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De terreno abandonado a moradia: a história de como as ocupações moldaram a grande Belém

Jaderlândia, Terra Firme, Bengui, Paar e Jurunas: bairros surgiram de iniciativas populares pela falta de moradia

Reportagem
8 de outubro de 2025
04:00

A casa de dona Noca é simples, mas a história dessa conquista, não. O chão acimentado, as paredes de tijolos e as fotos na parede são testemunhas da luta desta mulher. Dona Noca é como todos conhecem Jaciara do Socorro, de 63 anos. Ela foi uma das mulheres que iniciaram a ocupação das terras onde hoje se encontra o Jaderlândia, bairro onde moram milhares de pessoas no município de Ananindeua, região metropolitana de Belém, no Pará.

O nome do bairro faz referência ao senador Jader Barbalho (MDB), que foi governador na época do loteamento das terras ocupadas.

“Eu era menor de idade ainda, já tinha uma filha de dois anos, morava de aluguel. Uma noite, um vizinho me disse que tinha umas mulheres indo invadir um terreno abandonado. Eu deixei minha filha com a vizinha e fui marcar meu pedaço de chão. Fiz cerca, plantei estaca e chamei minha mãe também”, lembra dona Noca, hoje com 63 anos.

A cena se repetia constantemente, as famílias levantavam casas improvisadas de lona e madeira, e a polícia ou jagunços derrubavam tudo.

“A gente corria atrás da polícia e a polícia corria atrás da gente. Era briga todo dia. Derrubaram minha casa quando eu estava de resguardo e com uma bebê de três dias nos braços. Os donos mandavam jagunços, faziam acampamento, ameaçavam a gente. A polícia vinha junto, mas parecia que vinha só pra dar apoio a eles. Até presidiários traziam para derrubar as casas. Eu lembro da minha mãe, que tinha acabado de comprar material fiado – telha, madeira, tudo certinho – e eles vieram e quebraram tudo. Era muita violência”, relembra.

Apesar disso, o povo sempre voltava. A mobilização ganhou força quando o então vereador Sebastião Souza (PC do B), o Sabá, entrou na causa: ele mediou uma conversa entre a comunidade e Barbalho, o governador.

Jaciara do Socorro, a dona Noca foi uma pioneiras da ocupação do Jaderlândia

“Teve até uma briga na época. A gente estava na Assembleia Legislativa, esperando, quando o filho do Ferro Costa disse que não ia deixar o Jader Barbalho entrar. A discussão aumentou e ele veio pra cima pra dar um murro nele. Eu tomei a frente, partimos pra luta, rasguei a camisa dele todinha. A gente sofreu muito pra conquistar esse terreno. Foi ele quem conseguiu. Então, agradeço até hoje por ter minha casinha. Enquanto eu estiver viva, eu voto na família Barbalho. Tenho gratidão, porque ele me deu a oportunidade de ter minha casa”, lembra dona Noca.

Ferro Costa era Clóvis Ferro Costa, um advogado formado no Pará e que foi um dos fundadores da União Democrática Nacional (UDN) no estado, partido conservador cujos políticos depois migraram para a Arena, na ditadura. A família do político foi dona do terreno reivindicado pelos ocupantes.

A reportagem tentou entrevistas com Jader, hoje com 80 anos, mas a assessoria recusou.

E a COP30 com isso?
  • A realização da COP30 em Belém gerou uma explosão do preço de hospedagens, que evidencia um problema anterior na cidade: o alto custo de vida, a falta de infraestrutura em bairros periféricos e o grande número de ocupações e favelas na região metropolitana;
  • Os bairros com menos infraestrutura são justamente os mais afetados pelas mudanças climáticas, por exemplo, durante enchentes ou ondas de calor. Além disso, obras de adaptação da cidade, quando não são acompanhadas de políticas de moradia, podem agravar a expulsão desses moradores.

Quem também guarda lembranças desse tempo é Cláudio Almeida, 45 anos. Ele era apenas um menino quando acompanhava o pai, Almeida Filho, em mutirões de limpeza do terreno. “No começo, foram só as mulheres que meteram a cara. Depois os maridos viram que ia dar certo e se juntaram. Eu cresci vendo essa luta, vi meu pai organizando os vizinhos, cortando as ruas. Cresci no meio da luta e movimento por moradia”, conta.

Cláudio lembra que até um padre participou efetivamente da ocupação. Ele se refere ao padre italiano Hélio Frison, que na época administrava a paróquia Cristo Rei, no conjunto Guanabara, bairro vizinho. Segundo moradores, ele participou ativamente do processo, garantindo também um terreno privilegiado para a fundação da comunidade de Cristo Peregrino, que mais tarde se tornou paróquia. A reportagem tentou entrevistar o padre, hoje idoso, que não aceitou conversar.Os moradores contam que, quando o terreno foi desapropriado, Barbalho organizou uma grande festa no bairro em comemoração com direito a música e muito churrasco. Festa que se repetiu por muitos anos. O nome do bairro foi escolhido em homenagem ao político e como símbolo de gratidão da comunidade.

O Jaderlândia está situado em uma área de 22 hectares, às margens da BR-316. A área havia sido explorada durante muito tempo para extração de areia branca. Com o solo esgotado, ficou abandonada e passou a ser ponto de criminalidade. Foi nesse espaço que as famílias ergueram suas casas. Dividido entre Jaderlândia I e II, o bairro cresceu com ruas abertas na força do braço, redes de vizinhança e, mais tarde, alguma infraestrutura trazida pelo poder público.

Belém e as muitas cidades da periferia

O caso de Jaderlândia ecoa um padrão presente em toda Belém e região metropolitana: bairros como Terra Firme, Bengui, Paar e Jurunas também nasceram de ocupações populares. Esses movimentos foram a forma que pobres encontraram para ter acesso à moradia diante da ausência de políticas públicas habitacionais consistentes.

A regularização fundiária, quando veio, deu algum respaldo legal, mas raramente foi acompanhada de saneamento, escolas ou transporte de qualidade.

Belém cresceu para além de suas margens ribeirinhas em ritmo acelerado e desordenado. A partir da segunda metade do século 20, com a chegada de milhares de migrantes vindos do interior em busca de oportunidades, a cidade passou a se expandir pela ocupação de áreas livres, muitas vezes alagadiças ou abandonadas. Foi assim que se formou grande parte da grande Belém, área que engloba a capital paraense e Região Metropolitana, marcada por bairros inteiros nascidos de ocupações organizadas pela população pobre, sem acesso à políticas públicas habitacionais.

Ananindeua, município vizinho à capital paraense, foi distrito de Belém até 1943, hoje é o segundo mais populoso do Pará, com pouco mais de 500 mil habitantes. Os dois municípios cresceram tanto, que aconteceu um fenômeno chamado conurbação, que é quando duas ou mais cidades crescem ao ponto de suas áreas urbanas se juntarem, formando uma área urbana contínua, mesmo que cada cidade continue tendo sua própria administração. Belém e Ananindeua, hoje praticamente não têm limites visíveis entre si.

Entre as décadas de 1970 e 1980, o centro de Belém deu início de forma mais contundente à verticalização da cidade. Enquanto os novos edifícios voltados para a classe média se elevavam na cidade, a Companhia Nacional de Habitação do Pará (COHAB) criou 22.019 casas em conjuntos habitacionais voltados principalmente para funcionários públicos em Belém (ao longo da rodovia Augusto Montenegro) e Ananindeua. Ao redor destes conjuntos surgiram as invasões, ou áreas de ocupação espontâneas, onde a população pobre, a maioria migrantes do interior, construíram suas moradias ocupando terras que antes eram consideradas a área rural da cidade.

Na década de 1980, Belém e sua região metropolitana já somavam mais de 1 milhão de habitantes. Mas, Luiz Augusto Soares Mendes, geógrafo e pesquisador afirma no artigo  “A geografia histórica da Região Metropolitana de Belém” que por trás do crescimento acelerado, havia um quadro de pobreza e exclusão: 22% dos chefes de família estavam desempregados e quase metade das famílias vivia com até dois salários mínimos. Em bairros periféricos, a realidade era de casas erguidas em terrenos precários, sem saneamento básico, escolas ou postos de saúde.

Foi nesse contexto que as chamadas “invasões de terras” ganharam força. Mais do que simples ocupações, eram a expressão da luta de milhares de famílias pela sobrevivência em uma cidade que não lhes oferecia alternativas. O pesquisador afirma que só em 1995, estima-se que 70,5 mil famílias participaram de movimentos de ocupação na Região Metropolitana de Belém.

Um exemplo marcante foi a ocupação do PAAR (Pará-Acre-Amazonas-Rondônia), uma área de mais de 1,8 milhão de metros quadrados, inicialmente destinada pela Cohab-PA à construção de quatro conjuntos habitacionais. Como as obras nunca avançaram, famílias passaram a ocupar o espaço, transformando o que seria um projeto oficial em mais uma frente de luta popular.

O pesquisador aponta que esse processo revelou a complexidade da cidade amazônica. Sem recursos suficientes para políticas habitacionais eficazes, o Estado, políticos e pequenos proprietários fundiários muitas vezes toleraram ou até incentivaram a ocupação de áreas sem uso ou de conjuntos não concluídos. Foi assim que surgiu o que estudiosos chamam de “indústria das invasões”: uma dinâmica em que a ausência de políticas públicas abria caminho para a autoconstrução e para negociações improvisadas que moldaram a metrópole paraense.

O arquiteto e urbanista Andrew Leal, idealizador e coordenador do Observatório das Baixadas (iniciativa que produz pesquisa e atua no enfrentamento das vulnerabilidades socioambiental e economico das comunidades periféricas), destaca que esse processo repete o modelo de cidades do sul global, marcado pela exclusão histórica de indígenas e negros no acesso à cidade.

A falta de políticas habitacionais estruturais fez com que comunidades fossem surgindo de forma desordenada e, posteriormente, regularizadas. Nessas áreas, os moradores enfrentam cotidianamente enchentes, ausência de saneamento, insegurança e desvalorização de seus territórios. Leal relaciona esse quadro ao racismo ambiental.

As populações negras e indígenas, em sua maioria vindas do interior e de estados vizinhos, foram empurradas para os lugares mais vulneráveis da cidade. Muitos bairros nasceram como invasões e, com o tempo, moldou toda a Região Metropolitana da capital paraense. Segundo Leal, o déficit habitacional nunca foi enfrentado de forma estrutural, e obras ou conjuntos habitacionais acabaram servindo como instrumentos eleitorais.

Jader Barbalho, então governador do estado, discursando para moradores da ocupação Jaderlândia

Atuação com movimentos de moradia fez capital político da família Barbalho

“A família Barbalho se profissionalizou em cultivar lideranças comunitárias e transformar a política habitacional em capital político. Conheci uma liderança quilombola que contava que todos os anos no seu aniversário recebia uma carta do ex-governador. Imagina o que é isso para uma pessoa simples? O Patriarca era muito carismático e dispensava tempo para escutar e falar com as pessoas, era comum ver cartazes do Jader ao lado do cartaz de Nossa Senhora  nas casas das pessoas, no interior isso ainda é comum”, analisa o arquiteto Andrew Leal.

Raul Neto, pesquisador do Núcleo de Altos Estudos na Amazônia (NAEA) e autor do livro “Belém e o imobiliário: uma cidade entre contratos e contradições”, questiona críticas de que os Barbalho fizeram seu capital político em cima das ocupações sem de fato se converter em políticas públicas que garantissem moradias digna à população. “Eu acho essa relação de certo modo, equivocada ou exagerada. O primeiro momento, a primeira etapa da política pública de moradia, para resolver o déficit por inadequação de habitação, é entregar o título da terra, a propriedade da terra. Se isso não veio com políticas públicas de saneamento e urbanismo é outra história e que não dependia apenas do governo de Jader “, afirma.

Fátima Carvalho, 62 anos, conta que nos anos de 1984 e 1985, a rotina de quem morava sobre as pontes no bairro da Sacramenta era marcada pela escassez de água. Entre barracos improvisados e três filhos pequenos para criar, a moradora recorda que, assim como a maioria das mulheres da comunidade, precisava caminhar quase um quilômetro para buscar água em uma bica. A necessidade levou o grupo a se organizar: formaram uma comissão e foram protestar em frente ao Palácio do Governo. O barulho chamou atenção e resultou no convite para que um representante subisse ao gabinete. Escolhida pelos vizinhos, ela se viu em uma sala luxuosa, onde foi recebida com café e bolo, antes de ser levada à presença do então governador.

Na reunião, expôs a dura realidade da comunidade, destacando o sacrifício que as famílias enfrentavam sem água encanada. Jader  conversou com assessores e garantiu uma data para a ligação de água para o bairro. De volta à comunidade, a promessa foi recebida com desconfiança. Muitos acreditavam que era apenas mais uma estratégia para afastar os moradores dali. Mas, na data marcada, as equipes chegaram cedo para instalar a rede. “Todo mundo ficou muito feliz. Os funcionários perguntaram de quem era para ligar primeiro, e todo mundo apontou para minha casa. Eu disse que não precisava. Importante é que ligasse. E desde esse dia nós tivemos água encanada”, relembra, emocionada.

Durante a pesquisa para esta reportagem alguns moradores se recusaram a falar com a equipe por não querer participar de algo que de alguma forma tivesse o objetivo de atacar politicamente o político. Dona Noca afirmou não acreditar nos escândalos de corrupção envolvendo o político: nos anos 2000, Jader ganhou holofotes ao ser condenado pela Justiça Federal no Tocantins por desvios na extinta Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), processo que foi extinto em 2014.

“Se ele é ladrão, para mim ele é o Robin Hood. Ele tomou dos ricos para dar para nós pobres, se não fosse ele esse povo todo não tinha um teto na cabeça sem o medo de qualquer hora alguém vir e mandar embora”, defende a moradora.

Edição:

Esta reportagem foi produzida através de uma parceria entre os veículos Agência Pública e Carta Amazônia na cobertura da COP30. O material pode ser republicado sem edições com o devido crédito.

Eraldo Paulino
Arquivo pessoal - Claudio Almeida

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