O julgamento sobre o estabelecimento de um Marco Temporal para demarcação de terras indígenas, que finalmente se aproxima de uma conclusão no Supremo Tribunal Federal (STF), tem indicado uma espécie de “caminho do meio” para apaziguar o conflito entre indígenas e ruralistas: a indenização pelo valor da terra nua – e não somente pelas benfeitorias, como ocorre atualmente – às fazendas que se sobrepõem às terras reivindicadas pelos indígenas.
A proposta vem com um dilema intrínseco. Qual montante teria que sair dos cofres públicos para indenizar esses produtores rurais? Em levantamento inédito, a Agência Pública calculou uma estimativa desse custo nas dez terras indígenas ainda não homologadas que são as mais disputadas por fazendeiros no país. Seriam necessários pelo menos R$ 942 milhões, cifra 46% superior ao orçamento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2023, para fazer a desintrusão dessas propriedades se o entendimento sobre o assunto mudar.
No STF, estão em discussão dois formatos de indenização levando-se em conta o valor dos terrenos em terras indígenas. No primeiro deles, defendido pelo ministro Alexandre de Moraes, o pagamento das compensações deve ocorrer no âmbito do processo de demarcação, como condicionante para sua conclusão. No segundo, proposto pelo ministro Cristiano Zanin, a indenização ocorreria fora do processo demarcatório. Se prevalecer a proposta de Moraes, além do custo, a própria tramitação da indenização pode virar um novo entrave para o andamento das demarcações, avaliam lideranças indígenas.
Para chegar nessa cifra de quase R$ 1 bilhão, identificamos inicialmente as terras indígenas em processo de demarcação com maior área de fazendas sobrepostas, a partir de registros do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Dez terras, localizadas nos estados de Pará/Mato Grosso, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco e Paraná, se destacam como as mais disputadas. Somente nelas há 544 mil hectares registrados como propriedades rurais – o que equivale a 55% das terras reivindicadas pelos indígenas.
Para estimar o custo de indenização, usamos como base a Pauta de Valores de Terra Nua, do Incra, e multiplicamos a área dessas fazendas pelo valor médio da terra nua por hectare nas regiões rurais em que fica cada uma das terras indígenas.
Para fins de cálculo, a estimativa considerou que todos os ocupantes não indígenas desses territórios teriam títulos de terra válidos e passíveis de indenização. O que não necessariamente é verdade, já que há suspeita de grilagem em parte dessas propriedades, conforme apontam especialistas. No entanto, como ainda não está claro quem eventualmente teria direito à indenização nem há cálculos oficiais sobre quantos proprietários rurais poderiam ser efetivamente beneficiados, optou-se por considerar que todos os casos em disputa seriam contemplados.
Em entrevista à Pública no fim de agosto, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, admitiu que não há uma análise do quanto as indenizações custariam ao poder público, mas disse que a pasta está trabalhando junto à Funai para chegar a um número. Questionamos o MPI e a Funai sobre o andamento do estudo, porém não recebemos resposta até o fechamento da reportagem.
Atualmente, há 241 terras indígenas em processo de demarcação no Brasil, segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), e cerca de 500 em qualificação, de acordo com a Funai. O levantamento feito pela Pública considera apenas as dez com maior área em disputa por fazendeiros, de modo que o montante destinado às indenizações totais pode ser muito maior.
Como o debate ainda está em curso no STF, tampouco foi indicada, até o momento, qual seria a fonte do recurso para as indenizações. Mas a antropóloga Leila Saraiva, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que analisa diversas vertentes do orçamento federal, lembra que a cifra de R$ 942 milhões é próxima ao maior orçamento que a Funai já teve, em 2013, quando foram destinados R$ 1,1 bilhão para a autarquia, em valores corrigidos.
É também cerca de R$ 200 milhões acima do previsto no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) do governo Lula para a Funai em 2024. “Em termos fiscais, esses valores são totalmente incompatíveis com o recurso aplicado na política indigenista ao longo da história. E é incompatível com o cenário de austeridade que seguimos vivendo, mesmo com a queda do teto de gastos”, aponta.
As terras mais disputadas
A terra indígena com maior área reivindicada por fazendeiros teve seus estudos de identificação e delimitação aprovados pela Funai em julho deste ano. A Kapôt Nhinore, de ocupação tradicional dos povos Yudja (Juruna) e Mebengokrê (conhecidos como Kayapó), foi onde o cacique Raoni Metuktire passou sua juventude. O território de 362 mil hectares está localizado na bacia do rio Xingu, entre os municípios de Santa Cruz do Xingu (MT), São Félix do Xingu (PA) e Vila Rica (MT).
Ao todo, são mais de 258 mil hectares reivindicados por fazendeiros, de acordo com o Sigef – 79% da terra indígena. Se todos eles fossem indenizados pelo valor da terra nua média aplicado pelo Incra nas regiões de Barra dos Garças (MT) e de Santarém (PA), onde está a área indígena, seriam necessários R$ 477,5 milhões.
Após o anúncio da Funai em julho, a deputada federal Coronel Fernanda (PL-MT) pediu a criação de uma comissão externa para “apurar e acompanhar” o trabalho do órgão na demarcação da terra indígena e “seus impactos” para os três municípios pelos quais se estende.
O plano de trabalho da comissão – criada em 9 de agosto pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e coordenada por Fernanda –, alega que na região da Kapôt Nhinore há agricultores que “ali desenvolvem suas atividades agropecuárias há mais de 40 anos” e que o reconhecimento oficial da terra indígena pode “resultar em intermináveis conflitos agrários”.
Em 12 de setembro, a ministra Sonia Guajajara e a presidente da Funai, Joenia Wapichana, foram à comissão para explicar as condições do processo de demarcação. Em 15 e 16 de setembro, a Coronel Fernanda e outros deputados fizeram audiências públicas em Vila Rica e Santa Cruz do Xingu e houve uma “visita técnica” à terra indígena
A ação foi denunciada no início desta semana pela Associação Pastana Yudjá Juruna do Xingu (Apyjx), da TI Kapôt Nhinore. Segundo a entidade, as lideranças indígenas não foram informadas previamente sobre a ida dos parlamentares ao local. “Para nós, tudo isso que aconteceu é uma falta de respeito com os povos indígenas e muita discriminação com os nossos velhos, nossas mulheres e nossas crianças”, afirmou o presidente da Apyjx Daniel Yudjá em ofício.
Entre as dez terras que fazem parte do levantamento da Pública, três estão na mesma região do Maranhão, cerca de 580 km a sudoeste de São Luís. Somadas, as Terras Indígenas Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, Bacurizinho e Kanela Memortumré têm cerca de 374 mil hectares, sendo que ao menos 194 mil (52% do total) são disputados por fazendeiros. Se todos eles fossem indenizados pelo valor médio da terra nua aplicado hoje pelo Incra, seriam necessários R$ 108 milhões.
As duas primeiras terras passam por reestudos, que pleiteiam a ampliação de áreas demarcadas, e já estão declaradas. Enquanto Bacurizinho é habitada pelo povo Guajajara, a terra Porquinhos é do povo Canela Apanyekrá. A Kanela Memortumré, ocupada pelo povo de mesmo nome, já foi identificada e aguarda portaria declaratória.
Em 2022, em reportagem sobre uma instrução normativa da Funai que permitia a certificação de fazendas em terras indígenas não homologadas, a Pública conversou com lideranças da região. “A gente não quer conflito, a gente quer viver tradicionalmente no nosso território. É preocupante para a comunidade o que está ocorrendo. Nós queremos a demarcação, nós precisamos da terra para viver”, afirmou Carloman Koganon Canela, da terra Kanela Memortumré.
No grupo de dez territórios com mais área pleiteada por fazendeiros, também há três territórios na região de Dourados, no Mato Grosso do Sul, onde vivem os povos Guarani e Kaiowá. Juntas, as terras Dourados-Amambaipeguá I, Iguatemipegua I e Ypoi/Triunfo têm cerca de 118 mil hectares, sendo que metade é disputada por fazendeiros. De acordo com a estimativa feita pela Pública, R$ 269,8 milhões teriam que sair dos cofres públicos caso todos eles fossem indenizados.
Esse é um dos locais com mais conflitos entre proprietários rurais e indígenas no Brasil. O Mato Grosso do Sul foi o estado campeão em assassinatos de indígenas no país entre 2005 e 2019, segundo estudo do Instituto Socioambiental (ISA) com base em números do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
A maioria dos conflitos na região envolve os Guarani e Kaiowá, que, expulsos de suas terras a partir do século 19, desde o fim da década de 1970 têm se lançado num movimento de reconquista territorial, por meio das retomadas, acampamentos que visam à recuperação dos tekoha (“lugar onde se é”, em Guarani), muitos deles transformados em fazendas. Por isso, boa parte das terras dos Guarani e Kaiowá em processo de demarcação deve ser afetada pelo Marco Temporal, caso aprovado.
As duas teses em jogo no STF
A possibilidade de indenização pela terra nua tem recebido apoio principalmente de parte do agronegócio, que vê no pagamento uma saída caso o Marco Temporal seja derrubado. Mas a própria ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, afirmou, em entrevista à Pública, que enxerga a proposta como uma “alternativa” para destravar as demarcações no país e amenizar a violência contra os povos indígenas em conflitos por terra, desde que as indenizações não sejam prévias. As demarcações foram completamente paralisadas no governo de Jair Bolsonaro (PL) e têm sido lentamente retomadas na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Lideranças indígenas, por outro lado, fazem uma série de ressalvas. Para elas, a indenização pode representar mais um entrave ao avanço das demarcações, a depender do formato em que ocorrerem.
Até o momento, há dois modelos de indenização sobre a mesa no julgamento do Marco Temporal no STF: a de Alexandre de Moraes e a de Cristiano Zanin.
A questão das indenizações foi inicialmente trazida por Moraes em seu voto, proferido em 7 de junho. Ele rejeitou o Marco Temporal, mas propôs que proprietários de imóveis em terras indígenas recebam “indenização prévia” à demarcação dos territórios, não só pelas benfeitorias realizadas na propriedade – por exemplo, a construção de casas ou cercas –, mas também pelo valor do terreno, a chamada “terra nua”.
Tão logo a proposta foi lançada, surgiram questionamentos sobre sua constitucionalidade. O artigo 231 da Constituição Federal, em seu parágrafo 6º, torna “nulos e extintos” os “atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse” das terras tradicionais indígenas. Ou seja: qualquer título de propriedade que esteja sobre esses territórios não tem validade.
O texto constitucional determina que a extinção desses atos não gera direito a indenizações, permitindo apenas, justamente, a compensação pelas “benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé”.
Organizações indígenas e advogados indigenistas são majoritariamente contrários à sugestão de Moraes. “O principal perigo [da proposta] é condicionar a demarcação das terras indígenas à discussão da indenização da terra nua dentro desse procedimento, sendo que a Constituição veda isso expressamente”, afirma Anderson Santos, advogado do Cimi no Mato Grosso do Sul.
Santos considera que isso pode trazer ainda mais dificuldades ao reconhecimento das áreas indígenas pelo Estado. “Não se pode gerar mais esse problema para as comunidades indígenas, que já estão amargando a falta de território há séculos”, destaca.
Em seu voto no dia 31 de agosto, em que também afastou a tese do Marco Temporal, o ministro Cristiano Zanin apresentou outra proposta: a indenização com base em danos causados a terceiros pelo Estado, prevista no artigo 37 da Constituição.
O ministro argumentou que, em alguns casos, foi o próprio poder público o responsável por titular propriedades privadas sobre territórios tradicionais indígenas. De acordo com essa interpretação, os proprietários desses imóveis teriam acreditado na idoneidade dos títulos concedidos pelo Estado, posteriormente cancelados por se tratarem de áreas indígenas. Particulares nessa situação teriam, então, direito à indenização.
Além disso, Zanin defendeu que a definição da indenização deve ocorrer por via judicial ou administrativa à parte do processo de demarcação de terras indígenas promovido pelo governo federal. Sustentou ainda que cada caso deve ser encaminhado separadamente, de acordo com suas características, e que o pagamento da compensação deve recair não apenas sobre a União, mas também sobre estados e municípios que possam ter incentivado a titulação privada de terras indígenas.
Gustavo Passarelli, advogado da Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), é favorável ao Marco Temporal – chegou a defender a tese jurídica em nome da Famasul e outras entidades de agropecuária no STF em 2021 – e ao pagamento de indenizações pela terra nua. Mas critica que isso ocorra fora do procedimento de demarcação, como propôs Zanin. Para ele, a medida deve ocorrer conforme a vertente sugerida por Alexandre de Moraes.
“Se [a indenização] pudesse fazer parte do processo administrativo [de demarcação de terras indígenas], acho que ajudaria a todos. Se for necessário esperar que o produtor ajuíze a demanda para depois receber a indenização, isso certamente atrasa o procedimento administrativo”, pontua Passareli. “Se no próprio procedimento administrativo já tiver uma previsão nesse sentido, fica mais rápido. O procedimento judicial é moroso.”
Já no Ministério dos Povos Indígenas, o voto de Zanin foi bem recebido. “Mesmo com a questão das indenizações à terra nua, a proposta do ministro Zanin não impede a continuidade e abertura de novos processos demarcatórios, já que cada caso poderá ser analisado com suas particularidades”, afirmou Sonia Guajajara em nota divulgada pela pasta ainda no dia 31 de agosto. A ministra havia se reunido com o magistrado na véspera de sua manifestação no plenário do STF.
Entre o movimento indígena e a sociedade civil, havia apreensão em relação à posição de Zanin sobre o Marco Temporal. Na semana anterior à retomada do julgamento, ele havia votado contra um pedido da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) pelo reconhecimento de que as comunidades Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul são vítimas de violência policial.
No entanto, o ministro acolheu sugestões sobre o pagamento de indenização a ocupantes não indígenas levantadas em um parecer elaborado pelo professor de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Daniel Sarmento. O documento foi produzido a pedido de representantes da Comissão Arns, organização da sociedade civil que tem atuado junto à Apib e outras entidades nas mobilizações contra o Marco Temporal.
Congresso tenta protagonismo na discussão
O pagamento de compensações pela terra nua é discutido ainda no Congresso Nacional em um projeto de lei (PL 2.903/23) que também busca instituir o Marco Temporal, entre outras várias ameaças aos direitos indígenas (leia mais aqui). O PL propõe um modelo de indenização por ato ilícito do Estado, uma das vertentes defendidas por Zanin em seu voto.
A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que defende o Marco Temporal, corre para tentar votar o PL antes da decisão do STF, pois há a expectativa de que a maioria dos ministros derrube a tese.
A leitura do relatório favorável ao projeto, elaborado pelo senador Marcos Rogério (PL-RO), acontecerá nesta quarta-feira (20) pela manhã na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), poucas horas antes do Supremo retomar o julgamento, marcado para as 14h. No fim de agosto o texto já tinha sido aprovado na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado.
Há matérias mais alinhadas à proposta de Alexandre de Moraes, como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 132/2015, cuja tramitação na Câmara dos Deputados está parada desde outubro de 2021. O texto busca alterar o parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição para que ele permita a indenização pela terra nua.