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Para especialistas, ações do governo estadual são demoradas e estado não está preparado se ocorrer novo evento extremo

Reportagem
27 de abril de 2025
11:47

Enquanto a maior chuva já registrada no Rio Grande do Sul caía e os estragos causados pela combinação entre precipitação recorde e falta de preparo dos municípios se acumulavam, um gargalo central ficava evidente: a rede de monitoramento e previsão de chuvas e do nível dos rios do estado era insuficiente para dar conta de um evento climático extremo daquela magnitude.

Muitas estações de monitoramento não estavam funcionando ou ficaram inoperantes com a força das águas, e os órgãos oficiais não tinham capacidade técnica e equipamentos que permitissem fazer as previsões necessárias para subsidiar a tomada de decisões, como evacuações e resgates.

Passado um ano da tragédia, a implementação de um sistema eficaz, com ampliação e recuperação da rede de estações hidrometeorológicas, mapeamento topográfico e modelagens, entrou nos planos do governo de Eduardo Leite (PSDB), mas ainda está longe de se concretizar na prática.

À exceção de um novo radar meteorológico já instalado em Porto Alegre em agosto do ano passado, os projetos de ampliação e recuperação da rede de monitoramento ainda não estão em execução e não há previsão de quando ocorrerá a implementação completa.

A demora no restabelecimento deste sistema é um dos principais pontos apontados por especialistas ouvidos pela Agência Pública para chegar a uma conclusão consensual: o Rio Grande do Sul não está preparado para uma nova chuva como a que caiu entre o fim de abril e o início de maio do ano passado. Pesa também nessa avaliação a falta de avanços concretos no sistema de alertas (que falhou em 2024, como relatou a Pública na época), na estrutura da Defesa Civil e na comunicação em desastres.

Um dos pesquisadores que compartilham dessa visão é Fernando Meirelles, que atua no Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), órgão que teve papel central na resposta às enchentes do ano passado. “Não estamos preparados para um evento [como o de 2024]. Nós perdemos a rede de monitoramento e não a recuperamos. Ainda estamos na fase burocrática, não na fase operacional do processo”, aponta.

Para Meirelles, as ações tomadas até o momento em relação ao sistema de monitoramento estão ocorrendo de maneira “bem lenta”. “Dada a situação de emergência, poderíamos ter tomado outros caminhos, mas só agora que se começa a fazer alguma contratação. Vai se construir uma outra rede [em vez de aproveitar a que já existia]. Não entendi por que não fizeram um contrato emergencial para recuperar as estações que já estavam colocadas. Isso leva a um atraso”, diz o especialista em recursos hídricos e saneamento ambiental.

As deficiências no sistema de monitoramento, previsão e alerta contribuíram para que o desastre tivesse a magnitude que teve, de acordo com os especialistas ouvidos pela reportagem. Com o aprofundamento das mudanças climáticas, causadas especialmente pela queima de combustíveis fósseis – e, no caso do Brasil, sexto maior emissor de carbono, pelo desmatamento–, a tendência é que eventos extremos se tornem cada vez mais frequentes.

No Rio Grande do Sul, estudos científicos sinalizam que haverá um aumento na ocorrência de chuvas intensas em curtos períodos de tempo, o que reforça a importância de medidas de prevenção, mitigação e preparação para desastres. Um estudo científico lançado no ano passado já atribuiu as fortes chuvas às mudanças climáticas.

Segundo a análise, o aquecimento global causado por atividades humanas, aliado à falta de infraestrutura, tornou a tragédia duas vezes mais provável de acontecer e aumentou sua intensidade numa escala de 6% a 9%.

“Não tinha como a gente impedir a ocorrência dessas chuvas, mas um sistema de previsão e de alerta permite um tempo de reação maior e seria possível minimizar as perdas, tanto de vidas quanto econômicas”, aponta Daniel Caetano, doutor em Meteorologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

E A COP30 COM ISSO?

Minimizar perdas humanas e econômicas estão no cerne da agenda de adaptação às mudanças climáticas, uma das pautas centrais da 30ª Conferência do Clima da ONU (a COP30), que vai acontecer em Belém em novembro.


Na cúpula, deverá ser definida uma meta global de adaptação, com indicadores para orientar os países a adotar medidas de adaptação à crise climática. Também se espera uma definição sobre financiamento para adaptação.


“Muito do que ocorreu [no Rio Grande do Sul] poderia ter sido evitado se políticas de adaptação tivessem sido incorporadas à infraestrutura”, declarou o presidente da COP30, embaixador André Corrêa do Lago, em um evento no início do ano.

As enchentes e os deslizamentos de terra que atingiram o estado no ano passado afetaram quase 2,4 milhões de pessoas em 478 dos 497 municípios gaúchos, de acordo com o último boletim publicado pela Defesa Civil do Rio Grande do Sul, em agosto do ano passado. 183 pessoas morreram, 27 seguem desaparecidas e outras 806 ficaram feridas. O Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, ficou mais de cinco meses fechado e organismos internacionais calcularam prejuízos em quase R$ 90 bilhões.

Rastro da destruição deixada pelas enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul no ano passado.

A Pública enviou uma lista de perguntas para o governo do Rio Grande do Sul e reproduz trechos das respostas ao longo da reportagem. A íntegra, assim como uma nota complementar enviada pela assessoria de comunicação podem ser conferidas neste link. O material destaca as ações tomadas pelo governo estadual durante e após o desastre, centralizadas no Plano Rio Grande, que inclui medidas de reconstrução, adaptação e resiliência climática – e que também é alvo de críticas por parte de especialistas.

Só metade das estações de medição estava funcionando

Na época da enchente, uma denúncia do pesquisador Fernando Meirelles, revelada com exclusividade pela Pública, mostrou que das 94 estações pluviométricas da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), somente 60 estavam disponíveis no portal da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Destas, apenas 12 estavam transmitindo os dados de maneira adequada.

Um levantamento mais amplo concluiu, depois, que das 732 estações de medição automática de chuva que em teoria cobriam o Rio Grande do Sul e parte de Santa Catarina, de responsabilidade de diferentes órgãos públicos, apenas 372 estavam ao menos parcialmente funcionando, segundo Walter Collischonn, do IPH/UFRGS.

Um dos corpos hídricos que tiveram problemas no monitoramento foi o rio Guaíba, que circunda a capital Porto Alegre e atingiu seu maior nível da história em 5 de maio, chegando a 5,37 metros, bem acima da cota de inundação, de 3 metros. Na ocasião, foi necessária a instalação de uma régua de medição emergencial, já que a do Cais Mauá, utilizada normalmente, foi danificada pela enchente.

Mas não foi só isso. Não havia, entre os órgãos oficiais, capacidade técnica de fazer previsões detalhadas do nível do rio para os dias seguintes, algo fundamental para orientar decisões centrais durante um desastre. O Serviço Geológico do Brasil (SGB) até faz previsões de outros corpos hídricos do estado, como os rios Taquari, Caí e Uruguai, assim como faz em outros estados brasileiros, mas o Guaíba não era e continua não sendo contemplado.

Considerando o contexto emergencial, uma equipe de pesquisadores do IPH/UFRGS passou a fazer previsões de maneira voluntária, com base em uma metodologia que ainda estava em fase de pesquisas. Passado quase um ano da tragédia, e descontinuada a iniciativa do IPH, ainda não há previsões do nível do Guaíba feitas por órgãos oficiais.

Trabalho voluntário do IPH/UFRGS foi fundamental durante a crise; previsões detalhadas seguem lacuna no monitoramento do Guaíba um ano depois

Collischonn chama a atenção para outra deficiência que ficou evidente nas enchentes do ano passado e ainda não foi sanada: a falta de corpo técnico qualificado para operar e fazer a manutenção do sistema, o que dificultou ainda mais o monitoramento durante as enchentes. Segundo ele, até existem, por exemplo, pluviômetros instalados, mas não há gente suficiente para fazer a manutenção. “A equipe técnica era muito reduzida”, aponta o professor, que não vê avanços nesse sentido até o momento.

“Comprar um equipamento e botar ele em campo tem um custo bem claro e é fácil de fazer. A questão é manter ele funcionando. Neste ponto, tanto os órgãos estaduais quanto os federais às vezes falham”, diz. A análise completa que Collischonn fez sobre os problemas do estado pode ser lida em um dos artigos da publicação “RS: Resiliência & Sustentabilidade”, construída a partir de uma parceria entre a Secretaria Extraordinária de Reconstrução, do governo federal, e a Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp) com universidades públicas gaúchas.

Daniel Caetano, pesquisador da UFSM, aponta que o Rio Grande do Sul sempre esteve mais atrasado do que os outros estados da região Sul quando se trata de monitoramento, alerta e preparo frente a eventos climáticos extremos. “A gente precisou de uma catástrofe para começar a pensar mais sobre isso, mas as ações ainda são muito incipientes, ainda é tudo muito inicial”, diz.

Caetano é parte de uma equipe de pesquisadores que venceu um edital lançado pelo governo estadual e está desenvolvendo soluções para “tornar um pouco mais autossuficiente a meteorologia e a Defesa Civil do Rio Grande do Sul”. Ele faz coro, no entanto, à avaliação de que a velocidade de ação do governo estadual está aquém do necessário. “É tudo muito lento e essas respostas, pelo menos da nossa parte, não são para amanhã. Só que as alterações [climáticas] não estão na velocidade das nossas mudanças”, diz.

Centro histórico de Porto Alegre ficou debaixo d’água por semanas; cenário se repetiria em caso de nova chuva como a do ano passado

Segundo Fernando Meirelles, do IPH/UFRGS, o estado já teve uma rede de monitoramento “adequada”, mas o sistema foi se degradando com o passar dos anos e a manutenção necessária não foi feita. “A rede foi ficando sem contato com internet, sem contato com telefonia. Então, mesmo que o sensor esteja funcionando, a gente não sabe o que está acontecendo”, explica.

Entre 2015 e 2018, Meirelles esteve à frente da diretoria de Recursos Hídricos, órgão ligado à Sema. Foi justamente durante sua gestão em que o antigo sistema de monitoramento foi implementado.

Foi também durante o período em que ele esteve no cargo que foi formulado um anteprojeto de plano de prevenção de desastres. O projeto, que poderia ter reduzido os danos enfrentados pelo estado no ano passado, na avaliação de Meirelles, parou na Casa Civil e acabou engavetado tanto pelo governo de ocasião, de José Ivo Sartori (MDB), quanto pelo seguinte, de Eduardo Leite, como mostrou a Pública sete meses antes da tragédia.

Questionado sobre a falta de capacidade técnica para fazer previsões dos níveis dos rios, o governo estadual afirmou que “o monitoramento hidrológico [do estado], com a tendência dos níveis dos rios, riscos de extravasamento ou declínio dos mesmos não sofreu interrupção” e que “houve a divulgação de boletins diários por parte da Sala de Situação”. A Pública mantém a informação apurada.

Em relação à falta de corpo técnico qualificado, afirmou que “abriu processo seletivo para a contratação de mais de 2 mil servidores temporários, distribuídos em 58 especialidades diferentes”. O governo disse ainda que “a admissão dos novos servidores representa o compromisso da atual gestão com a superação dos efeitos dos eventos meteorológicos adversos que atingiram o território gaúcho em 2024″. A resposta não especifica se os servidores temporários resolveram as lacunas apontadas pelos especialistas.

Órgãos de prevenção e resposta a desastres ainda têm falhas

A enchente do ano passado também escancarou as falhas do sistema de alertas do Rio Grande do Sul, assim como as deficiências dos órgãos de Defesa Civil – igualmente não solucionados até o momento.

No caso da Defesa Civil, um dos principais problemas apontados pelos especialistas é a falta de profissionais capacitados, especialmente nos pequenos municípios.

“Ao longo dos anos, esses órgãos foram sempre organizados como lugar de acomodação política”, aponta Abner de Freitas, fundador da startup Hopeful, que trabalha com educação em desastres. “Se a Defesa Civil não é estruturada, se tem uma pessoa [no comando] que não entende nada do tema, qualquer outra coisa é só publicidade. Se nós formos expostos a uma nova chuva intensa, a resposta vai ser a mesma [de 2024]”.

No ano passado, reportagem da Pública mostrou que militares e políticos sem experiência estavam à frente dos órgãos de Defesa Civil no Rio Grande do Sul. Com poucas exceções, o cenário segue o mesmo, com secretários municipais sem vínculo com a área acumulando a coordenação dos órgãos com suas demais funções em vários municípios.

“A Defesa Civil no Rio Grande do Sul tem poucos especialistas em desastres, é muito focada na resposta depois que o desastre aconteceu. Quando a gente vai para o interior, o responsável pelo órgão é alguém que conhece bem a cidade, mas não tem uma capacidade técnica tão boa”, afirma Walter Collischonn, do IPH/UFRGS.

Com déficit de especialistas na Defesa Civil e nos demais órgãos de prevenção e resposta a desastres, somado a um sistema de monitoramento e previsão desmantelado, o que se viu ao longo das enchentes de 2024 foi uma comunicação falha, com alertas vagos e tardios. Além disso, mesmo quando os alertas chegavam em tempo oportuno, a falta de cultura de prevenção e de orientações claras deixou a população sem saber o que fazer ou para onde ir – e isso gerou um custo de vidas.

Falta de estrutura e preparo dos órgãos de Defesa Civil foram determinantes para que desastre fosse tão destrutivo

“Receber um aviso na sua casa de que vai chover muito no seu estado não é a mesma coisa do que dizer que às sete horas da noite você vai ter que sair de casa porque ela vai ser inundada. Esse é outro nível de precisão na informação. Pintar o estado com uma mancha vermelha e dizer que foi dado alerta é muito pouco”, diz Collischonn.

Para Marcos Kazmierczak, doutor em desastres naturais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e fundador de uma startup focada em mudanças climáticas, as medidas planejadas em relação ao sistema de monitoramento e previsão precisam ser acompanhadas de maior preparação dos órgãos, incluindo a Defesa Civil, e da população. “Dados precisam gerar informação que precisa virar conhecimento. Esse conhecimento tem que ser disseminado e tem que virar ação. Senão, não adianta nada. Não adianta encher os rios de sensor e estação meteorológica, coletar os dados e não usar. Tem que gerar conhecimento”, aponta.

“Não vai levar 80 anos para [um evento extremo como o de 2024] acontecer de novo. Se vai acontecer ano que vem ou daqui cinco ou dez anos, eu não sei, mas vai acontecer. E se acontecer amanhã [os órgãos de resposta] não vão estar preparados, vão bater cabeça que nem barata tonta”, afirma o especialista.

Em relação às críticas sobre a estrutura da Defesa Civil, o governo gaúcho destacou a realização do “Curso Básico de Proteção e Defesa Civil”, em parceria com o Ministério Público, que pretende capacitar todos os coordenadores municipais ainda no primeiro semestre de 2025. Afirmou também que a contratação de servidores temporários “agregou profissionais técnicos nas áreas de meteorologia, hidrologia, geologia, engenharia, arquitetura e outras áreas de interesse, fortalecendo o corpo técnico, além do reforço das equipes com militares, que também ocorreu nos primeiros meses de 2025.”

Sobre falhas na comunicação, o governo estadual disse que “desde o início, bem como no decorrer do desastre, foram adotadas medidas para comunicar o risco às populações potencialmente afetadas” e que “o trabalho da Secom foi além da comunicação e se tornou uma ferramenta de ajuda humanitária”. Questionado sobre medidas para aprimorar a comunicação em desastres, não respondeu. Confira a íntegra das respostas neste link.

Edição:
Carlos Macedo/Agência Pública
Reprodução
Gustavo Mansur/Palácio Paratini
Maurício Tonetto/Secom

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