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Documento inédito faz mapeamento da situação dos vendedores ambulantes no país e mostra que eles já têm sido afetados pelos preparativos para a Copa. E a Fifa fala sobre suas zonas de exclusão

Reportagem
5 de abril de 2012
08:00
Este artigo tem mais de 12 ano

Durante as Olimpíadas de 1988 em Seul, os vendedores ambulantes foram removidos das ruas principais e colocados atrás de paredes e becos, como parte do processo de higienização da cidade. Nas Olimpíadas de 1992 em Barcelona, o comércio de rua foi completamente proibido*. Na África do Sul, o estatuto da Fifa vetou o comércio informal perto de edifícios públicos, igrejas, caixas eletrônicos e das áreas oficiais de exclusão da Fifa – ou “áreas de restrição comercial” como preferem chamar – que, diferentemente do que se pensa, não se restringe apenas ao entorno dos estádios mas também aos locais de eventos oficiais da Fifa (que incluem as fan parks, grandes festas de torcedores geralmente montadas nos centros das cidades ou em praias), centros de credenciamento, áreas oficiais de treinamento, hotéis onde as delegações dos países e as equipes da Fifa estão hospedadas, dentre outros. Na África, qualquer comércio não autorizado era proibido em um raio de 100 metros destes locais (2 km no caso dos estádios). Também foi expressamente proibido o uso de uma lista interminável de termos relacionados à Copa, Fifa e futebol, como a Pública mostrou no documentário Trade Mark 2010, do jornalista Rudi Boon. 

No Brasil os camelôs fazem parte da cultura. Não dá para imaginar São Paulo sem a 25 de Março ou Salvador sem as incontáveis barraquinhas de pulseirinhas, acarajés e artigos importados. Cada cidade tem sua feira típica, sua concentração de barraquinhas famosa. Tem até aquela música do João Bosco: “Veio o camelô vender anel/Cordão, perfume barato/ Baiana vai fazer pastel/E um bom churrasco de gato”. Mas o comércio informal não faz parte dos planos do país para o megaevento.

A Lei Geral da Copa, aprovada na Câmara dos Deputados no dia 28 de março e que espera aprovação no Senado, diz no artigo 11 que: “A União colaborará com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que sediarão os Eventos e com as demais autoridades competentes para assegurar à Fifa e às pessoas por ela indicadas a autorização para, com exclusividade, divulgar suas marcas, distribuir, vender, dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras atividades promocionais ou de comércio de rua, nos locais oficiais de competição, nas suas imediações e principais vias de acesso”. Diz ainda que “os limites das áreas de exclusividade relacionadas aos locais oficiais de competição serão tempestivamente estabelecidos pela autoridade competente, considerados os requerimentos da Fifa ou de terceiros por ela indicados, atendidos os requisitos desta Lei e observado o perímetro máximo de 2 Km (dois quilômetros) ao redor dos referidos locais oficiais de competição”. Isso significa que a Fifa deve negociar estas áreas diretamente com os municípios. A Pública entrou em contato com as prefeituras das 12 cidades que sediarão a Copa, mas ainda não há nada acertado em nenhuma delas. Por e-mail, a assessoria de imprensa da Fifa confirmou que as zonas de restrição comercial se estendem a hotéis, centros de mídia, etc. e o que mais entender como perímetro de segurança. Mas garante que o comércio regular dentro desses perímetros “poderão trabalhar com as marcas que já trabalham se não estiverem visando o evento ou seus espectadores” – algo bem difícil de comprovar. Também explica que “não vai comentar sobre o projeto de lei 2014, por ser um processo em curso”.

Para Érick Omena, pesquisador do Observatório das Metrópoles, há uma falta de clareza na lei e em todo o processo que envolve a Copa no Brasil. Ele acredita que este “pacote” de decisões delegado aos municípios é um cheque em branco, pois transfere poder aos seus governantes: “Eles ganham poder de barganha com a Fifa e com os comerciantes. Uma simples decisão como esta desencadeia vários processos. O modus operandi da política municipal é muito voltada para o clientelismo e fatalmente estas decisões vão passar por isso”. Érick também avalia dois problemas potenciais nas zonas de exclusão: “O primeiro é o da soberania nacional sobre o território. Está sendo delegado o controle territorial à entidades privadas e isso é muito grave. A Fifa e suas empresas parceiras vão assumir o poder sobre trechos do território brasileiro, inclusive criando tribunais especiais para julgar os delitos criados por uma legislação de exceção. O segundo é o da exclusão dos comerciantes que não poderão vender nada relacionado à Copa. Quanto aos ambulantes nem se fala, já existe uma cultura de repressão a eles há décadas. Certamente isso vai ser agudo no período da Copa do Mundo”.

A StreetNet internacional – aliança de organizações de vendedores informais de diversos países, fundada em 2002 na África do Sul, realizou uma pesquisa preliminar em dez das 12 cidades que sediarão os jogos da Copa de 2014 para avaliar o impacto potencial sobre os ambulantes. Além de levantamento de dados, foram feitas diversas entrevistas com lideranças de vendedores informais, representantes do movimento sindical, de movimentos sociais e de organizações não-governamentais reunidos no documento “Copa do Mundo para Todos – O retrato dos vendedores ambulantes nas cidades-sede da Copa do Mundo de 2014”, que a Pública apresenta aqui em primeira mão.

Leia aqui a primeira parte do documento

Leia aqui a segunda parte do documento

Leia aqui a terceira parte do documento

O objetivo da Streetnet é contribuir para a mobilização e organização dos vendedores informais para o estabelecimento de redes municipais e de fóruns de negociação nas cidades-sede dos jogos. O estudo traz um panorama da situação atual dos vendedores ambulantes no Brasil, mostrando quem são, o que querem e como serão afetados pelo megaevento de 2014. Enquanto muitos nem sabem da existência das zonas de exclusão, outros já se articulam e até se reuniram em um Fórum convocado pela StreetNet no fim do ano passado para se articular. Do encontro saiu uma nota de repúdio com o título: “Outra Copa do Mundo é possivel: Respeitando os direitos dos (as) vendedores (as) informais”. Entrevistada, uma liderança carioca disse: “Copa não é para pobre porque a população não vai ganhar com o evento e certamente o ambulante vai sofrer muito, como ocorrido nos jogos Pan-americanos”.

O relatório da Streetnet ressalta que “nas cidades estudadas, desde o início de 2011, diversas prefeituras têm revogado unilateralmente as permissões de comerciantes de rua, principalmente dentro desses perímetros que tendem a ser espaços cedidos à FIFA durante a Copa”.

E mostra também que há falhas e falta de articulação entre as leis municipais e federais que emitem licenças aos trabalhadores informais e que na grande maioria das cidades a solução encontrada pelo poder público é o de realocar os vendedores para shoppings populares longe dos centros e das vistas do público. Especificamente sobre os preparativos para a Copa, o documento diz que “as cidades que hospedarão jogos da Copa do Mundo vêm passando por um processo de gentrificação, fortemente relacionado à produção da assepsia urbana, como forma de adequação das cidades ao megaevento e sua formatação como Cidades Globais” e aponta que a falta de informação sobre o megaevento é tão grande que muitos ainda vêem com otimismo a chegada dos jogos à cidade, sem sequer ter ouvido falar em zona de exclusão.

Nora Wintour, coordenadora de campanha da StreetNet que acompanhou a Copa na África do Sul, diz que a falta de informação é característica dos eventos da Fifa: “Acredito que ao menos 100 mil ambulantes foram afetados pelas zonas de exclusão e fan parks. Mas somente na metade de 2009 (menos de um ano antes da Copa da África do Sul, portanto) os ambulantes ficaram sabendo do que iria acontecer. Por isso não houve tanta mobilização”. Ela conta que com as campanhas de divulgação, incluindo a da própria StreetNet e temendo a má publicidade, a Fifa disse que habilitaria vendedores ambulantes para atividades oficiais especiais: “Nunca vimos isso acontecer”.

Veja um resumo do que diz o documento sobre cada uma das cidades pesquisadas:

Belo Horizonte


De acordo com a pesquisa, a cidade conta hoje com cerca de 25.000 vendedores informais: 47,8% apresenta uma renda próxima a um salário mínimo e 32% ganha de um a dois salários. Os trabalhadores já enfrentam impactos  gerados pelas reformas para a Copa, com destaque para os que trabalhavam perto do Mineirão: “Cerca de 130 famílias foram atingidas com o fechamento do Estádio do Mineirão, sede dos jogos da Copa em Belo Horizonte. Na cidade mineira, os dois principais estádios foram fechados ao mesmo tempo para a realização de reformas. Os jogos dos times que participam do campeonato nacional de futebol foram transferidos para outras cidades do estado, dificultando o trabalho dos ambulantes. Durante a redação dos relatórios de impacto social da obra de reforma do Mineirão, ressaltou-se a necessidade de realocação dos feirantes – que chegavam a trabalhar três dias por semana no comércio durante os jogos e eventos realizados no estádio e tinham esta atividade como sua principal fonte de renda. Um ano depois, os vendedores continuam sem nenhuma política de compensação pela perda da renda.

Brasília

Em Brasília, a maior concentração de camelôs era ao redor da Rodoviária do Plano Piloto 21. Alguns conseguiram licença para comprar quiosques dentro da rodoviária e o restante foi transferido para shoppings populares. A maior reclamação sobre os shoppings – na maioria das cidades – é a de que ficam longe do fluxo de pessoas. Segundo dados apresentados no documento, os quiosques e trailers proporcionam emprego direto a 60 mil pessoas e indireto a cerca de 100 mil pessoas em Brasília. Mesmo dizendo que ainda não estão sentindo os impactos da Copa de 2014, os vendedores já tiveram que arcar com a construção de novos quiosques, impostos pela necessidade de revitalização da cidade para o megaevento: “Estes vendedores tiveram que arcar com a edificação (…) se endividando através de empréstimos facilitados pela Associação Comercial do Distrito Federal”.

Cuiabá

O comércio informal em Cuiabá, segundo a pesquisa, se caracteriza por uma divisão nítida entre camelôs e artesãos. Os camelôs estão estabelecidos principalmente nas calçadas e e em dois shoppings populares. Já os artesãos ficam nas praças, em feiras que acontecem em dias determinados. Segundo números da prefeitura de Cuiabá, cerca de 400 vendedores ocupam o entorno da Praça Ipiranga, no centro da cidade, e são as obras de mobilidade urbana nessa área que apresentam maior potencial de impacto sobre os vendedores de rua. A construção de corredores de ônibus, que implica no alargamento de vias e redução dos espaços destinados às calçadas, não deixa espaço para as barracas dos vendedores informais. Além disso, a revitalização do entorno tem como um dos objetivos a retirada desses ambulantes, amparada na  legislação municipal que não permite a atividade informal nas ruas.

Fortaleza

“O comércio informal no centro tornou-se referência e foi se estabelecendo cada vez mais como saída para os trabalhadores urbanos que precisam de uma atividade para sobreviver” explica o documento. A atividade também aparece com destaque em outras áreas da cidade mas, no centro, a feira da praça da estação tem cerca de 1.200 ambulantes cadastrados. As obras para a realização da Copa do Mundo, além do centro, atingem áreas como a Av. Beira Mar e a Praia de Iracema. Os ambulantes que trabalhavam ao redor do estádio Castelão (em reforma) já tiveram de mudar de local. Os trabalhadores de outros pontos turísticos e públicos se dizem preocupados com a ameaça de desemprego por causa das zonas de exclusão e da fiscalização dos artigos falsificados. Há grande falta de informação, segundo o documento, dificultando a compreensão do que de fato irá acontecer.

Manaus

Em Manaus é possível encontrar vendedores ambulantes em diversos locais da cidade, como o centro, a área portuária e em pontos turísticos. Além das bancas, há os “carros camelôs”. Segundo dados do texto, existem 4,8 mil ambulantes na cidade de Manaus, sendo 2,5 mil deles estabelecidos no centro, especialmente nas redondezas da Praça Matriz. Na gestão atual, como coloca o documento da StreetNet, existe um projeto de revitalização chamado “Centro Vivo 28” e os ambulantes não fazem parte dos planos. Eles dizem que não sabem o que poderá acontecer durante a Copa do Mundo porque não receberão informações.

Porto Alegre

Apesar de não haver estatísticas públicas oficiais sobre o número de vendedores informais na cidade, estimativas de lideranças populares apontam que  em 2007 havia cerca de 4 mil na região central da cidade. O texto da StreetNet diz que especialistas do Observatório das Metrópoles de Porto Alegre entendem que a construção de um camelódromo na cidade é parte de um projeto de higienização e exclusão da população de baixa renda dos pontos turísticos para a Copa do Mundo. Existe também a preocupação com um pequeno bolsão de ambulantes do Parque da Marinha, que é bastante próximo do estádio Beira Rio e com vendedores de lanches e bebidas do entorno dos estádios “que serão os principais prejudicados pela zona de exclusão prevista pela FIFA”.

Natal

A zona leste de Natal, considerada centro da cidade, além de dispor de diversos comércios, serviços e prédios governamentais, é uma área caracterizada por forte presença de trabalhadores da economia informal, sejam eles ambulantes, camelôs, trabalhadores de quiosques, entre outros. A pesquisa aponta que estão cadastrados 1.600 ambulantes, 1548 feirantes e 222 boxes de mercado. Sobre o impacto da Copa, há grande desinformação e descontentamento por parte dos vendedores de rua. Estima-se que 670 famílias serão afetadas no projeto inicial. Muitos dos que vendiam nas proximidades dos estádios tiveram que mudar de local de venda por causa das obras para o megaevento.

Rio de Janeiro


As lideranças de vendedores de rua calculam a existência de 60 mil ambulantes no município. Um levantamento feito pelo Movimento Unido dos Camelôs (MUCA) em 2009 apontou no centro 6 mil vendedores informais chamados de “pulo”, aqueles que vendem a cada dia num local diferente, não possuem ponto fixo e que são caracterizados por exporem suas mercadorias em uma estrutura de venda que é fácil de desmontar para que possam escapar da fiscalização.

O relatório explica que o principal impacto causado pela Copa, é o “estado de exceção” que vigora desde os preparativos do megaevento, permitindo que projetos sejam realizados sem controle social, ignorando a violação de direitos sociais, atingindo também vendedores de rua. O governo expulsou ambulantes do entorno do Maracanã  para execução das obras de reforma e a expectativa das lideranças populares é que os comerciantes informais que costumavam vender na região antes da obra não sejam autorizados a voltar quando a reforma for concluída. As organizações de vendedores ambulantes e artesãos preocupam-se com a atitude das autoridades municipais durante a Copa. Os vendedores de feiras de artesanato da orla dizem já sofrer com eventos esportivos menores, quando são impedidos de montar a feira.

Salvador

Em Salvador, até o fechamento do relatório, não havia muitas obras de infraesturura, com exceção da reforma do estádio Fonte Nova, local onde ocorrerão os jogos da Copa na cidade. Os vendedores que antes trabalhavam neste local, hoje exercem suas atividades no outro estádio da cidade e não se sabe quais seriam as possíveis remoções. Há projetos de alargamento de vias no centro da cidade que farão com que o espaço disponível para a colocação de barracas e bancas sejam diminuído e projetos de realocação dos vendedores de rua da cidade, hoje presentes em grande quantidade em ruas importantes. Caso haja a remoção maciça destes vendedores, o número de afetados pode ultrapassar a marca de 12 mil famílias, número aproximado de vendedores de rua presentes nos principais bolsões de camelôs, segundo as associações entrevistadas.

São Paulo


Entre 2009 e 2010 existiam 158 mil vendedores ambulantes em São Paulo segundo a pesquisa. 43,1% tinha renda mensal de até um salário mínimo. Em média, os vendedores trabalham 40 horas semanais na cidade. “O cenário é de total intimidação dos vendedores informais por parte da prefeitura. (…) Através do convênio que a prefeitura estabeleceu com a polícia militar na chamada ‘Operação Delegada’ e diminuiu em 91% o número de licenças” diz o texto. Na análise da StreetNet, o principal desafio colocado aos vendedores informais no enfrentamento da exclusão social da Copa é que as organizações representativas são fragmentadas e algumas acreditam e mantém uma relação de clientelismo com vereadores. Para a organização, é necessária a articulação de uma rede capaz de enfrentar as ações arbitrárias da prefeitura e, na Copa, da FIFA.

*Fonte: Implications for Street Traders of the 2010 Soccer World Cup in South African Host Cities By Patrick O’Callaghan

Colaborou Jessica Mota

 

 

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