Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Antes que seja tarde, enviada às quintas-feiras, 12h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.
A votação do projeto de lei que cria uma Lei Geral do Licenciamento Ambiental estava prestes a começar no plenário do Senado quando o Ministério do Meio Ambiente (MMA) divulgou um alerta final. Por meio de nota, avisou que a proposta “representa desestruturação significativa do regramento existente sobre o tema e representa risco à segurança ambiental e social no país” e “afronta diretamente a Constituição”.
Em vão. O texto, considerado por ambientalistas e muitos cientistas como o “PL da Devastação” e a “mãe de todas as boiadas”, foi aprovado no Senado na noite desta quarta-feira (21) por ampla maioria: 54 votos a favor e apenas 13 contra. Após diversos senadores, ao longo de horas, encherem a boca para falar que são, sim, muito preocupados com o meio ambiente, que, sim, é dever de todos preservá-lo. Desde que esse tal meio ambiente não se coloque à frente do desenvolvimento, claro.
Todos vibrando com “uma legislação que possa, verdadeiramente, des-tra-var o Brasil”, como anunciou, marcando a separação das sílabas, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Em oposição ao arcabouço atual que, nas palavras pausadas dele, acabou “in-vi-a-bi-li-zan-do o desenvolvimento da República Federativa do Brasil”.
O senador Magno Malta (PL-ES) chegou a contar uma história – na tentativa de exemplificar um suposto radicalismo dos órgãos ambientais –, de que uma estrada teria deixado de ser construída porque no caminho tinha um ninho de “formigas raras”.
Ao final, foi essa visão equivocada de que a proteção ao meio ambiente é um entrave ao crescimento do país que prevaleceu entre os senadores. Apenas dois deles, Fabiano Contarato (PT-ES) e Leila Barros (PDT-DF), pediram a palavra para se opor. Contarato citou o padre Julio Lancellotti ao reconhecer que não havia chance de virar o jogo: “Eu não luto para vencer, eu sei que vou perder. Eu luto pra ser fiel até o fim”.
Imagino que parte da imprensa vai abordar o assunto como uma derrota da ministra Marina Silva. Não deixa de ser. Marina ficou sozinha no governo defendendo que se trata de “um grande retrocesso e um desmonte do processo de licenciamento”. Verdade que o PT chegou a orientar sua bancada a votar não – foi o único partido a fazer isso–, mas o governo teve de liberar os senadores da base aliada ao não conseguir chegar a um consenso com os outros partidos.
Só que não é Marina quem perde. É o país. Porque o licenciamento não é pelas formigas, senador Malta. É para evitar desastres ambientais que tiram vidas, é para evitar riscos à saúde causados por poluição, pelas mudanças climáticas – que, aliás, nem são mencionadas no texto.
Acho sempre útil lembrar como surgiu o licenciamento ambiental no país – como parte da Política Nacional de Meio Ambiente, de 1981. No fim dos anos 1970, havia um caldeirão fervilhante no país jogando gases e líquidos poluentes no ambiente: o complexo industrial de Cubatão, na Baixada Santista.
Sem nenhum tipo de controle sobre esses efluentes, ar e rios estavam sendo contaminados, o que levou a diversos problemas de saúde, inclusive o nascimento de diversos bebês anencéfalos.
É esse tipo de situação que o licenciamento ambiental ajudou a evitar que se repetisse no Brasil. Por outro lado, licenciamentos mal feitos ou com baixo controle por parte dos órgãos regulares também resultaram em tragédias socioambientais, como os rompimentos de barragens de Mariana e Brumadinho.
Com o passar dos anos, o processo foi se tornando moroso, burocrático, complicado. Com leis diferentes em estados e municípios. Com exigências grandes para empreendimentos simples. Foi daí que começou a se defender a elaboração de uma lei nacional para dar as diretrizes básicas do licenciamento, simplificando e agilizando onde possível, mas sem comprometer o rigor para evitar esses desastres. Mesmo entre ambientalistas há a noção de que era possível melhorar o processo.
Mas não foi um texto assim que passou no Senado nesta quarta. Após 21 anos de tramitação, temos um projeto que flexibiliza tanto que, em vez de regra, parece que o licenciamento virou exceção. Ele aumenta as possibilidades de isenções e de auto-licenciamento que tinham sido incluídas no PL que foi aprovado em 2021 na Câmara.
Depois de passar os últimos anos meio em banho-maria no Senado, que deu uma segurada na boiada defendida pelo agronegócio e pela indústria, com forte apoio do então governo de Jair Bolsonaro, a tramitação retomou o ritmo de urgência neste ano, depois de Davi Alcolumbre assumir a presidência na Casa.
Foi sua forma nada sutil de pressionar o governo para conseguir liberar a perfuração de petróleo na Foz do Amazonas, no litoral de seu estado, o Amapá.
Sob relatoria de Tereza Cristina (PP-MS), na comissão de agricultura, e de Confúcio Moura (MDB-RO), na comissão de meio ambiente, o texto acabou evoluindo para pior, na análise não só de ambientalistas, mas de entidades como a Fiocruz, além do próprio MMA.
O que já tinha sido flexibilizado na Câmara, como a possibilidade de empreendimentos de pequeno porte e pequeno potencial poluidor fazerem a chamada Licença por Adesão e Compromisso ou LAC, foi ampliado. Na prática, o empreendedor preenche um documento dizendo que vai fazer tudo direitinho – uma coisa meio “la garantia soy yo”. Não há estudo de impacto ambiental nem análise prévia por parte do órgão licenciador.
Isso até pode fazer bastante sentido para pequenos empreendimentos que não trazem muitos riscos ambientais. Mas o Senado foi além e ampliou essa possibilidade para empreendimentos de médio porte e médio potencial poluidor. E quem vai definir se eles se encaixam nessa categoria é a autoridade licenciadora – no caso, estados e municípios. O que, na visão dos críticos, é algo que pode abrir margem para uma guerra ambiental, com cidades baixando a régua para receber negócios.
Em sua manifestação, Contarato disse que seria incluída, por incrível que pareça, nesse critério de médio potencial poluidor, a barragem de Mariana, cujo rompimento, há quase dez anos, provocou 19 mortes, a destruição de comunidades e a contaminação do Rio Doce, com os rejeitos chegando até o oceano Atlântico. “Estamos falando de autolicenciamento para tragédias como aconteceram em Mariana”, disse o senador.
Ecoando o que disse o Ministério do Meio Ambiente em nota, Contarato lembrou que o artigo 225 da Constituição garante aos cidadãos brasileiros o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. “Quem exerce isso é o Estado, e uma das formas de garantir isso é o licenciamento ambiental”, afirmou.
A visão dele e de especialistas em direito ambiental é que o PL pode acabar aumentando as possibilidades de judicialização, visto que o STF já considerou que somente é constitucional o uso da LAC, que é adotada em alguns estados, para empreendimentos de pequeno porte e de baixo impacto.
Tereza Cristina, que fez a relatoria do PL durante a sessão, trucou, ao dizer que o STF só teve esse entendimento porque não havia uma lei federal contemplando o assunto.
Ela rebateu, ainda, o que chamou de “narrativas ideológicas de pura má fé”. Disse que a proposta não enfraquece o licenciamento, que ela reafirma o “compromisso com o rigor técnico”, que o licenciamento continua seguindo as três fases atuais para grandes obras e que o PL dobra as penas para quem comete crime ambiental.
“Supressão de vegetação continua proibido sem licença”, disse em referência à preocupação de que o PL leve a um aumento de desmatamento. “Crime ambiental continua sendo crime ambiental”, complementou. Ainda disse que dormiria com a consciência tranquila nesta noite.
Certo. O ideal, porém, seria evitar, em primeiro lugar, que se chegasse ao crime, à tragédia ambiental, né?
E difícil não imaginar que a lei pode, sim, levar a mais desmatamento. O texto inclui no rol dos empreendimentos dispensados de licenciamento ambiental a manutenção de “rodovias anteriormente pavimentadas” ou “previamente existentes”. É um item com alvo certo: o asfaltamento da BR-319, que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM), demanda antiga dos dois estados.
Essa rodovia foi aberta e asfaltada ainda na ditadura, mas ela era pouco usada, não houve manutenção e acabou tomada pelo mato. Dos seus quase 900 km, cerca de 400 km, no chamado “trecho do meio”, são de terra, com condições de tráfego às vezes impossíveis.
O problema é que, historicamente, fazer rodovia na Amazônia sempre foi sinônimo de desmatamento no entorno. E a área que a 319 corta é uma das mais preservadas da Amazônia. No governo Bolsonaro foi concedida uma licença-prévia para realização do asfaltamento, mas antes mesmo de a obra começar, sua mera expectativa já tinha feito o desmatamento em seu entorno mais que dobrar entre 2020 e 2022. Pode quadruplicar ao longo das próximas três décadas, segundo estimativa de pesquisadores da Universidade Federal de Minas.
A obra está judicializada, mas se o PL virar lei, é de se imaginar que ela rapidamente vai ser liberada.
Destaque à parte merece também o presidente do Senado. A sessão plenária desta quarta, conduzida por Alcolumbre, foi seu palco para botar ainda mais pressão sobre o tema. Horas antes da votação, ele apresentou uma emenda ao texto, prontamente aceita por Tereza Cristina, que criou uma nova modalidade – a Licença Ambiental Especial (LAE) –, voltada para facilitar a aprovação de atividade ou empreendimento considerado estratégico pelo governo federal.
Detalhe: pela proposta isso seria válido mesmo que o empreendimento seja “utilizador de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente”. Ambientalistas viram nisso um atalho para aprovar projetos polêmicos, como a tão desejada por Davi Alcolumbre exploração de petróleo na Foz do Amazonas. Não é à toa que há quem veja no projeto o maior retrocesso dos últimos 40 anos.
Como sofreu modificações, o texto volta agora para a Câmara, onde se imagina que vai ser rapidamente aprovado, seguindo depois para sanção ou veto do presidente Lula. Mas mesmo se ele vetar, é quase certo que o Congresso derrube o veto depois.