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Entrevista

“Tentei me aproximar da extrema brutalidade com os negros”

Com a HQ "Cumbe", Marcelo D’Salete traz histórias sobre a resistência negra no período colonial brasileiro; obra ganhou o principal prêmio mundial dos quadrinhos

Entrevista
9 de agosto de 2018
12:25
Este artigo tem mais de 6 ano
Uma das cenas da história Kalunga de Marcelo D’Salete, presente em “Cumbe”

O maior prêmio de quadrinhos do mundo, o Eisner Awards, foi vencido pelo brasileiro Marcelo D’Salete há menos de um mês. A obra é “Cumbe”, que aborda a resistência à escravidão no período colonial brasileiro. “Um prêmio como esse para esse tipo de narrativa, dentro de um contexto político tenebroso que temos hoje, em que a gente tem um terreno político difícil, com fantasmas antigos que voltam e estão disputando votos, com discurso extremamente reacionário, misógino, racista, sexista, mas que, apesar disso, também é um momento em que os grupos mais progressistas podem se reinventar”, reflete o paulistano que, nascido e criado na zona leste de São Paulo, teve o hip hop como ferramenta de formação política no final dos anos 1980.

“Aquele movimento, de certo modo, me chamou atenção. Eram músicas como “Força ativa”, “Pânico na zona sul”, dos Racionais, as músicas do Thaíde”, conta o também professor que, além de “Cumbe”, publicou “Encruzilhada”, que trata de violência, jovens negros e discriminação em grandes cidades, e “Angola Janga”, o trabalho mais recente, uma história de Palmares (Veneta, 2017) que aborda os antigos mocambos da serra da Barriga, em Alagoas.

O título do premiado “Cumbe”, ele explica, faz referência à linguagem banto, de origem africana. “Significa chama, luz, força, fogo.” Também publicado pela editora Veneta em 2014, o livro ganhou uma versão em inglês pela americana Fantagraphics em 2017.

Lá, a HQ ganhou na categoria melhor edição americana de material estrangeiro. Nesta entrevista por e-mail concedida à Pública, D’Salete fala sobre a premiação e como sua vida e suas vivências em relação ao racismo e o papel do negro na sociedade se relacionam com a escolha dos temas de suas obras. “Sempre falo que a gente não consegue entender ou tentar entender a história do Brasil sem tentar incluir essa perspectiva negra”, afirma.

De quebra, disponibilizamos alguns dos quadrinhos de “Cumbe”, que será relançado neste sábado em São Paulo.

Marcelo, que reflexão você faz agora que venceu o prêmio Eisner com quatro histórias em que o negro é o protagonista?

Considero que a premiação do Eisner relaciona-se um pouco com a história recente dos EUA e também de outras premiações. A gente tem uma discussão sobre a representação e sobre prêmios que são indicados ou não para artistas negros em filmes. O Spike Lee chegou a falar sobre a ausência de negros ganhadores do Oscar.

Claro que lá eles têm uma tradição de filmes tratando desse tema bem relevante. A gente teve alguns exemplos recentes que, novamente, chamaram atenção para isso e conseguiram, ao que tudo indica, um público bem considerável, que é o caso de “Geralt” traduzido aqui como “Corra”, muito afiado, questionador, instigador e mais recentemente o caso do “Pantera Negra”.

Para além de uma questão de mercado, de venda, de mostrar que existem pessoas interessadas, você tem uma questão que é o tema, a história que está sendo retratada, os temas que estão sendo discutidos e o interesse crescente de pessoas negras e não negras em conhecer mais dessa perspectiva.

Não podemos esquecer que, no caso de “Get Out” e “Pantera Negra”, são filmes não só com temática negra, mas onde os criadores e atores são negros.

Em geral, premiações ajudam a dar visibilidade a artistas e temas. Então o que esse prêmio significa para o quadrinho nacional e para os quadrinistas que estão na estrada?

Com “Cumbe” sendo publicado nos EUA no ano passado, a gente percebeu que teve uma atenção razoável. Foram diversas críticas positivas ao livro, interesse das pessoas por conhecer mais desse período, dessa perspectiva negra. E no Brasil também, na América como um todo. Isso chamou atenção, fez com o que livro fosse bem lido, enfim, chegasse num público razoável. E, por outro lado, o modo de contar, utilizando a história em quadrinhos sem se ater apenas àquele formato de narrativa de super-herói, num formato de contos que se entrelaçam, é algo novo que chamou atenção. “Cumbe” não é uma história única, não é um romance, se assemelha mais a um livro de contos. E fiquei surpreso, pelo menos na área de literatura, de prosa, porque livros de contos são aqueles, pelo menos em termos de vendas, pouco considerados. E isso não foi um empecilho para que ele conseguisse o público que conseguiu.

Então, um prêmio como esse para esse tipo de narrativa, dentro de um contexto político tenebroso que temos hoje, em que a gente tem um terreno político difícil, com fantasmas antigos que voltam e estão disputando votos, com discurso extremamente reacionário, misógino, racista, sexista, mas que, apesar desse momento de crise, os grupos mais progressistas também podem se reinventar. A gente não pode perder isso de vista. É preciso criar essa alternativa e “Cumbe” participa de todo esse momento.

Como a sua vida e suas vivências em relação ao racismo e o papel do negro na sociedade se relacionam com a escolha dos temas de suas obras? Como isso se desenvolveu em você?

Venho de uma família da zona leste de São Paulo, primeiro morei em São Mateus, depois em Artur Alvim, locais onde passei minha infância e adolescência. Sou de uma família negra que não discutia o racismo frequentemente, diariamente, na nossa trajetória, mas muitas vezes o tema aparecia.

No final de 1980, eu e minha irmã, trabalhando no centro, nos deparamos com o movimento hip hop. Eu ouvia muito no rádio as músicas que estavam sendo lançadas, também em algumas festas. E todo aquele movimento, de certo modo, me chamou atenção. Eram músicas como “Força ativa”, “Pânico na zona sul”, dos Racionais. Talvez meu primeiro contato seja a partir do Thaíde [rapper] porque tinha uma das músicas dele que tinha sido parodiada e que tocava no antigo programa da TV Pirata. Isso me chamou a atenção para a questão do rap, do movimento jovem que chegava e que criava raízes muito profundas, porque a gente está falando de uma comunidade, de uma juventude negra, naquele momento, muito carente de representação. É certo que a gente tem uma história de contestação também no samba, mas em outro formato, e não era o samba que chegava em casa. Só fui conhecer Geraldo Filme, por exemplo, por influência do Kiko Dinucci muito depois, no final de 1990.

Então, o rap acabou cumprindo esse papel de formação política nas periferias muito forte, e na década de 1980 a gente tem uma nova organização das periferias no pós-ditadura que é significativa. Ali os movimentos sociais estavam em ebulição. Eu acabei acompanhando boa parte desse processo, discutia isso com os colegas, na medida do possível. Tive contato com os Cadernos Negros também no final de 1990, a partir de uma peça que fui ver perto do bairro do Bom Retiro e que falava sobre dança, cultura, história negra. Tinha uma banca vendendo os livros dos Cadernos Negros. Foi a primeira vez que tive contato com esse tipo de literatura. Foi muito rico para mim perceber que existia uma história de luta escrita sobre o negro no Brasil. Depois acabei participando do Núcleo de Consciência Negra da USP, um momento de formação importante. E, já na universidade, eu participava com os colegas de grupos que estavam nessa discussão.

Como foi o estudo que você fez para desenvolver “Cumbe”?

A partir de toda essa vivência foi que, em 2004, tive contato com um curso falando sobre história do Brasil voltado para pensar a experiência negra dentro do território brasileiro. Sempre falo que a gente não consegue entender ou tentar entender a história do Brasil sem tentar incluir essa perspectiva negra. Então, a partir de 2004 eu li um livro sobre Palmares e me interessei muito. E comecei a pensar numa narrativa sobre isso. Em 2006, foi quando comecei a fazer os primeiros roteiros e descobri que faltava muita coisa para construir aquilo de modo mais interessante, com mais aprofundamento, e não apenas recorrendo a certos esquemas que a gente tem quando pensa em escravidão no Brasil.

Apenas dentro da oposição escravidão x liberdade, por exemplo. O termo “liberdade” é algo que vem bem depois na história do Brasil. A ideia de liberdade que a gente tem hoje tem muito a ver com Revolução Francesa, que é muito diferente de liberdade, ou melhor, de usar o termo “livre”, “ser livre” no século 17. Eu fui atrás dessas histórias, cheguei a algumas obras de autores que falavam um pouco mais de casos bem específicos. Eu vi que ali tinha essas dicas, essas experiências que eu queria trazer para as histórias em quadrinhos. Minha intenção sempre foi falar de casos específicos, sempre foi pensar nisso enquanto ficção mais do que apenas dado histórico.

A minha forma de me alinhar com isso foi procurar histórias razoavelmente palpáveis e interessantes para os leitores de hoje e a gente discutir esse universo, tentar se aproximar do que foi aquele contexto, do que foi aquela extrema brutalidade em relação a esses grupos e à população negra.

E qual a origem desse título para a versão brasileira? E “Cumbe” se relaciona de que maneira com a sua obra mais recente, “Angola Janga”, sobre o quilombo dos Palmares?

O título “Cumbe” vem de uma língua chamada quimbundo e faz parte de um grande tronco chamado banto, que pega ali o centro e o sul da África. Significa chama, luz, força, fogo. É sinônimo também de quilombo na Venezuela. A gente teve na história do Brasil, no século 18, logo depois do fim de Palmares, um quilombo chamado “Cumbe”, na época chamavam de mucambo. Considerei que era o termo ideal para o livro, e que a ideia era falar de resistência negra. Cumbe tinha todo esse vigor, energia, que era necessário para um livro assim.

As pessoas geralmente não conhecem a palavra “cumbe”, ela meio que se perdeu na nossa história. Mas era parte daquela realidade do Brasil dos primeiros dois, três séculos, porque a gente tem ainda hoje “cumbe” sendo citado em versos de jongo e outras celebrações brasileiras.

E “Cumbe” está totalmente relacionado com “Angola Janga”, que é um livro sobre Palmares. Mas “Cumbe” é um livro que vai falar sobre a resistência negra à escravidão, falando também de mucambos, falando também de experiências mais singulares e não individualizadas desses negros e negras do período colonial, enquanto “Angola Janga” vai falar sobre isso de uma perspectiva mais coletiva. Mas as duas obras estão muito relacionadas. “Cumbe” está falando do ambiente da escravidão de uma forma mais ampla, “Angola Janga” vai se aprofundar principalmente na saga sobre Palmares.

Falando das possibilidades da linguagem dos quadrinhos para tratar de temas negligenciados e de grande complexidade, você acha possível massificar o acesso a essas produções, fazer chegar às periferias? Vê espaço no mercado editorial para mais produções de temáticas relacionadas às lutas que envolvem os direitos humanos?

A gente está num momento de transformação. A gente tem um público leitor no Brasil que não é tão amplo. E um público consumidor de livros muito pequeno comparado a outros locais. A questão das ações afirmativas, de cotas, há mais de 15 anos têm formado esse ambiente universitário. As discussões sobre identidade e sobre políticas afirmativas têm se ampliado. Estudantes negros estão sendo formados e estão querendo uma nova forma de pensar na sua história e livros como “Cumbe”, como “Angola Janga” e diversos outros autores negros, da Djamila Ribeiro, da Cidinha da Silva, Allan da Rosa, contribuem para trazer essa reflexão, para tentar aprofundar a nossa experiência dentro da literatura, que não é algo novo.

Na verdade, existe uma literatura, existem escritos negros nos jornais desde o pós-abolição com uma pauta bem específica e que permanece ainda hoje, e a questão de atingir, por exemplo, a educação em outros âmbitos, de realmente lutar por essa integração, igualdade, é algo que desde a abolição não aconteceu. Acho que tem espaço para isso.

Posso dizer com alegria que com “Cumbe” e “Angola Janga” fiquei extremamente temeroso de não chegar no público que eu queria, de não conseguir vender nada, ficar com o livro encalhado, mas o livro foi bem divulgado, teve um alcance que eu não imaginava. Existe público para esse tipo de narrativa, não apenas pela história mas pelo modo de contar essa história, instigante, interessante, que traga as pessoas para a discussão.

Como você avalia, por exemplo, o uso dos quadrinhos para fazer reportagem jornalística? Cito Joe Sacco, por ser uma referência nesse aspecto. Mas há algumas produções nacionais nesse sentido. Já leu? O que acha do estilo?

Acho que é mais uma das possibilidades que os quadrinhos trazem. Nada mais interessante, já que os quadrinhos nascem no século 19 com a publicação de jornais e revistas, era um caminho até esperado essa mescla de quadrinhos com fatos jornalísticos.

Conheço alguns autores como o Joe Sacco, o Alexandre de Maio, Jesus Cossio, que fez um livro falando sobre o Sendero Luminoso do Peru. Há muito para ser explorado nos quadrinhos e dentro desse formato de reportagens. Fico feliz que tenha gente explorando a nossa história, as nossas contradições, nesse formato.

Uma das cenas da história Kalunga de Marcelo D’Salete, presente em “Cumbe”
Rafael Roncato/Divulgação

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