para que o filho comece um tratamento psicológico, em virtude do trauma vivido. “Eu ainda acho que o Gabriel não tá com a cabeça muito boa, você vê que ele não tá sabendo nem conversar direito”, contou Sabrina Oliveira.

Após a prisão, o pintor afirma ter sido abordado por policiais militares em duas oportunidades e em uma delas, mais uma vez foi alvo de racismo: “Eu fui na praia com um amigo, quando estava voltando os policiais me enquadraram e falei que tinha acabado de sair [há poucos dias do CDP] e um policial disse: ‘vc está querendo roubar né, neguinho?’”. Jesus foi categórico em dizer o motivo de ter sido abordado na ocasião. “É por causa da minha cor mesmo”, disse ele.

“O caso de Gabriel é um reflexo claro do racismo estrutural presente no sistema de justiça criminal brasileiro. A seletividade penal faz com que jovens negros e periféricos sejam mais visados pelas forças de segurança, tenham menos acesso a uma defesa qualificada e sejam, com frequência, presos sem provas concretas, apenas com base em suposições ou abordagens arbitrárias”, apontou o advogado Renan Lima.

A Secretaria de Segurança Pública (SSP), sob a gestão do secretário Guilherme Derrite (PL-SP), disse que “as corregedorias das Polícias Civil e Militar permanecem à disposição para registrar e apurar toda e qualquer denúncia contra seus agentes. Ambas as instituições repudiam desvios de conduta e excessos praticados por seus policiais, punindo com rigor aqueles que violam os procedimentos operacionais ou a legislação”.

[Leia a nota na íntegra].

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