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No momento aterrorizante em que vivemos, talvez a tarefa mais urgente do jornalismo seja chamar as coisas pelo nome. Uma das armas mais eficazes da extrema direita – seja a atual, seja a do século 20, que pariu o nazismo – é justamente a eficiência em cooptar a linguagem e transformá-la a seu favor. Desde pelo menos 2016, com o impeachment da Dilma aqui e a eleição de Trump nos EUA, estamos vendo um processo acelerado de ressignificação da realidade, o roubo de expressões que eram pacificadas para valerem como seu oposto. Por exemplo, a extrema direita acusa “fraude” e autoritarismo quando não há fraude e as instituições caminham bem para, em seguida, ao assumir o poder, cometer fraude e liquidar as salvaguardas da democracia que impedem, justamente, o autoritarismo.
A disputa da linguagem é campo de batalha natural do jornalismo, mesmo fragmentado e precarizado como hoje em dia, e por isso é preciso que tenhamos enorme cuidado ao chamar – ou deixar de chamar – as coisas pelo nome.
Você deve ter reparado como nas últimas colunas eu adotei o termo “fascismo” para falar do regime trumpista. Quem me levou a adotar o termo foi o professor Eugênio Bucci, conselheiro da Agência Pública, que foi claríssimo em artigo no Estadão ao listar, segundo pensadores como Umberto Eco e Jason Stanley, todas as características fascistas que tem esse governo, do “elogio de um passado glorioso da pátria” ao irracionalismo e o discurso do “nós” contra “eles”, o nacionalismo exacerbado, a exploração do sentimento de humilhação e a construção de um clima de guerra permanente. Umberto Eco apontou ainda “o discurso tosco, primário, que repele raciocínios complexos e a razão crítica”. Stanley enumera ainda a “desarticulação da união e do bem-estar público” e o fato de que são os fascistas que geram instabilidade e produzem tumultos e arruaças para, em seguida, prometer controlar a sociedade com o braço forte do Estado.
Assim, foi com grande gosto de ouvi o episódio 152 do Pauta Pública, uma bela entrevista com o cientista político Guilherme Casarões, na qual as apresentadoras Claudia Jardim e Andrea Dip destacaram que Elon Musk fez uma saudação nazista na possse de trump e, reforçam, “três vezes”. Em tempos perigosos como este, o jornalismo tem que ser inequívoco como aquele gesto.
Foi o mesmo episódio que me fez escrever esta coluna. Eu refletia a respeito de uma frase dita, pois uma das falas do professor da FGV, quando ele descreveu que a extrema direita, defende uma “liberdade de expressão incondicional”, sem nenhuma regulação, o que permitirá ofensas e até crimes. Claro, o próprio Casarões tem uma visão mais nuançada disso, ao dizer, na mesma entrevista, liberdade de expressão “entre muitas aspas”.
Mas eu acho pouco. Há uma lista de fatos incontroversos que demonstram que a cruzada da extrema direita não é por liberdade de expressão incondicional. É uma cruzada para ela mesma definir o que, afinal, pode ser dito abertamente. Vamos a alguns deles.
No ano acadêmico de 2024, governos republicanos nos Estados Unidos, em especial na Flórida e em Iowa, proibiram, no total, 10 mil livros em escolas públicas, incluindo clássicos como o Proclamem nas montanhas, de James Baldwin, livros que retratam a trajetória de escravizados e outros que tratam de educação sexual.
Tanto republicanos quanto democratas impediram, sistematicamente, manifestantes universitários de protestar contra o genocídio em Gaza. Um levantamento feito pela ONG Access Now e publicado pela Al Jazeera mostra que as mesmas redes sociais tidas como “defensoras da liberdade”, incluindo Facebook, Instagram e TikTok, agiram para silenciar vozes palestinas durante o conflito. Não se viu nenhum dos tycoons da nova comunicação social vociferando em defesa da liberdade de expressão destes.
É mais ou menos a mesma toada das mudanças na política de moderação anunciada no começo do ano pela Meta. Ela manteve a moderação algorítmica sobre temas como terrorismo, que é uma preocupação nos Estados Unidos – e sabemos quem vai ser censurado. Enquanto isso, reduziu-se a moderação sobre falas de racismo e homofobia, que são crimes no Brasil. Portanto, no caso da Meta, não se trata de deixar de moderar ou censurar, mas de concentrar o poder de moderação nas mãos de um só grupo em um único país, e permitir que essa decisão mude de acordo com os ventos políticos de lá.
Podemos, ainda, lembrar aquele que mais tem hasteado a bandeira da liberdade de expressão: Elon Musk. A manipulação do algoritmo para espalhar as palavras de Musk na plataforma está documentada no livro Character Limit: How Elon Musk Destroyed Twitter, dos jornalistas Kate Conger e Ryan Mac. Para agradarem ao chefe, os engenheiros acrescentaram o código author_is_elon a todos os tuítes, não só exibindo-os para quem os seguia, mas inserindo-os com prioridade em todos os feeds de curadoria feitos pela rede social. Por outro lado, em janeiro de 2024, jornalistas norte-americanos que criticaram Musk tiveram suas contas suspensas no X, sem nenhuma justificativa. Após o caso ter se tornado público, as contas foram restituídas.
O governo Trump, por sua vez, tem seu embaixador próprio no terreno da censura. Trata-se do novo chefe da Comissão de Comunicação Federal, Brendan Carr, que mal esquentou a cadeira e já deixou claro que vai usar o seu cargo para perseguir a imprensa que não for alinhada. Ordenou a investigação de dois canais públicos americanos, a PBS e a NPR, alegando que não precisariam de verba estatal, uma vez que vendem anúncios.
O próprio Trump, em meio à campanha eleitoral, usou sua rede social, Truth Social, para dizer que não haveria “nem um dólar” para o canal NPR. “É uma máquina de desinformação liberal. Nem um dólar!”
Diga-se: é exatamente o que fez Javier Milei na Argentina, ao matar a agência pública de notícias Télam.
Agora, Brendan Carr está pressionando a rede de TV CBS para fechar acordo com a equipe legal de Trump, que acusa o tradicional programa 60 Minutes de ter feito uma entrevista favorável a Kamala Harris durante a campanha eleitoral. A TV teria que reconhecer uma manipulação que nenhum dos seus funcionários acredita que ocorreu de fato.
Se contarmos todos os ataques e o silenciamento de jornalistas, a coisa vai longe. Não é esse o propósito desta coluna, mas propor uma nova expressão que supere essa imagem mental de que é a extrema direita a verdadeira defensora da liberdade de expressão para sairmos dessa armadilha linguística.
O que ela quer, na verdade, é ter a “liberdade de opressão” – o direito, sem nenhuma transparência e sem seguir uma regulação discutida democraticamente –, de poder decidir o que se pode e o que não se pode falar.
“Liberdade de arbitragem”, “liberdade de censura” são outras expressões que fariam mais juz à situação. Mas talvez nem mesmo a palavra “liberdade” devêssemos ceder à extrema direita. O correto seria descrever que Elon Musk defende o cerceamento do debate pela direita, ou que defende a instalação de uma nova ordem informacional fascista, pura e simplesmente.