Em 10 de fevereiro, Donald Trump emitiu uma ordem executiva para que o Departamento de Justiça suspenda a aplicação da Lei de Práticas Corruptas no Exterior, a Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), por 180 dias e reavalie a estratégia para novos processos. Segundo a ordem, a segurança nacional americana “depende em parte substancial da obtenção de vantagens comerciais estratégicas pelos Estados Unidos e pelas suas empresas, seja em minerais críticos, portos de águas profundas ou outras infraestruturas ou ativos essenciais”. O presidente a acusa a FCPA de impedir empresas americanas de irem contra “práticas de negócios rotineiras em outros países” e prejudicar a “competitividade americana”.
Porém, segundo diversos estudiosos, desde 1988, quando a FCPA foi reformada, ela tem sido usada prioritariamente contra empresas estrangeiras, e não americanas. Essa mudança na legislação permitiu o Departamento de Justiça dos EUA (DOJ) investigue e puna, nos Estados Unidos, atos de corrupção que envolvam autoridades estrangeiras praticados por empresas e pessoas estrangeiras, independente de onde tenham ocorrido – basta que tenha havido transferência de dinheiro por algum banco americano, que se vendam ações de empresas envolvidas na bolsa nos EUA, ou até mesmo que a propina tenha sido paga em dólares.
Foi esse o caso da Odebrecht e da Petrobras. Em dezembro de 2016, a Odebrecht, junto com sua subsidiária Braskem, fez um acordo com o DOJ no qual ambas concordaram em pagar um mínimo de US$ 3,2 bilhões aos EUA, Suíça e Brasil – total depois reduzido para US$ 2,6 bilhões – pelas práticas de corrupção ocorridas. Na época, foi o maior acordo global de corrupção internacional. Já a Petrobras fechou acordo em US$ 1,8 bilhão com o governo americano em 2018.
Ambas foram processadas pelo DOJ nos Estados Unidos por corrupção ocorrida no Brasil através de depoimentos e evidências obtidas em aliança com a Força-Tarefa de Curitiba, durante a operação Lava Jato.
Por que isso importa?
- A Lei de Práticas Corruptas no Exterior (FCPA) permitiu aos EUA processar empresas brasileiras como a Petrobras e a Odebrecht, no contexto da operação Lava Jato.
- A legislação é apontada como uma ferramenta para o país minar concorrência estrangeira em mercados estratégicos para os EUA.
As multas aplicadas foram, inclusive, divididas com o Brasil. O caso mais notório foi o da Petrobras, cuja multa foi alvo de disputas judiciais porque seria usada, originalmente, para criar uma fundação para o combate à corrupção, com forte influência do Ministério Público Federal em Curitiba (MPF). A fundação foi posteriormente suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Como a Agência Pública revelou, na mesma época Deltan Dallagnol e Sergio Moro abriram empresas para ministrar cursos e palestras anticorrupção.
As negociações da divisão dos valores ocorreram desde 2015. Segundo os diálogos vazados ao Intercept Brasil e compartilhados com a Pública, os procuradores de Curitiba valeram-se da pressão dos EUA para ampliar as multas e pressionar investigados a colaborarem.
![Procurador do Ministério Público Federal e coordenador da força tarefa da Operação Lava Jato, Deltan Dallagnol](https://i0.wp.com/apublica.org/wp-content/uploads/2025/02/Foto1_Trump-suspende-lei-que-levou-a-multa-bilionaria-da-Odebrecht-e-Petrobras.jpg?resize=640%2C426&ssl=1)
Lei ajudou EUA a minar concorrência estrangeira
Para a pesquisadora e jurista Maria Virgínia Mesquita Nasser, doutora em Direito Econômico pela USP e mestre em Direito pela London School of Economics and Political Science (LSE), a FCPA nunca foi “o Santo Graal do combate à corrupção”. “O mais grave é o barulho tremendo que ele faz. E a narrativa que ele põe nisso, afirmando que a FCPA tira a competitividade das empresas americanas, como se o único fator de competitividade internacional fosse o poder de subornar autoridades estrangeiras”.
Nasser é autora do livro “Previsível mas problemático: o papel dos EUA na Operação Lava Jato, por força do FCPA”, junto a Paula Maria Bertran, realizado a partir de pesquisas de documentos do próprio governo americano e literatura acadêmica. Elas demonstram que, dos 10 maiores acordos fechados pelo DOJ entre 1977 e 2019, apenas uma empresa era americana – a Halliburton.
“Quando a gente olha com atenção, na verdade, a FCPA incidiu majoritariamente sobre empresas estrangeiras atuando em mercados preferenciais para os EUA. A FCPA é bastante seletiva em termos de segmento – indústria farmacêutica, gás e petróleo, que são mercados estratégicos para os EUA”, diz Nasser.
Ou seja: nas últimas duas décadas, a FCPA ajudou a minar a concorrência a empresas americanas, e não o contrário, como alega Trump.
Para a especialista, ela se tornou uma ferramenta de “soft power” econômico dos Estados Unidos. “A gente só chama de ‘soft’ porque não explodiu nenhuma bomba, mas era um ‘hard power’ americano”, conclui.
Na visão de Fábio de Sá e Silva, pesquisador da Universidade de Oklahoma (EUA), é possível que a suspensão não dure muito e seja questionada na Justiça. “Uma das coisas estruturantes do governo Trump é que o presidente está suspendendo algumas leis com base em decretos, isso é questionável se é possível”.
“O que o FCPA fazia era dar uma jurisdição dos EUA para que ele pudesse processar empresas de outros países. Agora os EUA perdem esse instrumento que tinham, que muita gente entendia ser um instrumento de política externa e de defesa de interesse de política nacional, como foi muito falado no caso a Lava Jato”, explica.
Até o ano passado, as investigações contra a Petrobras ainda rendiam dividendos para o DOJ. Em março de 2024, a Trafigura, uma empresa suíça que negocia com commodities, fechou um acordo pelo pagamento de propina no Brasil para obter contratos com a Petrobras. A empresa aceitou pagar US$ 127 milhões ao governo americano.
Em junho do mesmo ano, o empresário norte-americano Gary Oztemel assinou delação assumindo ter pagado propina a executivos da Petrobras no valor de mais de US$ 10 mil. Segundo o relatório “2024 FCPA Year in Review”, da Universidade de Stanford, em 2024 o Brasil empata com, México e China em termos de países mais citados nos casos de investigações de FCPA.