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Sínodo de 2019 mudou visão da Igreja; exortação“Querida Amazônia” traz quatro sonhos de Francisco para a região

Reportagem
2 de maio de 2025
04:00

Àquela altura, papa Francisco já havia deixado claro que a questão ambiental era uma de suas maiores preocupações. Quando estava encerrando uma missa especial de canonização de novos santos, em 15 de outubro de 2017, ele anunciou a convocação de um sínodo para o ano seguinte. O tema do encontro seria a região amazônica.

“O principal objetivo dessa convocação é identificar novos caminhos para a evangelização daquela porção do Povo de Deus, especialmente dos indígenas, muitas vezes esquecidos e sem a perspectiva de um futuro sereno, também por causa da crise da floresta amazônica, pulmão de grande importância para o nosso planeta”, declarou Francisco.

A notícia animou particularmente ambientalistas, ativistas da causa indígena e, claro, os moradores do bioma. Ao trazer a Amazônia para o centro do Vaticano, Francisco dava uma dimensão do tamanho que a questão representava não só para os oito países dos quais ela faz parte — mas para o planeta e a humanidade como um todo.

Dentro do jargão católico, sínodo é uma palavra muito utilizada. É como são nomeadas as assembleias de tempos em tempos convocadas pelo papa para discutir determinado tema. A palavra vem do grego. O prefixo syn traz o sentido de “junto com”. Hodós, substantivo, significa caminho. Em grego, synodéo é um verbo: fazer um caminho com alguém, caminhar junto.

A novidade de Francisco estava em trazer um tema ambiental para esse debate. O subtítulo da convocação, à guisa de tema, dizia que o encontro buscava “novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”.

De acordo com o historiador Carlos Trubiliano, professor na Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e assistente técnico na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Sínodo para a Amazônia foi “um marco científico-espiritual”. “Veja, a Igreja convocou um sínodo especial, reunindo bispos, lideranças indígenas, cientistas e ambientalistas para discutir a realidade amazônica. São atores sociais discutindo problemas reais que afetam não apenas o recorte geográfico da Amazônia, mas todo o planeta”, comenta.

Ele lembra que ali “foram denunciados a exploração predatória, o desmatamento, a violação de direitos dos povos indígenas e, ao mesmo tempo, propôs-se caminhos para uma ecologia integral, indicando ao mundo uma mudança de paradigma que articulasse a justiça social, preservação ambiental e respeito à diversidade cultural”. “A Igreja passou a reconhecer que a crise ambiental é, em essência, uma crise humana, uma crise ética-espiritual”, define o historiador.

O primeiro legado do sínodo foi a expressão que o tema ganhou: “visibilidade para a Amazônia”

No processo de construção do encontro — os dois anos entre o anúncio e o evento propriamente dito — ocorreram diálogos e escuta com os povos da Amazônia. Assim, antes mesmo dos católicos, os povos originários foram convidados a dar suas perspectivas, seus pontos de vista.

“Ele levantou a bandeira da preservação da Amazônia e o sínodo foi um momento de muita importância. Estivemos presentes”, diz o pedagogo Alberto Terena, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib). “O papa trouxe a questão do meio ambiente e também a luta pela demarcação dos territórios dos povos indígenas, a importância de garantirmos nossos direitos.”

Ao longo do mês de outubro de 2019, o Vaticano recebeu 114 bispos para falar sobre a Amazônia. Milhares de pessoas de todas as partes do mundo também participaram de alguma forma, inclusive representantes de comunidades amazônicas. Pelo menos 50 lideranças indígenas compartilharam suas experiências com a cúpula da Igreja. Mulheres também tiveram voz: foram 40 convidadas a participar dos debates, um número considerável para uma instituição milenar que poucas vezes dá espaço para o pensamento feminino.

Para especialistas, o primeiro legado do sínodo foi a expressão que o tema ganhou. “Ele trouxe visibilidade para a Amazônia. E não foi pouca coisa”, o frade franciscano Marcelo Toyansk Guimarães, coordenador do serviço Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos do Brasil, coordenador nacional da Pastoral da Moradia e Favela e assessor da Comissão Justiça e Paz da seção Sul 1 da CNBB.

“Francisco colocou a pauta ambiental como um tema crucial para a humanidade. Quando a Igreja Católica faz isso, ela deixa a Amazônia em evidência, como elemento central para o século 21”, diz o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Isso obriga que os líderes mundiais tenham de olhar para a Amazônia, desenvolver políticas públicas [para protegê-la]. Porque há uma pressão mundial e agora com um player poderoso pressionando também: a figura do papa, a figura da Igreja Católica.”

Moraes atenta que políticas públicas são derivadas de avanços das discussões. “Quando a Igreja Católica, instituição de peso, entra nesse debate e apoia essa temática, isso faz com que os holofotes estejam voltados para isso. E os ganhos concretos virão ao longo dos anos”, contextualiza ele. Em sua visão, portanto, a maior conquista para o segmento, para os ativistas e para todos os envolvidos, é o fato de a instituição então capitaneada por Francisco ter fincado o pé na causa.

“Foi o primeiro sínodo a trazer o nome de um bioma, refletindo a partir do chão, da vida”, define Guimarães. 

O primeiro cardeal da Amazônia

Steiner: “A Igreja na Amazônia é missionária e leva em consideração a questão do meio ambiente”

O religioso também frisa que a visibilidade trazida para a Amazônia é o primeiro legado deixado pelo evento. E menos de três anos depois, o papa conferiu ao arcebispo de Manaus, Leonardo Ulrich Steiner, uma honraria inédita a um prelado da região. “Ele se tornou o primeiro cardeal da Amazônia”, ressalta o frade. “Isso valorizou a presença eclesial a partir de realidades socioambientais, com seus desafios específicos.”

Um dos 135 membros do colégio que vai, nos próximos dias, escolher o sucessor de Francisco, Steiner é muito ciente dessa responsabilidade. Ele também preside o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), organismo vinculado à CNBB. Em sua avaliação, a principal consequência do sínodo realizado em 2019 foi a confirmação de uma caminhada que já vinha sendo feita “e que se deve fazer”.  “A Igreja na Amazônia precisa de uma participação intensa dos leigos, é missionária e leva em consideração a questão do meio ambiente, da justiça, da importância dos pobres. Está atenta às mudanças”, comenta.

Embora Francisco tenha dado uma ênfase especial ao meio ambiente, o assunto não era uma completa novidade na esfera dos pontificados. O papa Paulo 6º (1897-1978) abordou o meio ambiente em uma carta apostólica publicada em maio de 1971. João Paulo 2º (1920-2005) demonstrou preocupação semelhante em mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990. O antecessor de Francisco, Bento 16 (1927-2022) também demonstrou postura ecológica em encíclica de junho de 2009. “O cuidado com a Casa Comum, a partir dos últimos pontífices, faz parte integrante da Doutrina Social da Igreja”, observa o CIMI, em texto publicado na época do Sínodo para a Amazônia.

Para o cientista político Paulo Niccoli Ramirez, professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, o sínodo de 2019 forçou os religiosos “a terem um maior diálogo com os povos tradicionais e as questões ambientais”.

“O papa foi um grande progressista não só por pensar na diversidade ética e religiosa, mas também por avançar no pensamento que envolve os temas ambientais, principalmente quanto às questões mais urgentes da humanidade, como as mudanças climáticas e o respeito aos povos originários”, ressalta ele.

Encontro durante o Sínodo de 2019, o primeiro a levar o nome de um bioma

Os quatros sonhos do Papa para o bioma 

Todo sínodo deixa como legado um documento, chamado de exortação apostólica pós-sinodal. Baseado no relatório produzido pelos bispos, o papa produz esse texto com as mensagens de destaque do encontro e suas reflexões a partir dela. Em fevereiro de 2020 foi publicada a exortação Querida Amazônia.

No texto, Francisco compartilhou seus “quatro grandes sonhos” para a região. Ele vislumbrava uma Amazônia “que lute pelos direitos dos mais pobres”, “que preserve a riqueza cultural”, “que guarde zelosamente a sedutora beleza natural” e que as comunidades cristãs consigam ser “capazes de se devotar e encarnar na Amazônia”.

Além do magistério concentrado nesse documento, um legado concreto deixado pelo sínodo foi o entendimento que as organizações da Igreja — e, por conseguinte, de outras instituições — podem seguir os vínculos com o bioma, e não necessariamente obedecer às fronteiras político-históricas que se conformam em países.

Assim, em junho de 2020 foi criada a Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA), congregando episcopados de todos os países que formam o bioma. Era uma novidade, já que essas entidades que congregam bispos costumam obedecer às circunscrições territoriais de seus países de origem, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ou a Conferenza Episcopale Italiana (CEI).

“No pós-sínodo tivemos a criação da CEAMA, não pensando só a partir da divisão de estado-nação, a partir das conferências já instituídas, mas pensando a partir da realidade da vida expressa nos biomas”, afirma Guimarães.

De lá para cá, como ele conta, outros exemplos semelhantes têm sido articulados ao redor do mundo em uma “tendência da Igreja de ter olhares de redes eclesiais a partir do chão, da vida, dos biomas”.  “Os biomas são um grande agregador”, reflete o religioso. “Pensar a partir dos biomas, a partir de relações socioambientais, e não somente a partir de divisões históricas, é um avanço que o sínodo nos trouxe.”

Além da criação do Ceama, houve também o fortalecimento de organismos ligados à Igreja com atuação política, religiosa e social na Amazônia. O historiador Trubiliano elenca este ponto como um dos “efeitos práticos” pós-sinodais, lembrando da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam) e do próprio Cimi. Segundo ele, tais entidades “têm apoiado projetos de defesa ambiental e de proteção social, especialmente aos povos indígenas”.

Outro ponto importante diz muito aos católicos — mas tem implicações para todo o planeta. Após o sínodo, Francisco incluiu na doutrina da Igreja um novo conceito de pecado. “Do ponto de vista espiritual, o reconhecimento do pecado ecológico introduziu o entendimento teológico de que destruir a natureza é também uma ofensa a Deus”, ressalta Trubiliano.

Amazônia para os mais pobres, que valoriza a riqueza cultural, protege a beleza natural, promova comunidades cristãs

A partir de então, não zelar pelo meio ambiente se tornou uma questão também de confessionário. “Papa Francisco, no final das contas, propôs uma visão de mundo em que a religiosidade cristã deve estar necessariamente articulada com uma responsabilidade ambiental”, diz Ramirez.

Não é à toa o carinho manifestado a ele por representantes dos povos originários. “Queríamos agradecer a ele, agradecer por esse período”, afirma Terena. “Ele foi um elemento principal para que a nossa pauta tivesse visibilidade. Uma figura importantíssima para protagonizar a necessidade da preservação do meio ambiente, da floresta, da vida e da biodiversidade do planeta.”

“A gente só tem a agradecer por tudo o que ele fez, ajudando a nossa caminhada, dentro das lutas de preservação do meio ambiente, do nosso território, da Amazônia e também das nossas vidas, como povos indígenas”, completa. Caminhada. Em conjunto. A ideia do sínodo, afinal?

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