Na quarta-feira, 4 de maio, uma água lamacenta tomou conta das ruas de Muçum, município de 4 mil habitantes no interior do Rio Grande do Sul. Euclides Ferreira dos Santos, 75 anos, e sua família já sabiam o que fazer. Entraram no seu carro e dirigiram para o ponto mais alto da cidade. Ali dormiram quatro noites até encontrar vaga em um abrigo municipal, onde permanecem até hoje.
A inundação foi parte do maior desastre climático da história do Rio Grande do Sul, impulsionado por chuvas intensas que encheram os cursos d’água do estado. Até agora, foram contabilizados mais de 100 mortos, 160 mil desalojados e mais de 330 cidades em estado de calamidade pública. A inundação surpreendeu muitos, mas, para Euclides e os moradores de Muçum, a cena é recorrente. É a terceira vez em menos de um ano que as águas destroem a cidade, levam suas casas e seus sonhos.
A família agora pensa em se mudar de lá, sentimento que se espalha pelo município. Podem se tornar um dos 500 mil refugiados climáticos do Brasil, número levantado por um dossiê da Universidad de las Américas Puebla, do México, publicado no ano passado. A situação se agrava com a piora da crise climática no país e o despreparo do poder público.
Confira a cronologia da crise no Rio Grande do Sul
27 a 28 de abril
Desde março, a MetSul Meteorologia vem alertando sobre chuvas intensas de abril e maio. No sábado, dia 27 de abril, algumas regiões sofreram impactos de chuvas e granizo. No dia seguinte, a Defesa Civil contabilizou impactos em 15 municípios.
30 de abril a 1 de maio
Na terça-feira, o Rio Grande do Sul registrou as primeiras mortes devido aos temporais. Na quarta-feira, o número de mortes aumentou para 11. Em todo o estado, casas, pontes e outras construções foram arrastadas pela força da água.
2 a 3 de maio
Na quinta-feira, o Rio Grande do Sul decretou estado de calamidade pública. Uma barragem rompeu parcialmente, e outras quatro apresentavam risco. Até sexta-feira, já haviam sido registradas 39 mortes.
4 a 5 de maio
O Rio Grande do Sul enfrenta a maior tragédia de sua história. Na manhã de domingo, o presidente Lula, acompanhado pelos presidentes da Câmara e do Senado, e pelo vice-presidente do STF, sobrevoou Porto Alegre de helicóptero.
6 a 9 de maio
As mortes chegam a 107 e os desaparecidos a 136, números que continuam aumentando. A quantidade de afetados passa de 1,3 milhão, em mais de 300 cidades impactadas. O número de pessoas desalojadas supera 164 mil, e há ainda 67 mil desabrigados.
10 a 13 de maio
Com final de semana chuvoso, mortes chegam a 147. Desabrigados já passam de 600 mil em 447 municípios afetados.
2023: as primeiras inundações
No dia 4 de setembro de 2023, a primeira enchente a assolar Muçum chegou de mansinho. Havia um boato na cidade de que o rio Taquari, que corta a região montanhosa, poderia transbordar devido à chuva que caía sem trégua. Euclides e sua esposa, Otília Vieira dos Santos, 72 anos, foram surpreendidos quando a filha, Geniza Ferreira dos Santos, 33 anos, chegou do trabalho e implorou para que eles saíssem da sua pequena casa de madeira.
“Achei a maior bobagem. Moro aqui há 40 anos e nunca a água tinha entrado dentro de casa”, lembra Euclides. Mas logo mudou de ideia quando, da sua cama, viu uma onda marrom passando por baixo da porta.
Com pressa, eles levantaram móveis, fogão e geladeira do chão. Encheram lençóis com roupas, panelas e comida. Pegaram documentos, remédios e dinheiro. Abrigaram-se na casa da Geniza, que era de tijolos e dois pisos, e ficava localizada no mesmo terreno.
Uma hora depois, a água já batia no segundo piso.
Sentados em choque no sofá da sala, ouviram gritos. Em uma cena surreal, viram da janela um vizinho que descia a correnteza da rua em cima de uma geladeira. Ele tinha ficado na sua pequena empresa de produtos de limpeza, tentando salvar o que podia, até que foi consumido pelo lamaçal. A família o puxou pela sacada e logo todos se viram forçados a subir no telhado por um alçapão para escapar do afogamento.
Passaram a noite em claro no telhado, cuidando do nível da água com uma lanterna. O rio Taquari chegou a 29,92 metros, quase 11 metros acima da cota de inundação. “Foi um filme de terror. No escuro, só ouvíamos vizinhos e animais gritando por socorro”, lembra Geniza. Lá de cima, testemunharam a principal ponte da cidade cair com a força da água. Também viram, apavorados, a casa de Euclides boiando no mar que tinha tomado o pátio.
Quando a água finalmente baixou, entenderam a dimensão da tragédia. Euclides perdeu a casa e tudo que tinha dentro: móveis, eletrodomésticos e fotos da família. Geniza também perdeu tudo. De certa forma se sentiam com sorte por não terem perdido a vida. No total, 53 pessoas morreram e milhares ficaram desabrigadas na região do Vale do Taquari – a maior parte em Muçum.
No dia 18 de novembro do ano passado, quando finalmente conseguiram limpar uma montanha de lodo com forte cheiro de esgoto das suas casas, o rio Taquari subiu novamente. Como tinha permanecido 3 metros acima do normal, bastou uma chuva intensa para transbordar. Dessa vez o lamaçal cobriu apenas o primeiro piso da casa de Geniza, mas cerca de 60% da cidade ficou sob a lama.
Foi um soco na boca do estômago de quem estava finalmente reconstruindo sua vida.
Euclides e sua esposa, que ainda estavam morando de favor na casa da filha, viram cada vez mais distante a chance de reconstruir a sua própria casa. Eles se apegaram a uma promessa da prefeitura de Muçum de receberem uma casa nova, financiada pelo programa federal Minha Casa, Minha Vida. Mas até hoje não há previsão para essa construção e nem sequer terreno escolhido. Pode demorar anos.
Depois da tragédia dupla, os obstáculos financeiros da família só aumentaram. Dos R$ 4,75 milhões arrecadados via Pix pelo governo do estado do Rio Grande do Sul para ajudar na recuperação dos moradores, cada núcleo familiar recebeu apenas um vale-compras de R$ 1 mil para gastar no comércio local. Nem pai nem filha se qualificaram para a verba maior de R$ 2.500, destinada aos que vivem em pobreza extrema.
“Como vou reconstruir minha vida com esse valor? Tenho problema no coração e gasto R$ 700 só em remédios por mês”, lamenta Euclides. Para piorar a situação, ele quebrou três costelas ao cair de uma escada tentando retirar as madeiras podres da sua antiga casa. “Sinto que só tenho três opções: comprar remédio, comprar alimento, ou refazer a minha casa”, lamenta Euclides. Quando não consegue fugir desses pensamentos, se deita em um colchão ao lado da casa antiga e começa a chorar.
“Isso não pode estar acontecendo de novo”
No dia 1o de maio de 2024, pela manhã, a família viu uma postagem no Instagram da prefeitura de Muçum avisando que a barragem 14 de Julho, localizada na serra do Rio Grande do Sul, havia se rompido e o rio Taquari poderia subir. “Pensei: ‘Isso não pode estar acontecendo de novo’”, disse Geniza.
No piloto automático, já sabiam o que fazer. Pegaram documentos, remédios, roupas, toalhas e chinelos. Dessa vez o aviso veio com tempo suficiente para saírem de casa. Entraram nos dois carros da família e subiram para a região mais alta da cidade. Dormiram quatro noites nos seus veículos até que conseguiram vaga no abrigo municipal, onde agora dormem em colchonetes.
Dessa vez, o rio ultrapassou a cota de 30,27 metros acima do normal, ainda mais do que a enchente de setembro de 2023.
Quando finalmente venceram a lama para retornar ao seu imóvel, viram que o estrago foi avassalador. Tudo o que tinham conseguido comprar ou recebido de doação desde o ano passado, inclusive móveis, fogão, geladeira e máquina de lavar roupa, estava perdido. “Sinceramente não temos mais lágrimas para chorar. E me preocupo com o pai, que já estava com quadro de depressão”, disse Geniza.
A casa do seu Euclides, que ele tinha finalmente começado a reconstruir, voltou a boiar na água marrom. “Eu já tinha erguido as paredes e colocado as janelas. Tinha recém- comprado um forro de PVC para o telhado. Perdi tudo de novo. Sinto que não tenho mais forças para recomeçar”, disse.
Refugiados climáticos
Enquanto começam o árduo trabalho de limpeza, que pode demorar semanas, a família contempla a opção de deixar a cidade. “O desânimo é generalizado. Muitos vizinhos nem estão voltando para limpar as suas casas e estão buscando outros lugares para morar”, disse. Mas a opção de ir embora também é difícil. “Mudar de cidade é caro. E com pais idosos, temos um problema de mobilidade. Não sei se é pior ficar ou sair.”
Em entrevista à Agência Pública, o prefeito de Muçum, Mateus Trojam (MDB), disse que não tem dúvida que haverá evasão no município. “Ficamos muito angustiados com isso, muito aflitos. A gente tinha conseguido segurar muita gente depois dos eventos climáticos no ano passado, mas é a terceira vez que isso acontece.”
Para ele, uma das formas de motivar as pessoas a ficar é replanejar a cidade longe das áreas de risco de enchentes. Esse trabalho já começou a ser feito com a proibição da construção de casas em certas áreas, mas faltam recursos para reconstrução. As novas casas, que eram para ser erguidas após as enchentes do ano passado, ainda nem saíram do papel.
“Nós temos um recurso aprovado pelo governo federal e estadual para a reconstrução de casas fora da área de inundações. Mas nós ainda precisamos arrumar área, terraplanagem, acesso, infraestrutura, luz, água, pavimentação. Então não tem como precisar o prazo para a entrega. E, com a nova enchente, possivelmente precise de mais casas. Precisamos de recursos externos e de peso para conseguir todos os nossos objetivos”, disse.
Os moradores que resolverem abandonar Muçum vão se juntar aos milhares de refugiados climáticos do país. “No Brasil, tem três perfis de refugiados: o produtor rural nordestino expulso pela desertificação do solo, o morador de favela em área de risco nas grandes cidades e agora, na região Sul, tem pessoas saindo por conta das chuvas”, afirma Délcio Rodrigues, diretor executivo do Instituto ClimaInfo.
As projeções são que esse número aumente muito com a piora da crise climática no Brasil, que já afeta 26 milhões de pessoas. “A situação só tende a piorar. Serão 17 milhões de refugiados até 2050 na América Latina, e uma parte significativa do Brasil. No Rio Grande do Sul existe uma confluência de fatores meteorológicos que faz a região ser uma das mais afetadas.”
Despreparo dos municípios
De acordo com relatório “Política climática por inteiro”, publicado no ano passado pelo Instituto Talanoa, a própria plataforma governamental Adapta Brasil aponta a falha dos municípios brasileiros para lidar com eventos climáticos extremos. Quase 70% dos municípios possuem capacidade muito baixa ou baixa de se adaptar a desastres geo-hidrológicos causados pelas mudanças climáticas.
Embora o país possua bons mecanismos de resposta emergencial, como a Defesa Civil, essas medidas nem sempre ajudam as comunidades a se prevenir para os desastres. “O Brasil ainda não está preparado e precisa investir, e muito, em políticas de adaptação”, afirma Marina Caetano, gerente de relacionamento institucional do Instituto Talanoa.
Parte da solução é a reformulação do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA), estabelecido pelo governo federal em 2016, mas nunca implementado. O novo plano teria que considerar um clima cada vez mais extremo e garantir financiamento para estados e municípios além dos repasses emergenciais – que, para esta enchente, já ultrapassam R$ 1 bilhão.
Para José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Modelagem do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), esses recursos são fundamentais porque essas tragédias vão continuar acontecendo. “Eu sou do Peru e estou acostumado a ver placas indicando áreas seguras no caso de tsunami. Todo mundo sabe para onde ir. Aqui falta muito isso. As pessoas são levadas para abrigos em escolas e igrejas depois do desastre, mas por que não antes?”