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Não é confortável, eu sei, mas você costuma pensar de onde vem o algodão da roupa que você veste, ou onde foi criado o boi que virou o bife no seu prato? Qual foi o caminho do campo até seu guarda-roupa, até sua cozinha? Se você soubesse que houve alguma irregularidade em algum ponto dessa produção, você deixaria de comprar esses produtos?
É mais ou menos nisso que apostam dois estudos elaborados a partir de investigações de ONGs ambientalistas divulgados nesta semana. Quer dizer: mais do que apontar o dedo diretamente para quem está no fim dessa cadeia – eu, você, o consumidor comum –, eles jogam luz sobre as relações entre possíveis crimes ambientais e os fornecedores. Ou entre esses crimes e suas fontes de financiamento. Com a expectativa de que, ao revelar essas relações, seja possível combatê-los, ou ao menos para inibi-los.
O primeiro estudo, lançado nesta segunda (8), pelo Greenpeace, revelou que bancos privados e públicos, como Banco do Brasil, Caixa e Banco da Amazônia, têm concedido crédito rural para milhares de propriedades na Amazônia com algum tipo de irregularidade, como sobreposição com unidades de conservação e terras indígenas, envolvimento com grilagem e desmatamento. Muitas delas estavam, inclusive, embargadas pelo Ibama, o que deveria ser um impeditivo automático para a concessão do crédito.
De acordo com o levantamento, 41 imóveis financiados estão em áreas de proteção integral, onde, pelas regras do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, não pode haver nenhuma atividade econômica.
Foram também identificados entre os beneficiários de crédito rural 24 imóveis que ficam dentro de sete territórios indígenas, como os Kayabi (MT), Urubu Branco (MT), Amanayé (PA), Rio Omerê (RO), Arariboia (MA), Alto Rio Guamá (PA) e os Uru-Eu-Wau-Wau (RO). Essas áreas são de uso exclusivo dos povos indígenas.
O trabalho detalha 12 casos específicos que, juntos, receberam mais de R$ 43 milhões em crédito rural e somam diversas irregularidades socioambientais na Amazônia. Recomendo a leitura de uma reportagem da Folha bem completa sobre o estudo, trazendo, inclusive, o posicionamento dos bancos, que dizem estar fazendo sua parte para evitar esse tipo de situação e que alguns dos créditos já foram cancelados. O Greenpeace, porém, identificou casos ainda em andamento.
Ainda sobre esse estudo, recomendo também a leitura de reportagem do site Infoamazonia, que mergulhou no caso dos Uru-Eu-Wau-Wau.
Talvez você possa estar pensando que não têm muito a ver com cada um de nós as decisões que os bancos tomam. Bem, tem banco público na parada. E lembre-se de que também é com o dinheirinho guardado de cada correntista que se faz boa parte dessas operações.
Mas o segundo relatório lançado nesta semana talvez mexa um pouco mais com os brios de quem se preocupa com a própria responsabilidade sobre como os seres humanos estão arruinando o planeta.
“Crimes da Moda”, elaborado pela ONG britânica Earthsight, investigou a cadeia do algodão que abastece gigantes internacionais de roupas, como a Zara e a H&M. De acordo com o levantamento, as marcas usam algodão produzido pelas empresas Grupo Horita e SLC Agrícola, instaladas no oeste da Bahia, em região de Cerrado, e que têm histórico de denúncias de desmatamento e grilagem.
O desmatamento no bioma vem crescendo nos últimos anos, e onde o problema mais avança é justamente na região conhecida como Matopiba (que envolve partes de Maranhão, Tocantins, Piauí e o oeste baiano).
O relatório destaca que a H&M e a Inditex, dona da Zara, são as maiores empresas de vestuário do mundo, com lucros combinados de cerca de US$ 41 bilhões em 2022 e cerca de 10 mil lojas espalhadas em diversos países.
Por outro lado, o Brasil é hoje o segundo maior exportador mundial de algodão, atrás apenas dos Estados Unidos. As exportações mais que dobraram nos últimos dez anos, de acordo com o levantamento, sendo que a maior parte é cultivada no Cerrado.
Investigando a cadeia produtiva ao longo do último ano, os pesquisadores identificaram que as empresas europeias adquirem suas peças de fornecedores localizados na Ásia. São esses que compram o algodão cultivado no oeste da Bahia, em especial dos dois maiores produtores do país: o Grupo Horita e a SLC Agrícola.
Nos últimos anos, diversas denúncias vêm sendo feitas sobre essas empresas com suspeitas de violações de direitos de populações locais, grilagens e desmatamentos ilegais. Aqui na Pública mesmo, já escrevemos sobre a SLC e sobre o Horita. Recomendo também uma reportagem desta quinta (11) do De Olho nos Ruralistas sobre o relatório da Earthsight.
Interessante, como destaca o levantamento, é que as gigantes da moda têm feito campanhas pesadas para promover que o algodão que usam é sustentável, contando, para isso, com o selo Better Cotton, um sistema que rastreia cadeias de roupa e fornece certificação. O algodão das produtoras brasileiras têm esse selo, de acordo com a ONG, mas o processo de certificação como um todo tem falhas, ressalta.
Cito um trecho: “A exigência de que um produtor cumpra as leis locais é excessivamente vaga e nada diz sobre propriedade da terra ou disputas fundiárias. Uma nova proibição da conversão de ecossistemas naturais após dezembro de 2019 não aborda o desmatamento ilegal ocorrido antes dessa data. Seu novo sistema de rastreabilidade, a ser implementado nos próximos anos, também é lamentavelmente inadequado, uma vez que só consegue rastrear o algodão até o país de origem, e não até as fazendas onde o algodão foi plantado. As regras sobre a mitigação de danos aos povos indígenas e tradicionais aplicam-se apenas às comunidades fora dos limites das fazendas, ignorando as violações contra aqueles cujas terras foram roubadas. Por outro lado, os critérios destinados a proteger as comunidades locais dentro dos limites das fazendas não exigem que os fazendeiros obtenham seu pleno consentimento para projetos que afetem seus meios de subsistência”.
Após as revelações, a certificadora afirmou à Earthsight que “confiou a um auditor independente a missão de fazer visitas de verificação reforçadas”. Todas as empresas enviaram respostas à ONG, que podem ser vistas aqui.
Em nota à agência internacional France Presse (AFP), a Inditex, dona da Zara, disse: “Levamos muito a sério as acusações contra a Better Cotton, que proíbe estritamente práticas como usurpação de terras e desmatamento em suas especificações de condições”. Afirmou também que solicitou os resultados da investigação independente “o mais rápido possível”.
Também à AFP, a H&M disse que “as conclusões do relatório da Earthsight são muito preocupantes”; afirmou que elas são levadas “muito a sério” e que está “acompanhando as conclusões da investigação” em diálogo estreito com a Better Cotton.