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Argentina tentou cobrar impostos das Big Techs, mas governo isentou Mercado Livre

Receita federal argentina também fracassou em ações contra Netflix e Uber, mas teve sucesso contra a Meta

Reportagem
7 de outubro de 2025
14:00

A Receita Federal argentina bem que tentou. A Administração Federal de Ingressos Públicos (Afip) quis cobrar mais impostos das grandes empresas de tecnologia durante o governo de Alberto Fernández (2019-2023). Mas na maioria dos casos não conseguiu. O órgão mirou nos benefícios fiscais obtidos por Mercado Livre, Meta, Uber e Netflix, com resultados variados.

O Mercado Livre, empresa de comércio online com grande presença no Brasil, começou como startup em 1999. Ela recebe isenções fiscais do Estado argentino desde 2007. A companhia é listada na Bolsa de Valores de Nova York desde então e se tornou uma das empresas de tecnologia mais poderosas da América Latina, com receita líquida superior a 20 bilhões de dólares em 2024, segundo seus demonstrativos financeiros.

A empresa ainda recebe auxílio público, o que gerou acusações de lobby realizado por seu fundador, Marcos Galperín, o homem mais rico da Argentina. O Mercado Livre recebeu 298 milhões de dólares em isenções fiscais e descontos em contribuições trabalhistas de 2022 até junho de 2025, conforme informações apresentadas pela companhia à Securities and Exchange Commission (SEC) dos Estados Unidos.

Em agosto de 2022, a Afip apresentou uma denúncia administrativa contra o Mercado Livre por suposta evasão de impostos e contribuições trabalhistas entre 2017 e 2019, ao considerar que a empresa havia obtido benefícios fiscais do Regime de Promoção do Software sem cumprir os requisitos necessários, segundo confirmaram três altos oficiais envolvidos no caso, tanto no Ministério da Economia quanto na agência tributária. As fontes pediram para não serem identificadas, pois tanto a denúncia quanto outras informações envolvidas nesta investigação estão em sigilo fiscal.

O Regime de Promoção do Software foi substituído em 2019 pela Lei da Economia do Conhecimento. Naquela época, a empresa foi acusada de fazer lobby para que a nova norma fosse aprovada.

Para obter as isenções fiscais desse regime (vigente até 2019), as empresas deveriam demonstrar que sua atividade principal era a indústria de software, incluindo criação, design, produção e implementação de sistemas de informática. A denúncia argumentou que a maior parte da receita do Mercado Livre vinha das comissões sobre vendas de comércio eletrônico, e não da geração de software.

No entanto, a autoridade responsável pela aplicação do regime determinou que a empresa estava corretamente enquadrada no benefício, considerando que cumpria os requisitos.

Mercado Livre: como os benefícios fiscais impactaram os números

Em 2019, quando foi investigada pela Afip, o Mercado Livre recebeu descontos de imposto de renda e contribuições trabalhistas no valor de 19,9 milhões de dólares, conforme consta no balanço apresentado à SEC dos Estados Unidos. Na época, a Afip era liderada por Carlos Castagnetto, homem de confiança da então vice-presidente Cristina Kirchner.

Naquele ano, outra denúncia administrativa havia sido enviada à autoridade responsável pelo Regime de Promoção do Software, a Secretaria de Economia do Conhecimento. A denúncia contra o Mercado Livre foi rejeitada, com o argumento de que a empresa cumpria os requisitos para estar dentro do regime, segundo três altos funcionários envolvidos no caso.

Uma dessas fontes lembrou que o Mercado Livre já estava inscrito nesse regime desde 2007, por autorização do governo de Néstor Kirchner.

O governo de Alberto Fernández não foi a primeira vez em que a agência tributária questionou benefícios recebidos pelo Mercado Livre. Embora com uma coloração política diferente, a Afip também havia tentado que a empresa pagasse mais impostos no governo de Mauricio Macri (2015-2019), mas também não teve sucesso.

Em setembro de 2017, o então subdiretor-geral de Operações Tributárias de Grandes Contribuintes Nacionais da Afip, Juan Carlos Santos, havia denunciado a empresa com uma premissa muito semelhante à que se tentou aplicar em 2022: a maioria de seus funcionários não se dedicava ao desenvolvimento de software, mas ao comércio eletrônico.

A denúncia foi encaminhada ao ministro da Produção do governo Macri, Francisco Cabrera. Dois meses depois, em dezembro de 2017, a demanda foi rejeitada pelo mesmo argumento. O Mercado Livre estava corretamente enquadrado nas vantagens fiscais e trabalhistas oferecidas pelo regime, segundo o então ministro. Ele alegou que a empresa se dedicava a desenvolver software para aqueles que vendiam em sua plataforma e que cobrava comissões por essas atividades, que representavam 97% de sua receita.

A denúncia de 2017 envolvia impostos e contribuições que a empresa havia deixado de pagar no valor de 28,5 milhões de dólares, conforme consta na denúncia da Afip.

Três meses após o caso, em março de 2018, o então chefe da Afip, Alberto Abad, renunciou ao cargo. Ele foi substituído por Leandro Cuccioli, que permaneceu no cargo até 2019. Anos depois, em 2024, Cuccioli foi nomeado vice-presidente do Mercado Livre. A afinidade ideológica de Galperin, fundador do Mercado Livre, com o macrismo é publicamente conhecida, já que durante sua gestão o fundador do Mercado Livre voltou a viver na Argentina após 14 anos instalado no Uruguai.

O CLIP e o elDiarioAR enviaram um questionário ao Mercado Livre sobre as denúncias e sobre a relação de Galperin com o governo de Macri, mas a empresa não respondeu.

Os benefícios para o Mercado Livre

O Regime de Promoção do Software foi uma iniciativa lançada em 2004 pelo então presidente Néstor Kirchner para impulsionar uma indústria formada majoritariamente por pequenas e médias empresas argentinas com potencial de crescimento. Embora o Mercado Livre já se destacasse nesse universo, ainda estava longe de se tornar uma das empresas mais valiosas da América Latina, como ocorreria anos depois.

O regime tinha data de expiração no final de 2019, e por isso o governo de Mauricio Macri promoveu um marco regulatório ainda mais amplo, a Economia do Conhecimento, que abrange também a produção audiovisual, nanotecnologia, indústria aeroespacial, entre outras atividades.

Macri apresentou o projeto de lei em março de 2019, após uma reunião com esse amplo setor. Estiveram presentes, entre outros empresários, Galperin.

Macri e Galperín juntos na inauguração de uma unidade do Mercado Livre, em transmissão oficial do canal da Presidência da Argentina.

Pouco mais de um mês após a apresentação do projeto, ele foi aprovado pela Câmara dos Deputados, com apenas dois votos contra. Foi um consenso incomum entre a coalizão governista de Macri e a oposição peronista.

O Senado também ratificou os benefícios do regime de Economia do Conhecimento.

Macri promulgou, em 10 de junho de 2019, a Lei de Economia do Conhecimento e, no mesmo dia, inaugurou junto a Galperin um centro de desenvolvimento do Mercado Livre em Buenos Aires. A simpatia pública entre ambos se refletiu no apoio eleitoral do empresário, que pedia publicamente votos para o então presidente durante a campanha. “Quero que meus filhos vivam em uma República Democrática, com justiça independente, liberdade de imprensa e de opinião, com liberdades individuais e olhando para o futuro”, escreveu o empresário mais rico do país em sua conta no X, junto a uma foto do presidente com a inscrição “Eu voto nele”.

Uma nova lei

Apesar da aprovação quase unânime, a Lei de Economia do Conhecimento, que começaria a vigorar em 2020, começou a ser questionada pelo peronismo. Em janeiro de 2020, dias depois da posse de Alberto Fernández, o novo governo suspendeu a aplicação do novo regime e propôs uma reforma que reduzia os benefícios das grandes empresas, como o Mercado Livre.

Galperín foi recebido por Alberto Fernández, mas, após esse encontro, em fevereiro de 2020, comunicou que voltaria a morar no Uruguai, onde vive até hoje. O homem mais rico da Argentina, cuja fortuna chega a quase US$ 10 bilhões (segundo o ranking da revista Forbes), foi afetado pelo aumento do imposto sobre bens pessoais determinado por Fernández.

Em junho de 2020, em plena pandemia, a Câmara de Deputados aprovou a reforma da Lei de Economia do Conhecimento com o apoio unânime do peronismo governante e da oposição. O lobby sobre a reforma gerou debates. A peronista Lucía Corpacci pediu aos deputados da oposição “que não colocassem interesses pessoais à frente nem fizessem lobby apenas para os grandes”.

Em outubro de 2020, o Senado transformou o projeto em lei, mas introduziu mudanças na legislação. Uma das modificações afetou os percentuais cobrados do imposto de renda, que passariam a variar conforme o tamanho das empresas. A primeira Lei de Economia do Conhecimento de 2019 reduzia o imposto de renda para 15%. Na nova norma de 2020, os benefícios fiscais passaram a depender do tamanho da empresa: a taxa para pequenas empresas caiu para 12%, para médias subiu para 18% e para grandes chegou a 24%.

Apesar da redução dos benefícios, o boom do comércio eletrônico provocado pela pandemia ajudou o Mercado Livre a aumentar suas atividades, bem como as deduções de impostos e contribuições trabalhistas, segundo os balanços apresentados à SEC dos Estados Unidos. As isenções passaram de 19,9 milhões de dólares em 2019 para 23,3 milhões de dólares no ano seguinte.

O presidente Javier Milei se reuniu com Galperín nos escritórios do Mercado Livre.

Foco nas multinacionais

O Mercado Livre não foi a única empresa de tecnologia sob escrutínio em relação aos impostos na Argentina. As Big Techs se caracterizam globalmente por escolher países de baixa tributação para se estabelecer legalmente e, a partir dali, prestar serviços em outros países, pagando o mínimo de impostos possível.

As Big Techs começaram a pagar, desde 2024, um imposto mínimo global de 15% em 55 países (apenas o Brasil aplica na América Latina), como parte de um acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O atual presidente argentino, Javier Milei, que se autodefine como libertário, não implementou a medida. De forma semelhante, o presidente dos EUA, Donald Trump, não apenas rejeitou o pagamento desse tributo, como também ameaçou, em um memorando, sancionar países que o aplicassem.

A Afip fez consultas internas em 2018 para saber se deveria cobrar Imposto de Renda da filial do Facebook pelos serviços publicitários contratados por clientes argentinos para alcançar o público local. Mas o departamento jurídico do órgão rejeitou a possibilidade.

Em 2022, a Afip reverteu a resolução. O Facebook Argentina pagou cerca de 8,7 milhões de dólares de Imposto de Renda, ou seja, 5,4% de suas vendas, segundo seu balanço. Em 2023, considerando a desvalorização do peso, pagou cerca de 6,9 milhões de dólares, ou 13,8% de suas vendas — mais que o dobro do ano anterior, apesar do valor em dólares ser menor devido à desvalorização da moeda argentina.

Funcionários da Afip consultados afirmaram que o mesmo não ocorreu com a Netflix. O Ministério da Economia — sob a direção de Guzmán — determinou que, embora a atividade da empresa de streaming pudesse ser considerada como renda de fonte local, por estar sediada na Holanda e não possuir uma filial argentina que gere esses benefícios, a tributação caberia ao país europeu. A reportagem entrou em contato com a Netflix, mas a empresa não respondeu.

A Uber também estabeleceu sua residência fiscal na Holanda, mas o governo de Macri considerou que a empresa possuía estabelecimento permanente na Argentina, entendendo que os motoristas argentinos eram seus empregados.

O Ministério da Economia determinou em 2019 que a Uber tinha presença na Argentina. A Afip exigiu o pagamento de impostos e contribuições trabalhistas no valor de 7,7 milhões de dólares. Na Argentina existem duas sociedades similares, chamadas Uber Argentina Sociedad Responsabilidad Limitada (SRL) e Uber International BV na Argentina, mas nenhuma delas assumiu a dívida, alegando não possuir estabelecimento permanente e serem entidades independentes da empresa que fatura na Holanda.

A Uber detalhou à reportagem que o processo “ainda está em instância administrativa” na Afip, sem resolução até o momento.

Milei, o amigo das Big Techs

Desde que assumiu a presidência, em 2023, Javier Milei tentou se aproximar das Big Techs e a simpatia que também foi correspondida por essas empresas. Sua relação com Elon Musk, o homem mais rico do mundo, e sua política ultraliberal representam uma promessa de bons negócios para essas empresas na Argentina. Uma das primeiras viagens de Milei como presidente, em junho de 2024, foi justamente ao Vale do Silício, Califórnia, sede de muitas Big Techs. Lá, ele se reuniu com os CEOs de várias empresas, como Tim Cook (Apple), Mark Zuckerberg (Meta) e Sundar Pichai (Google).

Milei junto a Elon Musk em uma de suas viagens aos Estados Unidos.

O interesse foi recíproco desde o dia da posse. O Google foi a empresa mais interessada na Argentina entre as Big Techs: executivos da companhia visitaram várias vezes os gabinetes oficiais para conversar sobre investimentos no país. Foram 14 reuniões oficiais entre funcionários do Google e diferentes membros do governo argentino em 2024, o primeiro ano de Milei como presidente, segundo o Registro Único de Audiências.

Antes de completar três meses na Casa Rosada, o Ministério das Relações Exteriores e o Google assinaram um acordo de cooperação “para o fortalecimento tecnológico internacional”, segundo comunicado oficial. Mas, além do anúncio, tanto o governo argentino quanto o Google não tornaram públicas outras ações conjuntas. As relações entre as partes continuaram, com mais reuniões.

Karan Bhatia, advogado norte-americano e ex-representante comercial do governo de George W. Bush, atua como vice-presidente de Assuntos Governamentais do Google em nível global. Bhatia esteve na Casa Rosada em 20 de maio de 2024 para reuniões com a então chanceler Diana Mondino e com o ministro do Interior, Guillermo Francos, um dos dirigentes de maior confiança de Milei. Durante a reunião, discutiu-se “o processo de modernização” da Argentina e “também foram abordados projetos do Google Argentina relacionados à inteligência artificial e ferramentas para fortalecer processos de aprendizagem”, segundo registros públicos.

Após essas reuniões, Milei anunciou durante sua viagem ao Vale do Silício que implementaria uma reforma para tornar o Estado mais eficiente com o uso de inteligência artificial desenvolvida pelo Google. “Tivemos uma conversa com o pessoal do Google, eles têm, de fato, um módulo para fazer reforma do Estado com o uso de inteligência artificial, então vamos avançar nisso”, disse o presidente argentino a jornalistas na Casa Rosada.

Eleonora Rabinovich, líder de Assuntos Governamentais para a América Latina do Google, teve reuniões em junho, julho e agosto com o vice-chefe de gabinete argentino, José Rolandi, para tratar do assunto. Mas quase um ano depois desses encontros, não houve novidades sobre o suposto acordo.

Big Tech

A Mão Invisível das Big Techs é uma investigação transnacional e colaborativa liderada pela Agência Pública e o Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP), em conjunto com Crikey (Austrália), Cuestión Pública (Colômbia), Daily Maverick (África do Sul), El Diario AR (Argentina), El Surti (Paraguai), Factum (El Salvador), ICL (Brasil), Investigative Journalism Foundation – IJF (Canadá), LaBot (Chile), LightHouse Reports (Internacional), N+Focus (México), Núcleo (Brasil), Primicias (Equador), Tech Policy Press (EUA) e Tempo (Indonésia). O projeto tem o apoio da Repórteres Sem Fronteiras e da equipe jurídica El Veinte, e identidade visual da La Fábrica Memética.

Edição:
Presidência de Argentina
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