Há cidades cuja história oficial é quase totalmente capturada pela trajetória de uma só pessoa, uma grande personalidade talhada em pedra e cujo nome se repete em placas turísticas. Mas há também o oposto, pessoas cujas vidas são devoradas pela história da cidade onde moram, quando território e gente se tornam um só personagem. É o caso de Maria da Guia. E é o caso de Altamira, um município-floresta paraense a 818 km de Belém, palco de uma tragédia em quatro atos sobre um cotidiano de estrada-barragem-migração-crime que rouba a história de sua própria gente.
A vida de Maria acompanha essa transformação social. Paranaense, ainda criança ela se mudou com a família para as margens da Transamazônica, no rastro das promessas de futuro feitas e imediatamente abandonadas pelo Estado brasileiro. Em Altamira, Maria se tornou uma importante liderança sindical, tendo sofrido uma série de ameaças por defender os direitos dos trabalhadores de diversos setores e chegando a atuar diretamente nas denúncias dos funcionários dos canteiros das obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, entre 2011 e 2015.
A construção da hidrelétrica, central para a compreensão de transformações profundas que abalaram Altamira, também impactou diretamente a vida pessoal de Maria. Desde antes do alagamento do Rio Xingu, causado pelo início das operações de Belo Monte, o município já sentia impactos: recordes nacionais de desemprego, homicídios, guerra de facções e um aumento significativo no consumo de drogas.
O que antes eram denúncias da Maria sindicalista passaram a assombrar a Maria mãe. O mais velho de seus três filhos se tornou dependente químico enquanto trabalhava nas obras de Belo Monte. Alguns anos depois, o mais novo foi uma das vítimas de outro ranking que passou a ser liderado por Altamira: o de suicídios. A perda de Misael Junior em 2020 fez Maria integrar o coletivo Mães do Xingu, outra importante organização da sociedade civil que luta por saúde e segurança.
Maria recebeu a reportagem da Agência Pública em sua casa. A entrevista foi interrompida frequentemente pelo celular – que tocava ora com demandas do sindicato, ora com questões do coletivo, e ainda com contatos por sua filha do meio. Serviu café e biscoitos, mostrou o quarto de Misael, molhou as plantas e, sem precisar falar, mostrou que Altamira resiste sob ruínas devido ao cuidado das Marias que, contra estatísticas, maternam todo um município.
1º ato – O inferno verde: Maria é engolida pela primeira vez
O “Hotel das Cobras” é uma das primeiras memórias que Maria tem de Altamira. Naquela noite, em 1978, sua família dormia pela última vez no ônibus no qual atravessou o país por sete dias, saindo de Umuarama, no interior do Paraná, em direção ao Xingu. Oito anos antes, o general Emílio Garrastazu Médici, então presidente, pisou no município e derrubou uma castanheira de 50 metros de altura, para marcar o início da construção da rodovia Transamazônica.
Na solenidade, a imprensa nacional chamou Altamira de “pequena cidade no interior do Pará”. Maria também era pequena, a caçula da família, com apenas 13 anos, quando chegou em um município que já começava a receber “os homens sem terra” em suas terras supostamente sem homens, a convite do slogan de colonização da ditadura e por meio da estrada que “rasgaria o inferno verde”.
Ela lembra que naquele trecho restante de rodovia, na noite que passou esperando uma balsa para atravessar o rio Xingu, foi atacada por muriçocas, ouviu gritos e cantos de indígenas – afinal, a terra tinha, sim, homens (e mulheres) – e comeu uma mistura de carne de cobra e jacaré, comprada pelo pai no Hotel das Cobras, à beira de um trecho já inaugurado da Transamazônica, local que antecipava, no nome, o tipo de alimentação oferecida.
A família de Maria não entrava na categoria “homens sem terras”. Eram sulistas brancos que seguiram as botinas de outros proprietários de terra que subiram para colonizar a Amazônia. Eles tinham uma chácara em Alto Paraíso (PR), pequeno município a uma hora de Umuarama, onde plantavam roças de café.
Após algumas geadas prejudicarem a produção da família, seu pai, Manoel, decidiu ouvir o chamado para “vencer a floresta” e vendeu tudo. Ouviu, literalmente, porque já não conseguia ver ou ler as propagandas da Transamazônica em jornais ou revistas, por ter perdido a visão seis anos antes. Mesmo assim, pegou a estrada com a esposa, Raimunda, e os nove filhos. Foi a primeira vez que Altamira engoliu Maria.
“Quando chegamos aqui, era só palafita, igarapé. Meu pai comprou uma casinha de barro na cidade, coberta de sapé. Chovia, chovia, o quintal ficava encharcado, cheio de ratos. A gente dormia em redes, eu acordava com ratos roendo meu pé”, lembra. “Em Altamira, eu via água correndo, esgoto, urubus, coisa podre.”
Mas o pior era a terra que a família ganhou do governo, como tantos outros agricultores da época. Maria não se lembra do tamanho, somente de que ela não produzia e já estava tomada por capim.
“Minha mãe chorava, chorava de arrependimento pela vida que a gente deixou para trás no Paraná”.
Antes, a família dormia em camas e vivia com saneamento básico. A diferença pesou e, então, a família de agricultores decidiu vender novamente suas terras e deixar a Amazônia, quatro anos após terem chegado.
Em 1982, a família de Maria partiu para tentar a vida no interior de São Paulo, com exceção de dois irmãos, que ficaram em Altamira. Pais e demais filhos partiram para o Sudeste, onde viveram em Barueri e Guarulhos. Os jovens passaram a trabalhar em venda de peças e em uma padaria, enquanto Maria, então com 17 anos, passou a atuar como secretária em um escritório odontológico.
Em 1984, Maria voltou com os pais para Umuarama, onde viveu por mais 15 anos. Destes, trabalhou por 12 na prefeitura municipal. Casou e teve dois filhos, André e Michele. Em 1999, decidiu fugir do relacionamento, que afirma ter sido abusivo. “Ele tinha problemas com álcool, vivia me ameaçando.” Os irmãos, que nunca saíram de Altamira, lhe ofereceram ajuda para voltar, com os dois filhos e a mãe, já que eles perderam o pai, falecido ainda no Paraná. Foi então que as histórias dela e a do município voltaram a se cruzar.
2º ato – 15 mil homens, 850 km na Amazônia, uma sindicalista
Quando Maria retornou a Altamira, a cidade já havia se transformado. “A chamada do governo federal para a Transamazônica acabou trazendo muitas pessoas de muitos lugares”, conta. A população do município saiu dos antigos 40 mil em sua infância para praticamente o dobro no início dos anos 2000.
Depois de um ano de retorno ao solo xinguano, ela conseguiu um emprego no Sindicato da Construção Civil e do Setor Florestal de Altamira e Região da Transamazônica (Sinticma). Como grande parte das tais “terras sem homens” foi doada a latifundiários, muitos dos quais nunca chegaram a produzir na região – apesar de essa ser uma condição dos Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATPs), que dividiram enormes fatias de território com a agropecuária –, os conflitos agrários já explodiam na região. Ainda sem terra, a maioria da população que migrou para Altamira, principalmente nordestina, passou a trabalhar nas madeireiras. O Sinticma representava esses trabalhadores.
Maria começou limpando banheiros e varrendo os cabelos cortados por dois cabeleireiros que dividiam o espaço do Sinticma. Com o afastamento do então presidente do sindicato, no entanto, ela passou a auxiliar com as finanças. “Sem nenhum conhecimento. Às vezes eles saíam e eu atendia um ou outro trabalhador.” Dois anos depois, ela se tornou presidente do sindicato, cargo no qual continua até hoje, no seu quarto mandato. “Eu só digo que comia, bebia e dormia a CLT, porque não tenho nenhum curso, só o ensino médio, e não conhecia nada da legislação trabalhista, mal sabia dos meus direitos”, lembra.
Quando assumiu como primeira mulher presidente do Sinticma, havia 25 empresas madeireiras em Altamira, e 90% dos trabalhadores eram homens. Foi também nessa época que Maria conheceu o segundo marido, e, em 2003, deu à luz o terceiro filho, Misael Junior. Maria passou a dividir o cuidado dos filhos com o dos 15 mil trabalhadores que o sindicato comportava, uma parcela significativa da população local. “Os trabalhadores não sabiam nem o que era um exame de audiometria, o que era um Equipamento de Proteção Individual (EPI), mal tinham carteira assinada.”
Ao longo dos anos, Maria foi conhecendo toda a região da Transamazônica. O sindicato abrange 850 quilômetros, do município de Placas até o de Pacajá. “Eu passava dias na estrada. Era ponte quebrada, Kombi atolando, horas e horas de viagem.” É um ramo hostil para fiscalizar. Se na extração de madeira mandava a lei da pistolagem, nas serrarias visitadas por Maria a realidade não era tão diferente. Em 23 anos no cargo, ela registrou cinco boletins de ocorrência por ameaças recebidas, a maioria feita por donos de madeireiras que não aceitavam a exigência das leis trabalhistas.
A ameaça mais grave que sofreu foi durante uma visita de orientação nas madeireiras de Uruará, em 2018. Maria convocou os empresários para uma reunião na Câmara Municipal. O objetivo era informar quais as irregularidades encontradas e demandar que fossem sanadas antes da visita do Ministério Público do Trabalho (MPT). Durante sua fala, um dos madeireiros questionou o outro: “Será que essa Maria não tem medo de voltar pela Transamazônica?”.
“Eu ficava morrendo de medo quando ia para esses lugares cobrar direitos”, confessa Maria da Guia.
Ao longo da carreira, Maria foi responsável por acompanhar inúmeras denúncias de trabalho em condições análogas à escravidão. Ela revela, entretanto, que desde a reforma trabalhista de 2017, as fiscalizações enfraqueceram muito na região. “Fazia três anos que não tinha nenhuma ação de fiscalização. Agora, finalmente, está acontecendo. Em 2022, fecharam cerâmicas em Anapu e Uruará, muita gente morando lá.” Hoje, o trabalho de Maria abrange principalmente os trabalhadores de cerâmicas.
Ainda em 2007, a Operação Arco de Fogo, do Ibama, fechou praticamente todas as madeireiras na região, devido à origem ilegal das toras. O Sinticma não representava o patronato das madeireiras, e a ele não cabia denunciar crimes ambientais, somente trabalhistas.
Enquanto a polícia prendia os empresários madeireiros, Maria foi para a beira do cais de Altamira, com 5 mil trabalhadores, para demandar a possibilidade da legalização da indústria ou outras oportunidades para os funcionários. Seus discursos inflamados, na época, geraram sua primeira ordem de prisão, sob acusação de “incitação ao crime”. “Fiquei dez dias escondida na casa de um amigo. Um advogado acabou nos ajudando”. O processo foi arquivado.
A segunda ordem de prisão veio alguns anos depois, em 2013, já no rastro de Belo Monte. Foi o início do atravessamento da barragem em sua luta e na sua vida pessoal. Quando o burburinho sobre a construção da hidrelétrica cresceu, a partir de 2010, Maria teve esperança de que os trabalhadores desempregados das madeireiras pudessem passar por uma qualificação e conseguir emprego nas obras. “A gente viu uma luz no empreendimento, mas, quando ele acabou, não vimos mais nada. Hoje não são nem 1.500 trabalhadores, e é tudo gente com cargo alto, estudada. Nosso povo não conseguiu acesso.”
3º Ato – Belo Monte: uma usina no caminho e nada mais foi o mesmo
Passaram pela obra de construção de Belo Monte cerca de 100 mil funcionários, parte deles vinda das madeireiras e muita gente vinda de fora. O sindicato presidido por Maria passou a representar parte desses trabalhadores. Em 2013, durante a maior greve de trabalhadores da barragem, quando eles paralisaram os canteiros de obras, Maria foi convocada para representá-los junto à Central Sindical e Popular Conlutas.
“A gente passou pelas barreiras e guaritas de moto, dobramos toda a segurança e pulamos lá pra dentro do canteiro do Pimental. Cinco mil trabalhadores esperando por nós. A polícia e a Força Nacional vieram pra cima, mas nós percorremos 5 km até o outro canteiro, de Bela Vista, e paralisamos lá também. Ficamos dois dias presos dentro da obra, porque a segurança da Norte Energia [empresa concessionária de Belo Monte] não nos deixava sair”, afirma.
Entre as principais pautas da greve, segundo Maria, estava a violência da segurança patrimonial da Norte Energia. “O que o sindicato mais recebia eram denúncias de humilhação de trabalhadores. Eles dizem que quem morria na obra era jogado lá dentro das pedreiras. Não sei se é real, mas muita coisa absurda aconteceu ali.”
A empresa pediu uma ordem de prisão contra Maria, por invasão, tumulto e formação de quadrilha. A ordem foi entregue por um oficial de justiça. “Que, inclusive, era meu sobrinho”, relata, um exemplo singelo do absurdo das vidas operando em função da história de Altamira. A ordem de prisão gerou uma mobilização entre os movimentos sociais locais e, no fim, Maria recebeu apenas uma ordem de restrição que a proibiu de se aproximar a menos de 200 metros dos canteiros de Belo Monte. A barragem, no entanto, seguiu bem próxima.
“Nós participamos das quatro audiências públicas sobre Belo Monte, fazíamos a linha de frente. Não ficávamos atrás da mesa, íamos para a obra”, explica. Com a proibição, Maria passou a fazer visitas para acompanhar os trabalhadores dos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs), bairros periféricos planejados construídos pela Norte Energia, como condicionante de operação, para abrigar parte da população deslocada pela barragem. “A maior denúncia dos RUCs era o consumo de drogas entre os trabalhadores.”
Crime, castigo e família
Com o novo fluxo populacional trazido por Belo Monte, o crime organizado se instalou em Altamira, multiplicando a violência para números nunca antes vistos. Entre 2000 e 2015, a taxa de homicídios no município se multiplicou por seis, passando de 16,8 mortes por 100 mil habitantes para 105. Em 2017, Altamira liderou o ranking de cidades mais violentas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Um dos atingidos pelo crescimento do tráfico foi o próprio filho de Maria, André, que passou a trabalhar na construção dos RUCs, contratado pela empresa terceirizada Construtora Central do Brasil (CCB). “Meu filho caiu na droga, usou pedra e ficou muito ruim, quase morreu”, conta. “Eles fumavam lá dentro da obra mesmo, com o próprio chefe.”
Além da instalação do tráfico dentro dos próprios canteiros, as longas jornadas de trabalho também estimulavam a dependência. “Todos usavam muita droga. Os meninos trabalhavam intensamente, oito, 12 horas por dia, e não existia uma fiscalização para essas horas trabalhadas. Dormiam em alojamentos com conflitos diários e alimentação ruim”, explica. Foi a primeira vez que André, então com 23 anos, fez uso de alguma droga ilegal.
Pela queda no desempenho trazida pela dependência, o jovem acabou demitido, sem nenhum direito ou benefício. Segundo Maria, a CLT prevê afastamento para tratamento em casos de trabalhadores com dependência química. “Porque é uma doença. Mas não fizeram isso. Eu fiquei tão atordoada, porque não teve nada, mas só pensei em tirar meu filho de lá.” Depois de uma overdose, André aceitou a ajuda da mãe e foi internado por seis meses numa clínica particular em Ananindeua. Os R$ 10.500 da clínica saíram integralmente do bolso de Maria.
André se recuperou, casou e voltou para o Paraná para recomeçar a vida. A preocupação que sofreu durante a dependência do filho assombrou Maria por anos. “Se ele me pedia R$ 10 pra comprar um lanche, meu corpo já estremecia, porque eu achava que ele ia comprar pedra. Foi difícil pegar confiança.” Hoje, ele é um dos diretores dos Narcóticos Anônimos do município onde mora. Mas a história de André não foi a última vez que a família de Maria figurou nas estatísticas altamirenses.
4º ato – Mães do Xingu e os tempos de colecionar desafios
Com o fim das obras de Belo Monte, a partir de 2015, Altamira viveu uma grave onda de desemprego. Mais de 20 mil trabalhadores dos canteiros de obras foram demitidos e a economia local sofreu uma queda de 52% em um ano. Os homens desempregados dormiam nas ruas de Altamira e faziam filas intermináveis para entregar currículos. O desemprego alimentou o tráfico e colaborou para o aumento da violência. “De 20 currículos que o sindicato recebia, dez passaram pela obra da barragem”, estima Maria.
A falta de oportunidades e a queda na economia potencializaram a conjuntura nacional de crise. Os aparelhos públicos de saúde e segurança ficaram sobrecarregados com a nova população, que pulou de 90 mil, antes da barragem, para 170 mil durante sua construção, e hoje figura em cerca de 115 mil. Altamira ruiu. “Faltou tudo. Nossos filhos, que viveram no início da barragem, cresceram nessa transformação”, resume Maria.
O descumprimento das condicionantes ambientais e sociais pela Norte Energia e o reassentamento da população ribeirinha, que vivia da pesca e da roça, nos periféricos RUCs, completaram o cenário de terra arrasada. “As pessoas acabaram perdendo sua identidade, convívio e cultura”, prossegue Maria. Foi então que a saúde mental dos moradores de Altamira passou a ruir também.
No início de 2020, antes de a pandemia de Covid-19 atingir Altamira, a “pequena cidade no interior do Pará” voltou a estampar manchetes. Dessa vez, por uma alarmante taxa de suicídios entre jovens. Na época, a média de suicídios no Brasil, de acordo com o DataSus, era de 6 a cada 100 mil habitantes. Nos cinco primeiros meses daquele ano, 20 pessoas já haviam se suicidado em Altamira, nove delas, entre 11 e 19 anos. Uma delas, Misael, filho de Maria.
“Perdi meu filho, no dia 9 de fevereiro de 2020, para a depressão.” O dia seguinte seria a primeira aula de Misael, então com 17 anos, no curso de análise de sistemas no Instituto Federal do Pará.
O filho de Maria se deprimiu pela primeira vez em 2018, com a morte do pai. Maria e Misael pai estavam separados. “Era um menino que só tirava 8 ou 9. O colégio me chamou para dizer que ele havia mudado o comportamento. Eu perguntei se tinham uma psicóloga, a diretora disse que não.” Então, Maria procurou a rede pública para encaminhar o filho, e não conseguiu. Acabou pagando dez meses de tratamento com um psicólogo particular.
Misael melhorou por um tempo. Em 2019, estudou em um cursinho popular, onde conheceu a primeira namorada. Porém, no final daquele ano, ele deixou o emprego onde trabalhava, no comércio de Altamira, e no início do ano seguinte, depois de ter terminado o relacionamento, se deprimiu novamente. Ao longo de uma semana, Maria procurou ajuda de diferentes formas. Até que, no dia 9, Misael acordou, convidou os amigos para ouvir música e comer pipoca em casa e passeou de bicicleta. “Ele era conhecido na cidade pela bicicleta amarela.”
Às 17h30 saiu de casa e não voltou. Às 21h40, uma mensagem automática de despedida chegou ao celular de 30 amigos. Às 22h45, uma mensagem semelhante chegou ao celular de Maria. Por horas, viaturas já procuravam o menino. Encontraram o corpo na Torre do Mirante, local alto, posteriormente utilizado por outros adolescentes que tiraram a própria vida.
“O pessoal do IML chegou e me falaram que eu podia entrar, mas quando precisassem fazer o trabalho deles eu tinha que deixar. Eu fui caminhando, quando cheguei e fui abaixar, só lembro que dei um grito que não sei descrever. Aí não vi mais nada. Lembro que fiquei mais de dez dias sem comer, mais de 15 dias sem tomar banho.”
Ressignificando perdas
Maria levantou. E passou a integrar o Coletivo Mães do Xingu, que até então reunia mães de filhos assassinados na onda de violência de Altamira e, a partir de 2020, passou a juntar também mães de filhos que se suicidaram. O coletivo, inédito na região do Xingu, se inspira nos inúmeros movimentos de mães cujos filhos foram vítimas do terrorismo policial no país.
“Você não ter políticas públicas, saúde mental, segurança, também é um terrorismo do Estado contra nós. Um empreendimento como Belo Monte não pode deixar a população como deixou”, afirma Maria. “Meu filho não gostava de sair de casa, ele via tanta violência que falava que não queria sair.” Para as Mães do Xingu, a relação causal entre a morte dos filhos e a barragem, embora indireta, é nítida. Elas se somaram aos movimentos sociais que lutam para recuperar uma Altamira devastada.
Via Mães do Xingu, Maria conseguiu que o município contratasse mais servidores para o Centro de Atenção Psicossocial (Caps). “Antes era uma população usuária de 1.200 pessoas para uma psicóloga e nenhum psiquiatra.” Por meses, Maria percorreu corredores institucionais demandando mais atendimento para a população doente. Ficou, ela própria, sob uma depressão profunda. “Fui duas vezes também para a Torre do Mirante, tentar tirar minha vida.” Mas ela não conseguiu e voltou para a luta.
Maria foi para Belém, como delegada da Conferência Municipal de Saúde Mental. Conquistou a entrega de medicação psiquiátrica em Altamira pelo SUS, realizou projetos de saúde mental e ajudou a identificar outros quadros de ideação suicida entre a juventude altamirense. “Algumas coisas mudaram, outras continuam.” Hoje, uma população de 1.150 usuários reveza entre três psicólogos e uma psiquiatra que atende apenas quinzenalmente. A espera chega a três meses.
As Mães do Xingu criaram também o Fórum Regional de Segurança Pública, que se tornou uma organização central para a demanda de políticas que respondessem ao aumento da violência em Altamira. A Patrulha Maria da Penha chegou ao município através de projeto escrito pelo Fórum. O aumento da violência doméstica é outra consequência da barragem.
Hoje, Maria tem 57 anos. Não toma mais os seis remédios que tomava quando perdeu Misael, mas segue em tratamento psiquiátrico. A morte do filho disparou nela sintomas de uma doença degenerativa e hereditária que, por anos, acompanhou sua mãe. Por enquanto, ela sofre com falta de equilíbrio, desmaios e perda de consciência. “Mas eu tô preparada. Se for pra ficar na cadeira de rodas 37 anos, como minha mãe, eu fico.”
Maria é sindicalista há 23 anos e altamirense por opção. Hoje, encontra a paz cuidando de suas plantas e sintetiza uma certeza que a motiva: “as grandes conquistas da Amazônia se deram pelos movimentos sociais”.