O promotor do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) Carlos Eduardo Ferreira Pinto teria orientado o engenheiro Joaquim Pimenta de Ávila, que projetou a barragem que rompeu em 2015 em Mariana, conforme revelam áudios aos quais a Agência Pública teve acesso. “Eu estou te falando como advogado, se o advogado falar diferente, você pode confiar na palavra do advogado daqui”, disse o promotor a Pimenta. “Porque eu acho que assim, acima de tudo isso, tá nossa amizade”, acrescentou ao longo da conversa.
O diálogo foi interceptado pela Polícia Federal (PF) em 20 de janeiro de 2016, quando Pimenta era investigado pelo desastre de Mariana e Carlos Eduardo era membro da força-tarefa do Ministério Público que apurava o caso. Atualmente, o promotor coordena o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente (Caoma) no MPMG.
Ao final das investigações, Joaquim Pimenta de Ávila, que além de projetista da barragem do Fundão era consultor da Samarco à época do rompimento, não foi denunciado pelo Ministério Público. No processo judicial ele aparece como uma das principais testemunhas de acusação.
Parte da conversa de 11 minutos entre o engenheiro e o promotor está transcrita na sentença da Justiça Federal publicada na última quinta-feira (14/11), que absolveu as empresas Samarco, Vale, VogBR e BHP Billiton da imputação de crimes ambientais, além de sete pessoas, entre elas diretores, gerentes e técnicos das empresas.
A autora da decisão, a juíza do Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6) de Ponte Nova, Patrícia Alencar Teixeira de Carvalho, acatou parcialmente o pedido dos réus com base nas gravações e anulou todas as declarações de Pimenta à PF e ao Ministério Público, usadas como provas. A magistrada considerou apenas o depoimento do engenheiro dado em juízo.
Procurado, Joaquim Pimenta informou por email não ter nada a declarar “sobre a posição da juíza”. “Meu depoimento na Justiça Federal foi mantido pela juíza. Nada tenho a acrescentar, portanto”. O engenheiro não comentou sobre sua relação com o promotor de justiça mineiro e nem sobre os áudios.
Já o MPMG informou, por meio de nota, que os fatos foram apurados “de forma exauriente” pela Procuradoria-Geral de Justiça, com arquivamento em 2017, “reconhecendo-se, inclusive, que não houve qualquer orientação sobre direcionamento de depoimento de testemunha, mas apenas aconselhamento para que fosse dita a verdade, aos meios de comunicação, sobre o rompimento da barragem de Fundão”. “Não houve qualquer irregularidade na conduta de qualquer promotor de justiça ou servidores da instituição na apuração do caso Samarco”, acrescenta o órgão.
Sobre a sentença da Justiça Federal, o MPMG informou que se “abstém de realizar qualquer comentário, uma vez que não oficia no respectivo processo criminal, que tramita na Justiça Federal”. “Cabe, assim, ao Ministério Público Federal adotar as providências que reputar cabíveis”, acrescenta.
Nos autos, não é citado o nome do promotor Carlos Eduardo, que aparece nas transcrições dos diálogos como “interlocutor”. A Pública confirmou, no entanto, a partir de informações do laudo produzido pela PF, que o número do telefone interceptado é o mesmo do promotor. O contato também foi divulgado em Powerpoint apresentado por Carlos Eduardo durante participação em audiência pública na Câmara dos Deputados em março de 2016.
A juíza Patrícia Carvalho ressaltou em sua sentença que, “embora não se tenha esclarecido, pelos meios próprios, a identidade do interlocutor, é fácil perceber, pelo conteúdo dos diálogos, que se trata de pessoa que estava a par das investigações”.
Ainda sem mencionar o nome de Carlos Eduardo, a magistrada destacou que Pimenta “conversava com um possível agente público que estaria no centro das investigações, trocando impressões informais sobre o evento, suas possíveis causas e qual a melhor estratégia para convencer ao público e as autoridades de que havia feito o que estava a seu alcance para evitar a catástrofe”.
Os áudios gravados pela PF a partir de escutas autorizadas do telefone do engenheiro revelam ainda que sua esposa, a geóloga Marta Sawaya, que era servidora do MPMG, teria colaborado informalmente com as investigações, apesar de não integrar a equipe técnica destacada para as apurações relacionadas ao rompimento da barragem de Fundão.
A juíza Patrícia Carvalho observou que a conversa, à qual a Pública também teve acesso, mostra que “o consultor e projetista da barragem de Fundão troca impressões e informações sobre os desdobramentos da investigação com sua esposa”. Segundo ela, Sawaya “seguia colaborando informalmente e ativamente com as investigações conduzidas no âmbito do MPMG, valendo-se, ainda, da contribuição do próprio projetista investigado, sem que houvesse formalização de qualquer acordo”. A reportagem procurou Sawaya, mas não obteve retorno.
“Embora os graves fatos alegados pela defesa estejam documentados desde 2016 e que nenhuma providência tenha sido tomada no sentido de esclarecê-los (por qualquer das partes), impossível passar por eles sem sentir o impacto que podem ter causado nas investigações acerca do rompimento da barragem de Fundão”, pontuou a magistrada em sua decisão, referindo-se aos áudios.
Promotor teria orientado como investigado devia agir
O promotor Carlos Eduardo teria telefonado para o engenheiro Joaquim Pimenta por volta das 21h30 do dia 20 de janeiro de 2016, de acordo com informações que constam no relatório da PF referente aos números de telefone que contactaram o investigado.
Os áudios interceptados pela PF indicam que, ao longo da conversa com Pimenta, Carlos Eduardo teria elogiado a linha de defesa do engenheiro e o orientado a “falar o que tem falado sempre”. “Eu acho, a sua linha, acho que é supercorreta. O senhor está equilibrado. O senhor está falando, não está acusando a Samarco, mas o senhor está com credibilidade. Não perca essa credibilidade da opinião pública”, teria aconselhado o promotor. “Eu estou te falando como advogado, se o advogado falar diferente, você pode confiar na palavra do advogado daqui”, teria acrescentado.
Em resposta, Joaquim Pimenta endossou o “amigo”: “Pode ter qualquer outro advogado que falar, e eu vou acreditar no que o senhor está falando, porque, além da experiência, o senhor está dentro do problema mais que ninguém”. Carlos Eduardo teria dito ainda: “Então eu acho que é importante assim, eu acho que tem que dosar mesmo. Você tem que falar o que você tem falado sempre […] com limite, mas com cuidado”.
O diálogo entre os dois indicaria que o promotor telefonou para Pimenta para convencê-lo a gravar uma entrevista ao Fantástico, da TV Globo. “Você pode não falar mais para ninguém, nunca mais, mas no Fantástico tem que falar”, disse, e acrescentou: “Estou falando com o coração”. “Se você não falar e a Vog [empresa que prestava consultoria para a Samarco], por exemplo, falar, sabe o que vai acontecer? Vai replicar isso e você na segunda-feira vai ser obrigado a falar porque eles disseram o contrário de você”, teria justificado.
Ao longo da conversa, o promotor teria dito que se sentiu “na obrigação” de falar sobre a entrevista a Pimenta. “Porque eu acho que assim, acima de tudo isso está a nossa amizade. E aí eu falei: ‘Ó, não posso deixar de falar isso pra você, porque é um assunto importante”.
Promotor teria elogiado depoimento de investigado: “Excelente!”
Em outro momento da conversa interceptada pela PF em 2016 entre o promotor e o projetista da barragem de Fundão, Pimenta teria perguntado se Carlos Eduardo tinha algum retorno de como ele havia se saído numa oitiva: “Só tem uma pergunta assim de curiosidade. Por acaso o senhor teve alguma notícia se a minha oitiva foi boa?”. O promotor então teria respondido: “Foi excelente”. E depois reforçou: “Foi excepcional, todo mundo adorou, tá?”.
Na sequência, Carlos Eduardo teria pedido para Marta, esposa de Pimenta, então servidora do MPMG, que lhe entregasse a Carta de Risco da barragem. O documento foi usado nos autos como prova para imputar acusações aos réus, uma vez que não haveria no registro as informações levantadas pela consultoria de Pimenta sobre os riscos do empreendimento da Samarco.
Os áudios da PF mostram que o promotor teria tirado dúvidas com o investigado para fundamentar suas argumentações: “Eu falei com a Marta, se você estiver com ela, você fala com ela para ela não esquecer. Eu ligo cedo para ela, porque eu quero que ela me dê mais certinho assim, a Carta de Risco. Para eu entender direitinho e ter fundamento”, teria afirmado Carlos Eduardo.
Pimenta então explicou : “A Carta de Risco, ela foi feita pro projeto inicial. Ela estava lá e a Samarco nunca revisou. Depois que eu saí em 2012, eles mudaram o projeto, mas não revisaram a Carta, então não tinha na Carta os piezômetros do recuo”. O engenheiro ainda acrescentou, defendendo-se: “E o que me espanta também é o seguinte: a Samarco tinha a obrigação de fornecer ao auditor o meu relatório das trincas que mostrava um risco”.
A PF interceptou uma outra conversa de Pimenta com Marta no dia seguinte, em 21 de janeiro de 2016. Na ocasião, Marta disse que havia se encontrado com o “doutor Carlos”. Ela sugere que deu explicações a ele sobre a barragem de Fundão. “Dei uma aula sobre barragem, projeto de barragem”, afirmou.
Mais adiante na conversa, Marta disse que o “doutor Carlos” havia falado “muito” de Joaquim Pimenta. Segundo a transcrição, o diálogo continuou:
Joaquim Pimenta: Ah, o que ele falou de mim?
Marta: Ele falou que achou ótimo, que ele foi ver, ele teve com os caras da Polícia Federal.Joaquim Pimenta: An?
Marta: E ele viu que eles iam indiciar você se você não tivesse falado, aberto aqueles relatórios, ele falou: “olha, ele não pode ficar quieto, tímido não, ele ia ser indiciado junto”.
Joaquim Pimenta: Por que que não foi?
Marta: Porque você abriu aquele relatório, que você mostra, que você viu antes…
Joaquim Pimenta: Das trincas?
Marta: É, foi isso que te salvou
A conversa entre os dois teria se encerrado quando Joaquim Pimenta alertou que eles não deveriam comentar sobre o assunto por telefone: “Ó, não vamos falar isso por telefone, não, tá”, disse à esposa. “É, eu também acho, você que puxou o assunto”, acrescentou.