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Apagão em São Paulo revela perda de cidadania com a privatização de serviços públicos

Ao mandar paulistanos procurarem o Procon, prefeito reduz cidadãos com direito à energia a consumidores insatisfeitos

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19 de outubro de 2024
06:00

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Na quarta-feira à noite, ainda com mais de 300 mil residências sem energia no quinto dia do apagão que afetou 3,1 milhões de imóveis na região metropolitana de São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes deu uma entrevista coletiva em que também falou das “providências” tomadas para enfrentar o novo temporal previsto para esta sexta-feira (18/10). 

Além de medidas pífias, como colocar geradores nos semáforos, o prefeito ofereceu aos paulistanos, que querem saber como serão ressarcidos pelos prejuízos e sofrimentos acumulados, “a questão do nosso Procon, que está à disposição dos moradores da cidade para fazerem seus pedidos”.

Não imaginava que a declaração meio obscura seria traduzida de forma límpida na mesma noite pela jornalista Flávia Oliveira, em comentário na GloboNews: “Se é pra procurar o Procon, ninguém precisa de prefeito, né?”. Bingo. 

A resposta de Flávia, que em seguida destacou o fato de a energia ser um direito humano básico, como nos mostraram tantas cenas dos últimos dias, me levou a pensar em outro aspecto desta crise em que todos os dedos apontam para a Enel, com razão, enquanto os gestores públicos acusam, além da concessionária, uns aos outros. Com maior ou menor razão. 

O fato pouco comentado na imprensa, e no entanto visível na crise em São Paulo – e evidente na declaração do prefeito –, é a redução do cidadão a “cliente”, tal como é tratado pela Enel, o que a privatização de serviços públicos inevitavelmente acarreta. 

Um tema que é quase tabu dada a concordância da imprensa com a visão da direita quando o assunto é retirar patrimônio do Estado. Com honrosas exceções. 

A questão é que as privatizações deixam a população sujeita aos interesses privados com muito pouca proteção. Ainda que o poder público seja exigente nos contratos de concessão, o que de fato seria um avanço, nem sempre isso é possível. A Enel, por exemplo, que está há seis anos em São Paulo, herdou um contrato de concessão de 1998, válido por 30 anos, ao adquirir o controle acionário da AES Eletropaulo – empresa que resultou do consórcio formado para comprar a estatal paulista Eletropaulo com vasto financiamento do BNDES, como era praxe no governos tucanos de Geraldo Alckmin e Fernando Henrique Cardoso. 

Nessas horas, a interferência do governo curiosamente é bem-vinda entre os adeptos da privatização. 

De lá para cá, como sabemos, o mundo mudou muito, a começar pela emergência climática, que nem sequer era cogitada como risco nos contratos da época, que, aliás, nunca se preocuparam o suficiente com o futuro nem com os direitos dos cidadãos. Mas romper esses contratos não é nada fácil, de acordo com especialistas

Mesmo que a Aneel – que evidentemente falhou nos casos recorrentes da Enel – cumprisse seu papel de fiscalizar com rigor os serviços das concessionárias e abrisse processos administrativos contra as empresas infratoras, passo inicial para cassar esses contratos, é complexo substituir com presteza concessionários de serviços técnicos dessa magnitude, e não apenas na área de energia. 

Isso sem falar nos lobbies a que a regulação desses setores está sujeita, ainda frouxa em relação às empresas, como comentou a jornalista Alexa Salomão, especialista no setor de energia no Café da Manhã de terça-feira (15/10). Segundo ela, “o país está rendido a lobbies privados pontuais de umas poucas empresas, tanto no Congresso quanto no Executivo”. “Isso é o principal problema que a gente tem para fazer qualquer mudança na estrutura regulatória do país”, diz. 

Ou seja, os cidadãos de São Paulo têm motivos para ficar preocupados não só com a alma privatista de Nunes, que não poupou nem os cemitérios, mas também com a privatização da Sabesp, comemorada pelo governador Tarcísio de Freitas, em julho deste ano. Se as tarifas subirem ou a água faltar, também vamos procurar o Procon?

Desde o governo Fernando Henrique, amado por donos da mídia e diretores de redação, as privatizações sempre foram vendidas para os cidadãos como uma saída para a desonestidade e ineficiência que seriam inerentes às empresas públicas ou estatais em contrapartida às virtudes intrínsecas à iniciativa privada.

O fato de os próprios processos de privatização, com patrimônio público vendido bem abaixo de seu valor real, serem cercados de denúncias de corrupção desde os grampos do BNDES, não refreou esse entusiasmo da mídia pela iniciativa privada. Quem tiver curiosidade pelo tema pode procurar os livros de Aloysio Biondi, grande jornalista de economia que denunciou em detalhes os primórdios dessa aliança pró-privatização. 

Mas, se hoje temos a telefonia mais cara do mundo, se os amazonenses estão na iminência de um colapso energético por causa de uma concessionária privada falida, se temos um serviço de energia em São Paulo que busca lucrar reduzindo investimento em plena emergência climática, não devemos pelo menos refletir sobre as propaladas virtudes da privatização? 

Uma pena que o debate em São Paulo sobre a crise de energia tenha que se reduzir à cobrança dos deveres mínimos da prefeitura, como a negligenciada poda das árvores e a ineficiência no atendimento aos cidadãos durante o apagão, as quais, de fato, têm importância crucial. Mas parece não haver espaço para se aprofundar na discussão sobre os modelos de gestão da coisa pública representados pelos dois candidatos. 

Está na hora de decidir – e bem rápido – qual modelo de sociedade e de Estado queremos: afinal, ainda somos cidadãos capazes de defender nossos bens e direitos coletivos ou vamos ficar nas mãos daqueles que só querem lucrar com as nossas necessidades? 

Pense nisso antes de acreditar em polarização, empresas privadas altamente eficientes e éticas e outros mitos propagados também pela imprensa. 

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